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Marcílio Toscano Franca Filho

Marcílio Toscano Franca Filho

05/12/2019

Em novembro de 2016, Jan Six XI, “marchand obcecado por Rembrandt van Rijn”, o mais célebre expoente artístico da Era de Ouro holandesa, cujo aniversário de falecimento completa 350 anos neste 2019, tomou ciência de que a Christie’s de Londres realizaria mais um leilão de “Old Masters” no mês seguinte. Uma observação mais atenta de um retrato ligeiramente esmaecido que constava das páginas do catálogo da Christie’s foi o estopim de uma descoberta que sacudiu o mercado internacional de arte. Tudo isso foi elegantemente detalhado pelo jornalista Russell Shorto, da New York Times Magazine, a partir de entrevista concedida por Jan Six XI no começo deste ano.

A figura representava um jovem rapaz de longa cabeleira, olhar perplexo e colarinho de renda intrincadamente pintado, acompanhado de uma legenda afirmando ser a obra atribuída ao “círculo de Rembrandt”, isto é, de algum pupilo ou aprendiz do mestre holandês, datando de algum momento entre 1633 e 1635. Detalha Shorto que a expressão facial do personagem, o modo peculiar segundo o qual o colarinho fora concebido e a legenda da imagem deixaram Six atordoado. O marchand explicou que Rembrandt ainda não era famoso no início dos anos 1630, de modo que não haveria possibilidade de existir um “círculo” do artista conforme informava o catálogo. A peça jornalística prossegue detalhando a excitação de Six enquanto recorria a museus, obras catalográficas, especialistas e estudiosos do gigante holandês, pari passu vislumbrava, cada vez mais, o retrato prestes a ser leiloado como um genuíno Rembrandt .

A opinião de Ernst van de Wetering – a maior autoridade acadêmica sobre o artista em questão –, ainda que inicialmente cautelosa, fez com que o marchand definitivamente se convencesse da grandiosidade de seu feito e estivesse presente ao leilão da Christie’s. Six arrematou a obra – inicialmente estimada entre 15 mil e 20 mil libras esterlinas – por 137 mil libras esterlinas (cerca de 733 mil reais), uma bagatela em se tratando de um legítimo Rembrandt, cujo valor de mercado pode ultrapassar dezenas ou centenas de milhões de dólares.

Eis aí apenas um dos vários exemplos do que se convencionou chamar de sleeper, que, segundo a advogada e professora Anne Laure Bandle, é “uma obra de arte ou antiguidade que foi subvalorizada e erroneamente descrita ou rotulada devido a um descuido de um especialista e, consequentemente, é vendida a um preço bem menor que seu preço real”.

Este não foi o primeiro Rembrandt sleeper. Em 2014, o mesmo Six arrematou “Deixai vir a mim as Crianças” depois de desconfiar da imagem em um catálogo de uma leiloeira alemã, que estimava o preço de arrematação entre 20 mil e 27 mil dólares, por 2 milhões de dólares, valor que se elevou porquanto outro marchand, Otto Naumann, teve a mesma percepção aguçada e estava determinado a adquirir a obra. Em 2015, Bertrand Talabardon e Bertrand Gautier detectaram um possível Rembrandt, posteriormente confirmado por Ernst van de Wetering, como sendo “O Paciente Inconsciente (Alegoria do Olfato)”, em um catálogo de uma pequena casa de leilão de Nova Jersey, que estimava o preço de arrematação entre meros 500 e 800 dólares, todavia foi adquirido por 870 mil dólares depois de uma guerra de lances com outro marchand. Mais cedo, em 2007, o Grupo Hazlitt arrematou o autorretrato “Rembrandt Rindo” em um leilão no interior da Inglaterra, vendendo o quadro ao Museu J. Paul Getty por dezenas de milhões de dólares.

Nas últimas semanas, houve um alvoroço internacional acerca do leilão de uma obra do mestre italiano Cimabue, precursor do Renascimento, intitulada “O Escárnio de Cristo”. A pintura, datada de 1280 c., foi descoberta em junho deste ano, quando uma idosa nonagenária habitante de Compiègne, na França, decidiu vender sua casa, contratando a casa de leilões Actéon para esvaziá-la e analisar se lá havia algo de valor. Sucedeu, então, que a commissaire-priseuse Philomène Wolf desconfiou de um quadro de 25 x 20 cm pendurado entre a cozinha e a sala e, juntamente com o leiloeiro Dominique Lecointre, submeteu-o à análise do escritório parisiense Turquin, que identificou a obra como um autêntico Cimabue. Estimada em 6 milhões de euros, acabou sendo arrematada por 24 milhões de euros (aproximadamente 106 milhões de reais).

