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COVID-19 e Direito das Coisas, Família e Sucessões

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Guilherme Calmon Nogueira da Gama
Guilherme Calmon Nogueira da Gama

22/04/2020

Guilherme Calmon Nogueira da Gama[1]

Thiago Ferreira Cardoso Neves[2]

A comunidade internacional, nela incluída a sociedade brasileira, foi surpreendida em razão dos inesperados acontecimentos atrelados à pandemia do novo coronavírus (COVID-19), que rapidamente se estenderam ao território brasileiro com efeitos devastadores nas existências e nas atividades das pessoas físicas e jurídicas. Na China, primeiro país onde houve a informação sobre os relatos iniciais das contaminações de pessoas culminando com a morte de vários chineses e pessoas de outras nacionalidades que estavam no território chinês, após algum tempo do início da disseminação do vírus, foram adotadas medidas sanitárias de isolamento social, fechamento de estabelecimentos e outros lugares públicos, entre outras, com objetivo de implementar medidas visando conter a larga disseminação da doença com risco letal.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) identificou a gravidade dos acontecimentos referentes ao surto da nova doença e, por isso, reconheceu a existência de pandemia – conhecida como pandemia do COVID-19 -, recomendando uma série de medidas aos países afetados pelo vírus, entre as quais a interrupção de atividades sociais e econômicas, o isolamento social de pessoas em centros urbanos mais adensados populacionalmente, o desestímulo às reuniões fisicamente presenciais das pessoas (no sentido de evitar aglomerações de pessoas) . No Brasil, em razão da urgência, houve a aprovação do Decreto Legislativo n° 06, de 20.03.2020, quando então reconheceu-se o estado de calamidade pública no território nacional em razão dos efeitos nefastos da pandemia.

Paralelamente ao reconhecimento formal do estado de calamidade pública no território brasileiro, alguns governadores e prefeitos passaram a adotar medidas de proibição, de restrição ou de recomendação quanto à continuidade de certas atividades (sociais, econômicas). Assim, por exemplo, atividades consideradas não essenciais para a sociedade e para a população em geral foram interrompidas ou reduzidas a proporções bem aquém da média em épocas de normalidade, ao mesmo tempo em que houve estímulo ao isolamento social das pessoas como modo de prevenir a disseminação do vírus na população brasileira. Algumas medidas foram adotadas regionalmente em certas unidades da Federação brasileira – quanto à atuação de alguns governadores – e outras foram empregadas no âmbito local – a respeito da atuação de alguns prefeitos -, a princípio em consonância com o pacto federativo brasileiro que, com base na normativa constitucional, reparte as competências legislativas e materiais entre a União, os Estados e os Municípios (Constituição Federal – CF/88 -, arts. 21, 22, 23, 24, 25 e 30).

É certo que, a par das medidas e consequências que a pandemia do COVID-19 e os atos das autoridades públicas têm gerado nos institutos tradicionalmente conhecidos como pertencendo ao Direito Público, as relações jurídicas entre as pessoas também foram impactadas pelos dois fatores acima identificados – não apenas a pandemia oficialmente reconhecida no Brasil, mas também os atos de império a cargo das autoridades públicas (integrantes do Poder Executivo e do Poder Legislativo). Atividades presenciais de ensino (tais como a aula presencial, a reunião de grupos de pesquisa, etc…), em alguns casos, passaram a ser realizadas à distância. O parlamento brasileiro passou a deliberar também através de votações à distância em tempo real, o mesmo acontecendo em tribunais brasileiros, como é o exemplo das sessões “on line” realizadas pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça.

Devido à competência legislativa exclusiva da União para legislar sobre direito civil e direito comercial (CF/88, art. 22, I), por iniciativa do Senador Antônio Anastasia foi apresentado projeto de lei de modo a instituir o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET) no período previsto como da pandemia do COVID-19. Trata-se de iniciativa bastante oportuna e necessária para instituir normas de caráter transitório e emergencial a respeito dos institutos mais importantes no Direito Privado, tais como o contrato, a propriedade, o consumo, a empresa, a família e a sucessão hereditária, além de haver disciplinado outros temas como relacionados à concorrência entre agentes econômicos e o fornecimento de produtos e serviços através dos transportadores de cargas. O Projeto de Lei na sua versão original recebeu algumas alterações e ajustes, tendo sido aprovado no Senado Federal conforme texto substitutivo apresentado pela Senador Simone Tebet através do Parecer n. 18/20.

Este artigo tem por objetivo proceder à análise das medidas propostas no Projeto de Lei n° 1.179/20 (na versão final aprovado pelo Senado), com o recorte para os institutos mais atrelados ao direito civil e, por isso, não serão tratados temas referentes ao direito de empresa e ao direito antitruste que também mereceram atenção por parte do legislador emergencial. As linhas a seguir têm o propósito de identificar alguns pontos mais consensuais – e outros mais polêmicos – das medidas emergenciais e temporárias que poderão ser adotadas no direito civil e que merecerão amadurecimento por parte da doutrina, dos tribunais e da comunidade jurídica em geral para o fim de permitir, simultaneamente, a manutenção do convívio social baseado nos valores da segurança jurídica e da justiça social.

