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José Manuel de Sacadura Rocha

José Manuel de Sacadura Rocha

29/01/2020

A teoria defende que o machismo é consequência da especialização da divisão social do trabalho no tempo do desenvolvimento do capitalismo. Isto quer dizer que só se pode conceituar “machismo” nas sociedades ocidentais a partir do desenvolvimento do modo de produção de mercadorias e por vias de uma certa necessidade de inserir a mulher na produção industrial e reprodução ampliada do sistema de acumulação de capital – o homem na fábrica, a mulher nos serviços de casa (depois da mesma e das crianças já terem sido exploradas na fábrica). A esta inserção da mulher no sistema de livre mercado, Roswitha Scholz denominou de “dissociação-valor”, e é uma das principais teses científicas sobre a essência do machismo e do feminismo. Mas o que nos diz a história sobre isso?

Nas sociedades mais antigas, as com alguma organização de poder a força para dominar os indivíduos, provinha de dois lugares, juntos ou separadamente: do templo e do palácio. Portanto, ou os sacerdotes dominavam, e exploravam, a partir da crença em seus dotes especiais em comunicar-se e realizar o que os deuses desejavam, ou os reis adquiriam pela força das armas e capacidades especiais de luta o privilégio de comandarem os exércitos e extorquirem as populações. No início das civilizações não era o “verbo”, mas a “força” que fez as sociedades se organizarem e transformarem politicamente entre os que obedecem e os que ordenam mais. A par disso, uma outra divisão possibilitava a produção econômica do grupo, os que faziam e os que exploravam a produção, estes dedicando-se a atividades da política e da guerra (uma imbrincada com a outra) – para seu tempo histórico, pode-se afirmar que as atividades dedicadas à religião e guerra pertencem à dimensão da ociosidade.

No Egito há inúmeras histórias de coroação de mulheres faraó, como o caso fascinante de Hatchepsut, coroada por volta de 1500 a.C., apesar de esta também ser uma história de descriminação e patriarcado na Idade Antiga. Cleópatra governou mil anos depois, de 51 a.C. a 30 a.C., já sob dominação do Império Romano. Para governar, estas faraós tiveram que efetuar alianças algo instáveis com o poder dos sacerdotes que dominavam a teocracia egípcia, a não ser em períodos bastante restritos em que um rei teve a oportunidade e a coragem de desafiá-los e implantar uma antropocracia, como o caso de Akhenaton (aquele que louva a Aton) por volta de 1350 a.C. a 1335 a.C. (pai de Tutancâmon). A revolução de Akhenaton foi tão radical para a época, que séculos depois quando os historiadores egípcios foram registrar a sucessão de dinastias no Egito simplesmente omitiram do registro a XVIII dinastia. A sociedade egípcia era patriarcal, mas não necessariamente machista, o que estava em jogo era o poder, a dominação e a manutenção de um sistema econômico de castas.

Na Mesopotâmia, por exemplo, por volta de 1750 a.C., o rei Kham-mu-rabi, conhecido por Hamurabi, adquiriu tanto poder que teve força para mandar fazer um Código de leis que em muitos aspectos não deixava nada a desejar à orientação e organização de nossos códigos modernos: no Código de Hamurabi existem pelo menos explícitos 56 artigos sobre comportamentos e ações que envolvem direta ou indiretamente a mulher (do Art. 128 ao Art. 184; Seção X) – os mesmos não parecem ser muito favoráveis à mulher, mas o são em alguns momentos em que o homem comete ato reprobatório (p. ex., art. 137). Mas mil anos antes, Enheduana foi a primeira sacerdotisa mulher dos Sumérios por volta de 2750 a.C. De forma geral, não havia motivos em uma sociedade cujo poder era centrado no palácio, ou no rei, como queiram, que as mulheres não pudessem desempenhar funções religiosas. Ao que tudo indica, quanto mais para trás se anda na história, mais o poder da mulher ou o respeito a ela estão presentes, como afirma Riane Eisler (O cálice e a espada). Não existem dúvidas quanto à prevalência do homem sobre a mulher no decorrer dos séculos, mas eram as Sociedades Antigas machistas?

Depois os hebreus, voltaram a uma organização social e política centrada na religião, uma teocracia revolucionária para a época, o monoteísmo. Essa teocracia protegia em muitos aspectos práticos a mulher, mas a subordinava inconteste ao pai, ao marido e até aos filhos homens em casos de viuvez e desamparo. A Lei Mosaica é seguida por todos, e os reis-sacerdotes (e rabinos), julgavam e decidiam a vida e os casos complexos, a paz e a guerra, ajudados por um conselho religioso, e sempre segundo a interpretação dos textos sagrados. Exemplo: Dt 24:1 “Se um homem tomar uma mulher, casar-se com ela, e esta depois deixar de lhe agradar por ter ele achado nela qualquer coisa indecente, escrever-lhe-á uma carta de divórcio, e lha dará na mão, e a despedirá de sua casa”. A teocracia hebraica é machista?

Os gregos, de forma geral, procuraram desenvolver, principalmente a partir do século V a.C., leis que proporcionassem a paz e a participação democrática na política de todos os cidadãos. Mas a mulher não participava das discussões na Ágora, o que não significa que ela não discutisse com seus maridos, filhos e que não tivesse dedicada a ela grande parte do Código de Sólon (veja-se, p. ex., o caso do marido impotente, que autorizava a mulher a dormir com outro homem até ter um filho homem). Não resta dúvida que a sociedade grega exercia o domínio político sobre a mulher pelo patriarcado, mas raramente um homem levava adiante algum tipo de agressão, violência ou desrespeito contra uma mulher, porque a própria sociedade repudiava tais atitudes como indesejáveis e não próprias para a construção filosófica da democracia por parte de um cidadão.