O Cimabue de Compiègne não se tratava de um sleeper. Anne Laure Bandle é categórica ao elencar três requisitos cumulativos para que um quadro se qualifique como sleeper: “first, the sleeper is an artwork or antique; secondly, it is sold at auction; and thirdly, an auction house is responsible for the incorrect and undervalued attribution”. O caso em tela não atendeu ao terceiro critério: não houve atribuição errônea nem subvalorizada por parte da leiloeira. Ao contrário: a atuação da Actéon foi técnica e eticamente corretíssimas.

Também não há que se confundir um sleeper com uma obra simplesmente falsificada ou forjada. Anne Laure Bandle o explica[7] de modo didático: “Uma falsificação carece de pedigree em termos de originalidade, proveniência e época. O criador simplesmente tenta reproduzir uma obra ou estilo do artista ou artesão e falsificar suas origens históricas, sem adicionar um componente criativo pessoal. […] Já um sleeper tem uma atribuição imprecisa, que anteriormente descrevia um criador cuja obra é menos valiosa. […] O sleeper existe inteiramente como resultado da falha do estudioso e do mercado em detectar sua real atribuição. […] Além disso, sleepers não envolvem fraudes intencionais, ao passo que falsificações são propositadamente criadas com intenção fraudulenta ou estão sujeitas a um uso fraudulento.”.

Feitas essas distinções, interessa saber: poderia a casa de leilão ser responsabilizada pelo alienante (comitente) pela atribuição autoral errônea que confere a uma obra de arte? Em outras palavras: O antigo proprietário do quadro que, depois do leilão, é surpreendido com a notícia de que tinha em mãos um verdadeiro Rembrandt pode processar a casa de leilões que não o identificou a tempo?

A hipótese é um caso clássico de misattribution. Ao pretender vender uma obra via hasta pública, o alienante (comitente) utiliza-se da casa de leilão como sua mandatária, agente auxiliar de comércio que, uma vez estabelecida a relação jurídica contratual, avalia o lote artístico de modo a gerar uma descrição para o catálogo de vendas a ser divulgado e obter o melhor valor possível. Analisando o objeto de arte, a leiloeira identifica seus atributos, como criador, lugar de origem ou descoberta, data ou período da criação, proveniência ou propriedade, dados que servirão para a fixação do conhecimento acerca do que se está leiloando e para a consequente estimativa do valor. Quando se está diante de um sleeper, é a casa de leilão que não foi capaz de atribuir corretamente ao bem uma autoria que verdadeiramente se compatibilize com o seu valor cultural e econômico, fazendo com que a obra de arte seja posta ao concurso público de lances por um preço muito menor do que seu real valor, prejudicando, assim, o comitente.

Em verdade, a visão tradicional da casa de leilão como mero intermediário entre comitente e arrematador tornou-se obsoleta, e a dinâmica da hasta pública de arte foi substituída por um conjunto complexo de práticas: o comportamento ético e o dever de transparência, consubstanciados numa atuação reveladora de probidade, expertise e boa-fé, são esperados e exigidos das leiloeiras no trato para com todos os agentes envolvidos nas idiossincrasias do leilão de arte. Ademais, afirma o Prof. Gladston Mamede que “o dever de transparência também exige fornecimento amplo, constante e completo de informações”, contribuindo para o prestígio da classe leiloeira, que deve sempre manter independência, nos termos do art. 37 da Instrução Normativa nº 17/2013 do Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração (DREI), órgão vinculado ao Ministério da Economia.

No Reino Unido, palco das maiores e mais antigas casas de leilão de arte (a título ilustrativo, a Sotheby’s foi estabelecida em 1744, e a Christie’s, em 1796), a tendência jurídica é de se admitir que o vendedor acione judicialmente a casa de leilão por seu desempenho negligente ao não identificar um sleeper. As casas de leilão regulam suas relações contratuais com vendedores e compradores de acordo com as chamadas condições de venda, que tentam afastar sua responsabilidade por descrições ou atribuições errôneas, como se tudo fosse uma avença apenas entre comitente e arrematante.