Neste trabalho, serão abordadas as medidas propostas no PL n° 1.179/20 a respeito de alguns institutos relativos ao Direito das Coisas, Direito de Família e Direito das Sucessões.

  1. Medidas excepcionais sobre os direitos reais

O PL n° 1.179/20 busca introduzir normas transitórias e emergenciais relativamente ao sistema jurídico de Direito Privado mais relacionado ao segmento do Direito das Coisas. Tal como o fez relativamente ao regime jurídico da prescrição e da decadência, o PL prevê uma causa temporária de suspensão do prazo para aquisição de direito real na modalidade da usucapião. Além disso, haverá a introdução de novos poderes ao síndico nos condomínios edilícios, prorrogação excepcional e automática de seu mandato e de inovação temporária quanto à realização das assembleias condominais, com o reforço do dever do síndico na prestação das contas.

A introdução de regras emergenciais e temporárias em tema de direitos reais tem fundamento inequívoco na excepcionalidade do contexto atual decorrente da COVID-19, associada às medidas adotadas pelas autoridades públicas no sentido da contenção da propagação da doença no meio populacional. Como há atos do Poder Público que restringem, limitam ou, em alguns casos, até proíbem a locomoção das pessoas, a realização de reuniões presenciais (para evitar aglomeração de pessoas), o deslocamento para outros locais fora dos limites territoriais dos municípios, por exemplo, nada mais razoável do que considerar que, por fato alheio à vontade da pessoa, ela não possa adotar certos comportamentos que, exemplificativamente, impediriam a consumação do prazo legal para a usucapião em favor do possuidor de determinado imóvel.

Logo, as medidas decorrentes do combate à COVID-19 revelaram situações atípicas e excepcionais que somente em razão de regras temporárias e extravagantes poderão ser reguladas no âmbito do Direito das Coisas.

1.1. Nova modalidade de causa de suspensão dos prazos de usucapião

O PL n° 1.179/20 prevê a suspensão dos prazos para aquisição da propriedade imobiliária ou mobiliária desde o início da vigência da lei (em sendo aprovado e sancionado o PL) até 30.10.2020 (art. 10), data provável de cessação dos efeitos decorrentes das restrições ou proibições que foram impostas em decorrência da COVID-19. O legislador excepcional, a respeito deste tema, pretende seguir a mesma lógica ínsita à regra do art. 1.244, do Código Civil, que estende ao possuidor, no que couber, as causas de impedimento, suspensão ou interrupção do prazo de prescrição para as hipóteses de prescrição.

Afastada a noção de que a usucapião seria espécie de prescrição (a denominada “prescrição aquisitiva”), na crítica de Orlando Gomes[1], certo é que a usucapião se fundamenta, entre outros aspectos, no cumprimento da função social da posse e, simultaneamente, no não cumprimento da função social da propriedade, no contexto de normalidade social e institucional da vida comunitária. Contudo, em período de crise sistêmica – como aquela que mundialmente tem atingido a maior parte dos países no planeta -, não seria exigível do proprietário do bem (imóvel ou móvel) que ele pudesse agir para evitar a consumação do prazo de usucapião pelo possuidor, exatamente por circunstâncias alheias à sua vontade.

Logo, o art. 10, do PL n° 1.179/20, objetiva criar mais uma causa de suspensão do curso do prazo para consumação da usucapião, além daquelas tratadas no Código Civil (arts. 1.244, c.c. arts. 197 a 204), mas que somente terá vigência até 30.10.2020, ou seja, durante o período relativo aos efeitos da COVID-19 na vida, na saúde e na liberdade de locomoção das pessoas.

Duas observações devem ser feitas à luz da redação do art. 10, do PL n° 1.179/20. A primeira diz respeito à circunstância de o dispositivo apenas se referir à suspensão dos prazos de usucapião. Ao cotejar os arts. 3° e 10, do PL n° 1.179/20, percebe-se que o tratamento emergencial sobre a prescrição poderá abranger também a criação de causa que impede ou obstaculiza o início da contagem do prazo prescricional, o que não se verificou no que tange ao prazo de usucapião.

É perfeitamente possível que alguém, observando que não há qualquer movimentação no terreno cercado, por exemplo, neste período de calamidade pública, venha a iniciar uma ocupação no imóvel e, para tanto, não há como se admitir o início de contagem de prazo para fins de usucapião, em qualquer uma de suas modalidades, exatamente por impossibilidade material e jurídica quanto à pessoa do proprietário do imóvel agir para evitar tal ocupação. Assim, deve-se interpretar o art. 10, do PL n° 1.179/20, no sentido de também considerar o período de vigência da lei como período que impede o início de contagem de prazo para fins de usucapião, em qualquer uma das suas modalidades, inclusive no que tange à usucapião familiar (CC, art. 1.240-A). Cuida-se de empregar a interpretação ampliativa da regra projetada, pois o legislador “disse menos do que queria”, cabendo ao intérprete realizar a correta interpretação da norma de modo a buscar o real fundamento da norma transitória e, assim, considerar abrangida pela regra do art. 10, mais uma hipótese de impedimento do início de contagem do prazo de usucapião.

