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Soraia da Rosa Mendes

Soraia da Rosa Mendes

17/04/2020

Soraia Mendes e Patricia Burin*

“Em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher!” é um conhecido ditado popular que vem sendo questionado nos últimos anos tanto por pressão dos movimentos feministas, quanto em razão da edição da lei nº 11.340/06, conhecida como lei Maria da Penha. Uma mudança cultural imprescindível que não tem sido fácil e que agora, em plena pandemia covid-19, ganhou novos e mais problemáticos contornos pela necessidade do confinamento.

Sabemos nós que a casa historicamente nunca foi um lugar de refúgio seguro para as mulheres. Não tendo sido poucas as vezes que nos dedicamos em nossas pesquisas, livros e em nossas lidas diárias, como advogada e delegada de polícia que somos, a reiterar que o lar sempre foi muito pouco “doce” para meninas, esposas, companheiras, mães, avós. De maneira que ser mulher e estar, hoje, em razão da pandemia, impedida de sair à rua é, como escrevemos em repetidas ocasiões[1], estar encarcerada sob a vigilância e violência daquele que se converte no pior dos carcereiros.

Impossibilitadas de saírem de casa, com cidades praticamente fechadas e serviços de polícia judiciária reduzidos ao limite da essencialidade, era mais do que certo que as mulheres ficariam abandonadas à própria sorte, sem condições de comunicar às autoridades constituídas eventuais violências a que viessem a ser submetidas.

O nada “doce lar” é, como sempre foi, um espaço extremamente arriscado para as mulheres. Daí porque não ser de espantar que em um país como o Brasil, que ostenta o quinto lugar no ranking mundial em mortes de mulheres, a pandemia tenha vindo não só a aumentar os casos de violência doméstica e familiar, mas a escancarar a incapacidade que tivemos enquanto Estado (e sociedade) de tratar com a devida seriedade o combate à violência de gênero (sim, de gênero!) como prioridade.

Atentas a esse contexto, algumas Secretarias de Segurança Pública nos Estados, como é o caso da catarinense, ampliaram as hipóteses de registro de ocorrência pela internet, passando a admitir que a violência doméstica seja registrada virtualmente, sem que as mulheres tenham que se expor a contágio do coronavírus. Este procedimento guarda inquestionáveis vantagens que, em nosso entender, talvez sejam um saldo positivo pós-pandemia. E é sobre isso que queremos falar agora.

O primeiro, e óbvio, resultado salutar de uma medida como essa é permitir que a vítima possa registrar a ocorrência sem precisar sair de sua casa no contexto de necessidade de confinamento como o que vivenciamos. Em acréscimo, e sob outra perspectiva, é notável também que poupar à mulher o comparecimento à Delegacia de Polícia para registro de ocorrência já é também um alento ante a constatação de que a obrigatoriedade de apresentar-se no distrito policial é, na esmagadora maioria das vezes, por si só uma violação que implica em revitimização.

Não temos dúvidas de que até mesmo delegacias especializadas em atendimento à mulher tendem a ser ambientes inóspitos. Possibilitar a uma mulher expressar-se desde o seu lugar de morada e, principalmente, por si própria, sem ter de se expor a um plantão policial é, sem sombra de dúvidas um avanço.

Outro ponto importante que percebemos com o registro eletrônico é a abertura da “narrativa do fato” para a própria voz da vítima sem que haja uma “tradução” da vida vivida para “o papel” mediante a intervenção de policiais, na maioria homens. Não esqueçamos que ainda são em menor número (e preparadas para tanto!) as profissionais do gênero feminino que atendem mulheres que procuram as delegacias em situação de vulnerabilidade.

As narrativas em primeira pessoa, observe-se, são muito mais vívidas e completas do que costumam ser quando aquelas registradas presencialmente. De modo que o registro online de ocorrências de violência doméstica é, em nossa opinião, uma conquista que não deve recuar com a superação da pandemia e que, propomos nós, deve inclusive avançar.

Não obstante, tomando mais uma vez como recorte a experiência catarinense, as mulheres que necessitam pleitear medidas protetivas de urgência, mesmo em tempos de pandemia e ainda que possam realizar o registro online, permanecem sendo obrigadas a se dirigir à Delegacia de Polícia para que se confeccione seu pedido de medida protetiva e para que ele seja encaminhado ao Poder Judiciário.

A razão para tal procedimento encontra justificativa no fato de que a lei Maria da Penha não tenha previsto o acesso direto das mulheres ao Poder Judiciário para pugnar pela concessão de medidas protetivas de urgência. Algo que, em nosso entender, é um fator dificultador da proteção aos direitos fundamentais das mulheres em situação de vulnerabilidade e também um enorme erro hermenêutico.