Conforme Henry Lydiate, referida cláusula de exclusão da responsabilidade pode ser considerada inválida, em obediência às leis britânicas de Termos Contratuais Injustos de 1977 e de Termos Injustos em Regulações de Contratos Consumeristas de 1994 (se se considera como consumerista a relação entre comitente e leiloeiro em matéria de arte, o que não é pacificado), assim como a falsa descrição comercial pode caracterizar uma ofensa criminal nos termos da Lei britânica de Descrições no Comércio de 1968. Em Luxmoore-May v. Messenger May Baverstock, uma corte de apelação inglesa decidiu, em 1989, um caso de misattribution que resultou na responsabilização da casa de leilões. Nos EUA, de modo semelhante, o precedente Estate of Querbarch v. A&B Appraisal Services, julgado em New Jersey, também decidiu pela condenação da responsável pela expertise.

O direito francês, por sua vez, também admite a responsabilização do commissaire-priseur, cujo cerne do contrato celebrado com o vendedor implica que o leiloeiro determine a autenticidade e o valor dos bens a serem vendidos. A Cour de Cassation, em célebre julgado de 1995, decidiu que a culpa do commissaire-priseur seria presumida, admitindo-se que haveria uma obrigação de resultado. Apesar disso, a mesma Corte, em decisão de 2013, voltou à concepção clássica de necessidade de demonstração de culpa. Ainda que não haja uma jurisprudência firmemente consolidada nesse sentido, o artigo L 321-17, 2, do Código de Comércio francês, dispõe que “as cláusulas que visem a descartar ou limitar a responsabilidade são proibidas e reputadas não escritas”.

O erro do vendedor sobre a substância da coisa vendida mereceu uma decisão interessante na França: o caso Olympos et Marsyas, obra colocada à venda como sendo um simples École des Carrache, mas adquirido pelo Museu do Louvre como um verdadeiro Nicolas Poussin, exercendo o seu direito legal de preferência e pagando apenas 2.200 francos (em 1967). Em 1972, a Cour de Cassation de Paris julgou que a assimetria informacional entre o proprietário e o museu era suficiente para repercutir na substância essencial do objeto da venda e anulou o negócio.

De volta à jurisdição norte-americana, há um outro precedente curioso: Ravenna v. Christie’s. Ali, um tribunal de Nova York entendeu que a casa de leilões, tendo avaliado uma pintura do senhor Ravenna apenas por meio de fotografias (a pedido dele), não poderia ser responsabilizada se, posteriormente e por meio de exames físicos e químicos mais sofisticados, o comprador descobriu ter um valioso sleeper em mãos.

No Brasil, o contrato entre comitente e leiloeiro está assentado no regulamento da profissão de leiloeiro fixado pelo Decreto nº 21.981/32 (que tem força de lei, porquanto editado pelo Governo Provisório de Vargas), na Instrução Normativa nº 17/2013/DREI e, supletivamente, nas normas do Código Civil que tratam dos contratos estimatório, de depósito e de mandato. De fato, o leiloeiro é responsável civil, penal e disciplinarmente por seus atos e, segundo o art. 38 da Instrução Normativa aludida supra, “[o] leiloeiro é responsável pelos atos que, no exercício da profissão, praticar com dolo ou culpa”, acrescentando que, “[e]m caso de leilão fraudulento, o arrematante será solidariamente responsável com o leiloeiro, se com este estiver coligado para lesar o comitente, o que será apurado em processo próprio”. O art. 38, de fato, guarda estreita relação com os arts. 186 e 187, combinados com o art. 927 e seguintes, todos do Código Civil e, como bem indica o mestre Mamede, tem-se: “A responsabilidade jurídica do leiloeiro não se afirma exclusivamente nos casos de dolo ou com culpa grave, identificada como o ato que apresenta o contorno de um erro inescusável ou, ainda, de um erro grosseiro. Não é preciso tanto: a simples verificação de negligência ou de imprudência (e, como combinação de ambos, a imperícia) permite a responsabilização do leiloeiro, devendo reparar os danos que causar, econômicos ou morais, no que se deve incluir mesmo a indenização pela perda de uma chance, se caracterizadas as circunstâncias para tanto.”  No Brasil, essas relações são complexificadas à luz da proteção do consumidor.

O papel-chave das casas de leilão (reais e virtuais) na venda e compra de obras de arte amplifica o crescimento, a diversificação e a complexidade das engrenagens do sistema contemporâneo da arte. Colecionadores, marchands, curadores, galerias e museus e outros caçadores de obras primas buscam aguçar seus sentidos e lapidar sua expertise para rastrear tesouros adormecidos prestes a serem levados à hasta pública. O que se torna riqueza para uns, todavia, pode produzir um cenário jurídico-econômico de desilusão para outros, falhos em bem perceber a tempo que lidavam com um sleeper que ameaçava energicamente despertar. Em todos esses casos, fica a lição básica do mercado de arte: “know your risks”.

Texto: Marcílio Franca & Gustavo Tanouss

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