A segunda observação diz respeito à restrição da incidência da norma temporária apenas à usucapião como modo de aquisição de propriedade (imóvel ou móvel), pois é admissível a usucapião ser modo de aquisição de outros direitos reais, além da propriedade, tal como ocorre nos direitos reais de servidão, de usufruto, de superfície, de laje, entre outros. Há motivos para tratar diferentemente a propriedade dos outros direitos reais no período de crise social, institucional e econômica decorrente do COVID-19? A resposta é negativa, eis que as mesmas restrições e proibições decorrentes da pandemia e das medidas adotadas pelo Poder Público se aplicam ao possuidor que poderia vir a adquirir a propriedade (baseada na noção do animus domini) ou a adquirir outro direito real suscetível de ser adquirido através da usucapião. Ou seja: o proprietário não teria mecanismos para evitar a consumação do prazo de usucapião (tanto no que tange à aquisição da propriedade, quanto no referente à aquisição de outro direito real). Logo, também neste ponto deve ser empregada a interpretação ampliativa para considerar que o art. 10, do PL n° 1.179/20, se estenderá para outros direitos reais passíveis de aquisição pela usucapião, além do direito real de propriedade.

1.2.Poderes atribuídos aos síndicos nos condomínios edilícios

O condomínio edilício (ou condomínio especial, relativo ou em edificações) é instituto característico dos centros urbanos devido à expansão dos fenômenos do êxodo rural e da concentração urbana, cuidando-se de figura que mescla traços da propriedade individual e do condomínio. Com o desenvolvimento da indústria da construção civil, houve a preocupação de o Direito estabelecer normas mais adequadas quanto ao regime jurídico aplicável à tal realidade cada vez mais frequente nos centros urbanos. No Brasil tal movimento foi observado com a edição da Lei n° 4.591/64, destinada a tratar sobre os condomínios edilícios e as incorporações imobiliárias. Mais recentemente observa-se o aumento das hipóteses de situações condominiais concebidas a partir da estruturação jurídica em razão da autonomia privada, daí os casos de certos tipos de shopping centers, clubes de campo, cemitérios privados e alguns tipos de multipropriedade imobiliária (CC, arts. 1.358-B a 1.358-U, incluídos pela Lei n. 13.777/18).

O PL n° 1.179/20, nos arts. 11 a 13, visa instituir medidas de caráter emergencial e transitório para reger o meio condominial edilício em virtude dos efeitos do COVID-19. Uma das inovações transitórias é a atribuição de mais poderes ao síndico do condomínio.

O condomínio edilício exige a presença de uma estrutura administrativa que possibilite o seu funcionamento de modo a harmonizar e conciliar os interesses comuns com os interesses particulares de cada um dos condôminos, de modo a propiciar uma convivência saudável e pacífica entre todos. Por isso, a Lei n° 4.591/64 e o Código Civil instituíram mecanismos e órgãos condominiais voltados ao desenvolvimento das relações, com a administração e gestão do condomínio. Destacam-se a assembleia geral, o síndico e o conselho fiscal do condomínio que são órgãos semelhantes às estruturas consolidadas quanto à divisão do poder político no Estado brasileiro. Assim, o síndico exerce funções executivas, promovendo as medidas necessárias ao cumprimento das deliberações das assembleias e exercendo a administração ordinária no meio condominial. A assembleia tem o propósito de concentrar as deliberações mais importantes sobre o meio condominial, com reuniões periódicas. Finalmente, o conselho fiscal apura a regularidade da administração exercida pelo síndico, especialmente sob a perspectiva econômica e financeira.

Devido à crise decorrente da pandemia do COVID-19, até 30.10.2020 ao síndico poderão ser atribuídos os poderes de “restringir a utilização das áreas comuns para evitar a contaminação do Coronavírus (Covid-19)” e de “restringir ou proibir a realização de reuniões, festividades, uso dos abrigos de veículos por terceiros, inclusive nas áreas de propriedade exclusiva dos condôminos” (PL n° 1.179/20, art. 11), sem prejuízo dos poderes já conferidos pelo Código Civil (art. 1.348). Os dois poderes transitórios e emergenciais independerão de prévia deliberação em assembleia condominial para que possam ser imediatamente exercidos pelo síndico, exatamente em razão das circunstâncias excepcionais e atípicas nas quais as pessoas estão envolvidas como modo de prevenir a propagação do COVID-19 entre os condôminos, seus familiares, amigos, funcionários e quaisquer outras pessoas que tenham contato com o meio condominial.