Os romanos copiaram logo em seguida o Código dos atenienses (Sólon) e o transformaram na Lei das XII Tábuas (450 a.C.), por exigência das revoltas plebeias contra os patrícios. É aqui que surge em Roma a figura dos títulos de propriedade, pois até então o status social era dado pela “posse”. Por todos os lados o direito civil desenvolvido pelos romanos coloca a mulher com direitos e mesmo no Digesto de Justiniano a mulher aparece como sujeito de direto. Apesar das discrepâncias entre os direitos da mulher e do homem entre os romanos, não é possível afirmar tranquilamente que o machismo é tônica comum na cultura dessa civilização, ainda que para muitos historiadores (as) e teóricos (as), o seja.

Infelizmente a Idade Média é o palco mais retrógrado e sangrento contra as mulheres. O gênero feminino foi satanizado, e a mulher praticamente reduzida a objeto. No pior período da história do Ocidente, a centralidade brutal da organização social e política na religião, portanto uma teocracia unânime, por mil anos, que fez com que a Igreja cristã predominasse culturalmente sobre a sociedade em aliança com os senhores feudais e reis, e em nome do sagrado, de Deus e de seus mandamentos interpretados por padres, bispos e papas. A Espanha chegou a ter 21 tribunais de inquisição no século XII – a caça às bruxas (segundo o Manual de Caça às Bruxas de Heinrich e Spränger) durou 150 anos e só terminou em 1614 nesse reino.

Do ponto de vista de Scholz, o homem considerado como aquele que tem valor, representa o simulacro daquilo que na sociedade tem “valor”, e dá poder. Neste sentido, importa o que é de maior valor, nas sociedades antigas, a terra, nas sociedades modernas, o dinheiro – o que está em evidência é o “valor” porque é dele que emana o poder e a força do homem. A mulher, segundo a autora, aparece como “dissociada” desse valor, porque a ela não se atribui, de forma geral, o mimetismo, a representação do “valor” enquanto tal. Contudo, sem a mulher, dissociada do “valor” (dissociação-valor), mas parte de sua reprodução, sem suas atividades e participação na vida coletiva, não seria possível atribuir ao homem as funções que ele representa tidas socialmente como as de maior valor.

Na Grécia, por exemplo, para o homem participar da vida política, na Ágora, a mulher tinha que participar da vida familiar, no Oikos. A vida familiar não era menos importante para a civilização grega quanto à reprodução social geral, mas era considerada de menor valor. Por isso, pode-se dizer que em Atenas (séc. V) existe uma divisão social do trabalho que é própria do patriarcado, porém não que a mulher seja considerada, estrito senso, inferior. Para existir machismo não basta que a mulher represente no contexto da reprodução da sociabilidade geral uma dissociação-valor através de atividades “menores”; para o machismo a mulher deve ser considerada inferior, e é a partir desta inferioridade que surge a violência contra ela.

Por toda a Antiguidade e mais ainda no Medievo, as atrocidades cometidas contra as mulheres, vistas como propriedade dos maridos, cujo papel era fundamentalmente procriar, cuidar do marido, dos filhos e da casa, e a crueldade contra as que podiam ser condenadas por feitiçaria ou saberes e coragem “estranhos”, queimando-as em fogueiras após torturas indizíveis, nos leva a perguntar: não existia machismo neste período? Se machismo é a violência (física, verbal, simbólica, depreciação/inferioridade de gênero) contra a mulher, até que ponto podemos dizer que só existe “machismo” nas sociedades capitalistas e não antes? Como até a Revolução Industrial e o desenvolvimento do modo de produção capitalista só se pode designar o poder do homem sobre a mulher como patriarcado? O poder exercido sobre a mulher não é em si mesmo uma violência? A definição de “machismo” não passa apenas pela relação produtiva da mulher na divisão social do trabalho moderno, pois é possível falar-se de “machismo” por dentro de outras relações ( mesmo que derivadas) como a jurídica, a cultural ou a moral anteriores à modernidade.

Indubitavelmente, a força (ou poder para tal) gera o patriarcado, o patriarcado gera o machismo, e o machismo tem gerado uma reação contra a violência de gênero: é tanto que já se pode falar em “machismo contra o homem”, ou mesmo “machismo feminino”. Mulheres, mas também homens, têm sido secularmente constituídos, portanto em sua forma psiquê, pela dissociação-valor, isto é, toda a força, desconsideração e poder sobre a mulher, e também sobre escravos, eunucos, plebeus de forma geral, “opera” no valor, no que é de maior valor e o que é de menor valor. Contudo, sem uma definição prévia do que se quer afirmar com o termo “machismo”, parece temerário concluir que o machismo é exclusividade de um tempo histórico ou modo determinado de organização social da produção e sua sociabilidade geral. Ele pode até ser “estrutural” para muitos aspectos de dominação e exploração sobre minorias, mas não é um fenômeno moderno.

Se em um tempo histórico de desenvolvimento social o machismo (definido como a violência de gênero) é instrumento (ou entra no processo de produção material e simbólica) da reprodução geral da sociedade, como que derivado das condições concretas de organização produtiva e suas consequentes relações sociais, então o mesmo deve ser esclarecido, denunciado e combatido. E é isso que a leitura de Roswitha Scholz nos leva a refletir.

O machismo pode não ser exclusividade (ou apanágio) do sistema mercantil de acumulação de capital, nada nos garante que ele seja mais violento contra a mulher (e em certos casos, o homem e outras minorias) do que a Inquisição da Idade Média, mas é nele que nos devemos debruçar agora e combatê-lo.

FONTE: Núcleo de Ética

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