A melhor interpretação da lei Maria da Penha jamais pode ser buscada em sua literalidade. Menos ainda quando as experiências das mulheres em contexto de violência mostram que existem vias mais ágeis e adequadas para proporcionar a concessão das medidas protetivas de urgência. Não sendo outra, pois, a regra inscrita na própria lei em seu artigo 4o. onde se lê que para sua interpretação “serão considerados os fins sociais a que ela se destina e, especialmente, as condições peculiares das mulheres em situação de violência doméstica e familiar”. Dispositivo este que representou (e representa) uma verdadeira revolução epistemológica no campo do processo penal[2] e que nos permite avançar de modo a ampliar os caminhos de acesso das mulheres ao Poder Judiciário durante (e após!) a pandemia.

À exemplo do Habeas Corpus, que pode ser impetrado por qualquer pessoa, independentemente da intermediação de advogado, nada impede (pelo contrário há lastro constitucional para tanto) que sejam criados mecanismos de acesso direto das mulheres ao Poder Judiciário. Sendo também possível, paralelamente, tendo em mente as desigualdades de nossa população, a ampliação do rol de autoridades (ou mesmo particulares) com atribuição de comunicar ao Poder Judiciário o pleito de medida protetiva de urgência. O encargo poderia ser também atribuído a organizações não-governamentais de defesa dos direitos das mulheres ou mesmo aos órgãos e serviços de Assistência Social ou à Rede de Saúde.

Lembremos que as medidas protetivas não guardam relação de essencialidade com um crime, valendo registrar que a atuação da Polícia Judiciária, diante de seu caráter predominantemente repressivo, demanda a configuração de um ilícito penal. Na sua melhor interpretação, as medidas protetivas de urgência independem do registro de um boletim de ocorrência ou de representação criminal. Daí porque é perfeitamente admissível que a mulher vitimada seja poupada da violência institucional que o trâmite policial pode lhe impor.

O registro de ocorrência online será um problema somente se for jogado na vala comum de crimes para os quais não é feita investigação por serem crimes de menor gravidade. E, se assim for, alto demais será o risco de reificação da narrativa de “menor lesividade”, algo a que sempre nos opusemos.

A solução, por outro lado, será simples, bastando que, para além da descrição do fato e o assinalamento de um ou mais crimes pela vítima, que o formulário conte com o campo especifico “violência doméstica”. E que também seja garantida à vítima a faculdade de registrar a ocorrência, se assim desejar (ou necessitar), tanto virtual, quanto presencialmente. A proceder desta forma diminutos seriam os riscos de que a notícia do delito passasse “desapercebida” entre outros registros.

Por outro lado, também entendemos como vital que, dado conhecimento oficial da violência e requerida a MPU (seja pelo registro de ocorrência, seja diretamente pela vítima, seja pela “impetração” por terceiro, como acima defendemos) se dê agilidade ao procedimento tornando todo o trâmite – da notícia da violência ao Judiciário até a intimação do agressor da concessão da MPU – via online.

Por sinal, o Enunciado nº 9, aprovado no Fórum Nacional de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (Fonavid) prevê a utilização do aplicativo de mensagens WhatsApp como meio eficaz de dar efetividade a atos processuais como notificações e intimações, tendo em vista as suas funcionalidades. Medida essa já adotada de acordo com recomendação do CNJ, por alguns Tribunais de Justiça (Rio Grande do Norte, por exemplo) a partir de respaldo nos princípios da instrumentalidade e da informalidade do processo.

Enfim, é preciso avançar de modo a ampliar os caminhos de acesso rápido, seguro e direto das mulheres ao Poder Judiciário. E tal preocupação extrapola o período excepcional em que estamos vivendo.

Quem sabe possam ser experiências bem sucedidas de registro online de B.O, acesso direto da vítima para o requerimento da medida protetiva à semelhança do remédio constitucional do habeas corpus e o trâmite inteiramente via web – desde narrativa do fato até a concessão da MPU – um salto qualitativo na defesa das mulheres em situação de violência que a pandemia poderá nos deixar.

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1 Neste sentido, veja Criminologia Feminista: novos paradigmas. 2a. Edição. Editora Saraiva, 2017.

2 Vide Processo Penal Feminista. Editora Atlas, 2020.

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*Patricia Burin é delegada de polícia de Santa Catarina, especialista em Segurança Pública e mestra em Direito Constitucional pelo IDP.

FONTE: Migalhas


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