O art. 11, I, do PL n° 1.179/20, ao prever a imposição de restrições à utilização das áreas comuns, ressalva apenas a necessidade de tal restrição não atingir o acesso à unidade exclusiva de cada um dos condôminos, seja o apartamento, a sala comercial, o terreno construído. O termo “propriedade exclusiva”, empregado na Lei, deve ser interpretado como sendo o objeto da unidade autônoma (passível de propriedade exclusiva por alguém), mas que possa ser utilizada por outra pessoa que não o proprietário/condômino, como no exemplo do locatário, comodatário, usufrutuário, entre outros.

A interdição de uso da piscina, do playground do condomínio de apartamentos, o fechamento do clube recreativo existente como área comum do condomínio de casas e de prédios de unidades residenciais, por exemplo, são medidas que se inserem no poder emergencial atribuído por lei ao síndico, exatamente em razão das precauções recomendadas pelas autoridades públicas para evitar a disseminação do COVID-19.

A circunstância de não haver sido utilizado o verbo “proibir” quanto à utilização das áreas comuns tem o sentido de, obviamente, ser assegurada a utilização de algumas partes comuns do condomínio edilício pelos condôminos para terem acesso à unidade autônoma e exclusiva, tais como a portaria, os elevadores, as escadas, as ruas existentes para o acesso à casa (unidade exclusiva no condomínio de casas e terrenos). Assim, não haverá qualquer óbice a que o síndico restrinja a utilização dos equipamentos e espaços de uso comum, tais como piscina, academia de ginástica, parque para as crianças, localizados no meio condominial.

O segundo poder emergencial e transitório a ser atribuído ao síndico é o de restringir ou proibir a realização de reuniões, festividades – enfim, atividades de ajuntamento de pessoas no mesmo espaço físico -, inclusive no interior das unidades objeto de utilização exclusiva (como os apartamentos, as salas comerciais, as casas e seus jardins exclusivos), também como medida preventiva à disseminação do COVID-19 no meio condominial (PL n° 1.179/20, art. 11, II). As ressalvas quanto ao exercício de tal poder do síndico se resumem apenas: a) vedação de restrição ao uso exclusivo da unidade pelo condômino, seus familiares e pelo possuidor direto do imóvel (locatário, comodatário, usufrutário, usuário, etc…), nos termos da parte final do inciso II; b) vedação de restrição e de proibição quanto aos casos de atendimento médico a alguém na unidade, de execução de obras de natureza estrutural e de realização de outras benfeitorias necessárias nas partes comuns ou na unidade autônoma (PL n° 1.179/20, art. 11, parágrafo único).

Os preceitos contidos no art. 11, do PL n° 1.179/20, não terão vigência no período posterior a 30.10.2020, seguindo a lógica e a razão de ser de sua excepcionalidade e temporariedade.

O art. 13, do PL n° 1.179/20, apenas reforça as regras dos art. 1.348, VIII, e 1.349, do Código Civil, a respeito do dever do síndico de prestar contas, sob pena de sua destituição, mesmo no período abrangido pela incidência das normas emergenciais e transitórias. Em resumo: a obrigatoriedade da prestação de contas não deixa de existir em razão das circunstâncias excepcionais e emergenciais abrangidas pelo período de risco em decorrência da pandemia. Assim, o síndico não se torna isento do dever de prestação de contas, mesmo quanto aos atos de gestão e administração praticados no período até 30.10.2020.

1.3.Deliberações urgentes em assembleia condominial

Ainda sobre as medidas emergenciais e temporárias que podem ser instituídas pelo PL n° 1.179/20, há regras sobre a faculdade de realização da assembleia condominial e votação por “meios virtuais”, considerando a manifestação de vontade exteriorizada por cada condômino neste caso através da sua participação na assembleia virtual (art. 12). A assembleia dos condôminos é o órgão deliberativo do condomínio edilício, representando a totalidade dos condôminos que, em regra, deliberam através do voto da maioria das frações ideais do terreno e das outras partes comuns, sendo obrigatória a realização de assembleia geral uma vez por ano (CC, art. 1.350) para tratar da aprovação do orçamento, do valor das contribuições condominiais, da prestação periódica de contas e, eventualmente, sobre eleição de síndico e alteração do regimento interno, além de outras matérias e assuntos que possam ser incluídos.

No regime jurídico do condomínio edilício, as decisões tomadas em assembleia obrigam a todos os condôminos, havendo quóruns diferenciados para determinadas deliberações (CC, art. 1.351; Lei n° 4.591/64, art. 25, parágrafo único). Sem suspender a vigência de qualquer uma das regras já existentes no Código Civil e nas leis especiais (em particular, a Lei n° 4.591/64), o art. 12, caput, do PL n° 1.179/20, admite a realização da assembleia e a votação dos condôminos por meios virtuais, a exemplo do que prevê o art. 5°, do PL n° 1.179/20, no que se refere às assembleias e reuniões das pessoas jurídicas de direito privado. As redações parcialmente distintas dos arts. 5° e 12, da possível lei emergencial e transitória, não conduzem a diferenças significativas quanto à faculdade do emprego dos meios tecnológicos de comunicação à distância (por sistemas de áudio e vídeo) para propiciar a realização das assembleias ou reuniões.

A parte final do caput, do art. 12, do PL n° 1.179/20, ao se referir à equiparação da manifestação da vontade exteriorizada por meio virtual à sua “assinatura presencial”, deve ser interpretada no sentido de que a vontade é manifestada à distância, ou seja, com o auxílio dos recursos e instrumentos tecnológicos disponíveis para deixar inequívoca sua aprovação ou sua rejeição às propostas apresentadas pelo síndico ou por outro condômino de acordo com os itens incluídos em pauta, bem como a escolha do síndico, se também este for assunto de pauta. É recomendável, nos casos de realização de assembleias a distância em tempo real, que sejam gravadas as imagens e os sons obtidos durante os debates e votações. E, na eventualidade da assembleia ser realizada nos moldes das sessões virtuais de julgamento dos tribunais – como, por exemplo, abertura da assembleia às 12:00 horas da segunda feira, com encerramento às 11:59 da sexta feira da mesma semana -, que haja a documentação da exteriorização da vontade dos condôminos, como por exemplo através de mensagem eletrônica (por e-mail) dirigida ao síndico e aos demais condôminos, por exemplo.

De todo modo, o PL n° 1.179/20 traz regra que faculta a realização da assembleia condominial por meios virtuais, mas não imporá a sua realização através desses meios, e o objetivo é exatamente atentar para as medidas de prevenção e contenção da propagação da COVID-19 ao permitir a realização e a tomada de deliberações, de maneira válida, através dos meios virtuais, o que poderia ser questionado posteriormente em razão da falta de previsão a esse respeito na legislação de caráter permanente sobre os condomínios edilícios. Para tanto, é necessário que os condôminos sejam devidamente orientados e capacitados a respeito da viabilidade de suas participações nas deliberações assembleares, podendo alguns se mostrar contrários à utilização dos meios virtuais desde que de modo justificado (como, por exemplo, não tendo instrumentos tecnológicos que viabilizem suas “presenças virtuais” nas assembleias designadas).

A regra do art. 12, caput, do PL n° 1.179/20, pode vir a se tornar regra permanente para os condomínios edilícios, mesmo depois de cessada a excepcionalidade do período da COVID-19 e, assim, permitir que haja maior segurança jurídica a respeito da validade das deliberações tomadas em assembleia condominial através dos meios digitais e virtuais de comunicação. Mesmo cessado o período de vigência da norma emergencial e transitória, não haverá qualquer óbice a que os condomínios edilícios incluam nas convenções condominiais regras que autorizem a realização das assembleias por meios virtuais, desde que assegurada a existência de instrumentos e tecnologia que não excluam a participação de qualquer um dos condôminos ou dos possuidores diretos das unidades exclusivas.

Caso não seja possível a realização da assembleia condominial no período de vigência da regra do caput, do art. 12, do PL n° 1.179/20, há a  previsão de norma que prorrogará automaticamente os mandatos vencidos do síndico no período de 20.03 a 30.10.2020 para esta última data, pressupondo que no final de outubro de 2020 seja possível a realização de assembleia condominial presencial no mesmo espaço em razão do encerramento das restrições ou proibições de reuniões de pessoas simultaneamente no mesmo recinto.  Trata-se de medida salutar, ainda que excepcional, para não permitir que o condomínio fique sem seu gestor, ainda que por um período de alguns meses ou mesmo dias, o que poderia causar prejuízos ao meio condominial.

As regras previstas nos arts. 11 a 13, do PL n° 1.179/20, também se aplicarão aos modelos condominiais que guardam semelhança com o condomínio edilício, naquilo que couber, como no exemplo do condomínio em multipropriedade (CC, art. 1.358-B e seguintes, na redação dada pela Lei n° 13.777/18). Por definição legal, multipropriedade imobiliária “é o regime de condomínio em que cada um dos proprietários de um mesmo imóvel é titular de uma fração de tempo, à qual corresponde a faculdade de uso e gozo, com exclusividade, da totalidade do imóvel, a ser exercida pelos proprietários de forma alternada” (CC, art. 1.358-C, caput), sendo aplicáveis as regras do Código Civil e das Leis n°s. 4.591/64 e 8.078/90, de forma supletiva e subsidiária, ao meio condominial formado entre os multiproprietários (CC, art. 1.358-B). Logo, também no exemplo do condomínio em multipropriedade imobiliária haverá os órgãos referentes à administração e às deliberações do referido condomínio e, neste particular, aplicam-se as regras emergenciais e transitórias introduzidas pelo PL n° 1.179/20, quanto à atuação do administrador do condomínio e às deliberações nas assembleias dos condôminos/multiproprietários.

2.Medidas excepcionais sobre as relações familiares e a sucessão hereditária

O RJTE, a ser instituído pelo PL n° 1.179/20, também se preocupou com os impactos da pandemia do COVID-19 no âmbito das relações familiares e sucessórias, notadamente em virtude das determinações e/ou recomendações feitas pelas autoridades públicas. Diante das notícias científicas referentes aos modos de contágio do COVID-19 e de seus possíveis efeitos letais, notadamente em relação às pessoas consideradas integrantes de grupos mais vulneráveis – tais como os idosos, as pessoas com alguma doença preexistente de natureza cardíaca ou respiratória -, algumas medidas vêm sendo impostas e ou outras recomendadas pelas autoridades públicas (e até por cientistas ligados às pesquisas científicas referentes à transmissão do COVID-19) e que alteraram o “modus vivendi” no âmbito das relações familiares.

As medidas de distanciamento social, de utilização de certos equipamentos para prevenir o contágio, aliadas às realidades decorrentes das mudanças operadas nos segmentos das atividades profissionais – tais como o trabalho remoto em casa (home office) -, ao mesmo tempo que ensejaram, em muitos casos, a suspensão do convívio presencial entre alguns familiares (tais como avós e netos, tios e sobrinhos, irmãos), simultaneamente, permitiram a potencialização do contato efetivo entre os cônjuges, os companheiros, e pais e filhos.

O PL n° 1.179/20  prevê duas regras emergenciais e transitórias para tratar das questões envolvendo as famílias: a) a questão referente à situação do devedor de alimentos com prisão civil decretada; b) a suspensão temporária das regras legais quanto ao início e ao término dos inventários, adjudicações de herança ou partilha de bens.

Outros temas propositadamente não foram incluídos no PL n° 1.179/20, tais como possíveis alterações do regime jurídico da guarda dos filhos comuns, modificação da obrigação dos alimentos especialmente quanto à redução do quantum ou exoneração, ainda que na tramitação do projeto de lei tenham sido apresentadas propostas para inclusão de tais questões[2].

2.1.Alimentos: prisão civil, “quantum”

O primeiro tema constante do Capítulo XI, do PL n° 1.179/20, é o da prisão civil do devedor de alimentos no âmbito das relações familiares, alterando a regra do art. 528, do CPC/2015, ainda que no período até 30.10.2020, para somente permitir que a prisão se dê exclusivamente sob a modalidade de prisão domiciliar, e não em estabelecimento prisional.

Em razão da importância dos alimentos no Direito de Família – baseados na noção de assegurar a vida da pessoa do alimentando -, a única possibilidade atual de prisão civil é a do devedor de alimentos, o que é expressamente ressalvado na Constituição Federal (art. 5°, LXVIII) e decorrente de disposição contida no Pacto de São José da Costa Rica. Trata-se de medida extrema, cujas imposição e execução são tratadas no âmbito da legislação processual (CPC/2015, art. 528).

O devedor de alimentos – em razão de acordo celebrado entre as partes ou por determinação contida em decisão interlocutória que fixe os alimentos ou em sentença que deva ser cumprida – será pessoalmente intimado para, em 3 (três) dias, “pagar o débito, provar que o fez ou justificar a impossibilidade de efetuá-lo” (CPC/2015, art. 528, caput). Na eventualidade de não ser atendida a determinação judicial, o juiz mandará protestar o pronunciamento judicial (CPC/2015, art. 528, § 1°) e decretar a prisão civil pelo prazo de 1 (um) a 3 (três) meses, cujo cumprimento ocorrerá em regime fechado, ainda que separado dos presos comuns do sistema de justiça penal (CPC/2015, art. 528, §§ 3° e 4°).

O débito alimentar que enseja o decreto de prisão civil compreende aquele referente ao período de até 3 (três) prestações anteriores ao ajuizamento da medida visando o cumprimento do acordo, da decisão interlocutória ou da sentença, e desde que o alimentando não tenho optado por promover as medidas de execução de obrigação de pagar quantia certa (CPC/2015, art. 528, §§ 7° e 8°, c.c. art. 520 e seguintes).

O art. 18, do PL n° 1.179/20, suspenderá a vigência do § 4°, do art. 528, do CPC/2015, para prever que o cumprimento da prisão civil decretada se dará exclusivamente sob a modalidade de prisão domiciliar até 30.10.2020, como medida emergencial e transitória decorrente do risco de contágio do COVID-19 no âmbito do sistema carcerário existente no território nacional. No Parecer n. 18/2020, da Senadora Simone Tebet, houve expressa menção de que tal regra objetiva alinhar o texto do projeto de lei à orientação adotada pelo Superior Tribunal de Justiça a respeito do tema, que foi manifestada em decisão da Ministra Nancy Andrighi, como medida de contenção da pandemia causada pelo COVID-19, com base na Recomendação n. 62/2020, do Conselho Nacional de Justiça[3].

Obviamente que a regra transitória será aplicável para os casos de decreto de prisão civil do devedor de alimentos, pois, em razão das consequências econômicas da pandemia e dos atos praticados pelas autoridades públicas, pode ser que o devedor de alimentos venha a ficar desempregado, ou impossibilitado de dar prosseguimento às suas atividades profissionais (como empresário, ou profissional autônomo) – como no exemplo do fechamento do seu estabelecimento na via pública ou no shopping center – e, assim, justificar a impossibilidade de efetuar o pagamento do débito alimentar. Neste caso, havendo comprovação de fato que impossibilite de modo absoluto o inadimplemento da pensão alimentícia, o juiz não decretará a prisão civil (CPC/2015, art. 528, § 2°).

O art. 1.699, do Código Civil, trata da regra da alteração dos alimentos desde que ocorra mudança na situação financeira do credor ou do devedor dos alimentos, no sentido da exoneração, redução ou majoração da obrigação alimentar. O binômio necessidade/possibilidade, apurado no momento da quantificação inicial dos alimentos, pode ser alterado no curso da relação jurídica decorrente da obrigação alimentar e, por isso, o desequilíbrio que venha a ser detectado deve ser corrigido para fins de atender a equação de proporcionalidade[4]. Reconhece-se a presença da cláusula rebus sic stantibus no acordo ou na sentença de alimentos e, por isso, o quantum dos alimentos se manterá inalterado enquanto forem mantidas as condições objetivas (de necessidade e de possibilidade) que permitiram sua implantação.

Desse modo, a legislação brasileira já prevê mecanismos para o devedor poder requerer a redução – ou, em situações mais graves – a exoneração dos alimentos anteriormente acordados ou impostos judicialmente, tratando-se, obviamente, de hipóteses merecedoras de apreciação urgente, notadamente no período de crise decorrente da pandemia do COVID-19.

Para os casos em que não haja motivo para redução ou exoneração dos alimentos, havendo inadimplemento injustificado, e atendidos os requisitos da legislação processual, caberá o decreto de prisão civil que, até 30.10.2020, somente poderá ser cumprido em regime domiciliar. Atualmente, a tecnologia tem permitido o monitoramento do cumprimento de determinações judiciais de prisão domiciliar, por exemplo, com o emprego das “tornozeleiras eletrônicas” e, por isso, ainda que haja flexibilização das medidas sanitárias, por exemplo, com a admissibilidade de certos deslocamentos pelas pessoas em geral, o devedor de alimentos não poderá se ausentar da sua residência permanente em razão da prisão domiciliar.

2.2.Guarda de filhos menores

Outro tema que também vem sofrendo efeitos decorrentes da pandemia do COVID-19 e das medidas adotadas pelas autoridades públicas para combater os efeitos nefastos da referida pandemia diz respeito ao regime da guarda dos filhos comuns entre os pais (ou até mesmo outros parentes), não apenas envolvendo ex-casais (que foram casados ou companheiros), mas também pessoas que nunca tiveram relação familiar, mas se tornaram pais do mesmo filho, como no exemplo de namorados que tiveram filho e terminaram seu relacionamento afetivo mesmo antes ou pouco depois do nascimento da criança.

Em decorrência de acordos homologados judicialmente, ou ainda de determinações contidas em decisões interlocutórias ou sentenças transitadas em julgado, o regime de guarda dos filhos comuns, em alguns casos, vem sendo impactado pelos receios de contaminação da COVID-19 e, por isso, há motivos para requerer a alteração do regime anteriormente estabelecido, notadamente em preservação do melhor interesse da criança e do adolescente (CF/88, art. 227; ECA, art. 1°).

Após as reformas de 2008 e 2014 ao Código Civil (arts. 1.583 e 1.584, na redação dada pelas Leis n°s. 11.698/08 e 13.058/14), reconhece-se atualmente como prioritário o regime da guarda compartilhada na definição dos efeitos das relações jurídicas entre pais e filhos menores, mas sempre baseado no princípio do melhor interesse da criança e do adolescente. Deve-se sempre estimular a solução consensual a respeito do tema da guarda do filho comum e, por óbvio, também no período emergencial e transitório do RJET das relações jurídicas de Direito Privado, a solução dialogada entre os interessados, com a oitiva do filho, é o melhor caminho para as devidas adaptações relativas ao efetivo funcionamento do regime da guarda, notadamente nos casos de isolamento social, restrição de locomoção nas vias e logradouros públicos.

Atualmente, com os recursos tecnológicos disponíveis – envolvendo a utilização de plataformas de comunicação on line, com recursos de imagem e de som -, as devidas adequações dos acordos ou determinações judiciais à realidade emergencial e transitória quanto aos efeitos da pandemia do COVID-19, é perfeitamente possível que a criança ou o adolescente não precise se deslocar fisicamente para manter contato em tempo real com o outro genitor – com quem ela não resida – e, assim, atenuar as consequências das medidas restritivas ou proibitivas decretadas ou sugeridas pelas autoridades públicas – aí incluídas as autoridades sanitárias.

A regra do art. 1.583, § 5°, do Código Civil, ainda que se refira tão somente à guarda unilateral, prevê a supervisão que o pai ou a mãe que não tenha a guarda do filho, possa exercer sobre o guardião, exigindo informações e prestações de contas – objetivas e subjetivas – em assuntos e questões que possam repercutir na saúde – física e psíquica – do filho, bem como nos assuntos educacionais. Mesmo no modelo da guarda compartilhada, consoante o qual há o exercício comum da autoridade parental em relação aos pais, buscando preservar a continuidade do contato permanente do filho com ambos os pais, normalmente a criança ou o adolescente terá residência fixa com um deles e, por isso, o outro pai, especialmente nesta época transitória e excepcional – decorrente da calamidade pública decorrente do COVID-19 -, poderá se valer da norma que trata do poder de supervisão sobre os atos do outro guardião, sem necessidade de alteração do modelo para guarda unilateral.

Outro tema relacionado à convivência familiar da criança e do adolescente diz respeito à incidência do art. 1.589, do Código Civil, quanto trata do direito de visita em favor do pai ou da mãe que não tem a guarda jurídica sobre o filho comum, bem como do direito de visita reconhecido aos avós, sempre tendo como referencial o melhor interesse da criança ou do adolescente. O direito de visita – que abrange não apenas ir ao local onde se encontra o filho menor para manter contato com ele, mas também tê-lo em sua companhia, levando-o para outros espaços territoriais (como, por exemplo, a residência do não guardião para passar o fim de semana com o filho) -, obviamente, poderá ser alterado no contexto da pandemia do COVID-19, permitindo que haja a realização das adequações necessárias para preservar a saúde do filho, daí o recurso aos meios tecnológicos, entre outras possibilidades.

A questão mais intrincada envolve o convívio dos netos com os avós, outros parentes idosos ou com doenças consideradas integrantes de grupos de risco (de acordo com as orientações das autoridades sanitárias), porquanto nestes casos também deve incidir preceitos que visam proteger os interesses dos idosos e demais pessoas vulneráveis sob o prisma da saúde. De novo, é recomendada solução negociada entre as pessoas envolvidas, permitindo que a criatividade possa ensejar uma adequação das medidas às restrições e proibições determinadas pelas autoridades públicas.

2.3.Abertura e encerramento de inventário, adjudicação ou partilha

O último ponto a ser tratado neste trabalho envolve tema ligado ao Direito das Sucessões sob o prisma do início e da conclusão dos inventários e adjudicações de herança ou partilhas de bens, em decorrência do falecimento de pessoa no período reconhecido como de calamidade pública decorrente da pandemia do COVID-19. As informações repassadas à comunidade internacional têm dado conta do crescimento vertiginoso do número de óbitos de pessoas contaminadas pelo COVID-19 em vários países, tais como Itália, Espanha, Estados Unidos da América, entre outros. Além dos impactos da pandemia na vida de centenas de milhares de pessoas, há as questões referentes às restrições quanto ao sepultamento devido ao risco de contaminação de outras pessoas, e os efeitos burocráticos quanto às providências de obtenção da certidão de óbito e de realização dos inventários.

O inventário, entendido como modo necessário de liquidação do acervo hereditário, atualmente pode ser realizado pela via da escritura pública (Lei n. 11.441/07; CPC/2015, art. 610, §§ 1° e 2°) ou através de procedimento judicial (CPC/2015, art. 610 e seguintes), com a identificação do sucessor ou dos sucessores (a título universal e a título singular), do acervo hereditário (inclusive as dívidas deixadas pelo falecido), de modo a preparar o monte para posterior adjudicação ao único herdeiro ou partilha entre os herdeiros existentes, separados os bens ou valores dos legatários, se houver.

O art. 1.796, do Código Civil, previu o prazo de 30 (trinta) dias, a contar da abertura da sucessão – morte do autor da herança – para ser aberto o inventário do patrimônio deixado. Tal regra, no entanto, foi alterada para ser estabelecido o prazo de  2 (dois) meses, a contar da abertura da sucessão (CPC/2015, art. 611). A inobservância de tal prazo, contudo, não acarreta qualquer consequência no âmbito dos direitos dos herdeiros e/ou legatários, tratando-se de prazo impróprio. Apenas sob o prisma da incidência do imposto de transmissão causa mortis (ITCM), poderá haver a imposição de multa sobre o valor devido a título do tributo, de acordo com a legislação estadual (ou distrital) aplicável.

O art. 19, caput, do PL n° 1.179/20, criará norma transitória, ao estabelecer que, para as sucessões abertas – coincidentes ao momento do falecimento dos autores da sucessão – a partir de 01.02.2020, o termo inicial de contagem do prazo para realização do inventário (na via extrajudicial ou na via judicial) será a data de 30.10.2020 e, por isso, os herdeiros, o possível inventariante, os legatários, o testamenteiro (se houver) e demais interessados na definição do inventário somente precisarão promover as medidas de início do inventário até dois meses depois do dia 30.10.2020 (ou seja, 30.12.2020). Tal mudança obviamente impactará os sujeitos ativos da relação tributária do ITCM, eis que não haverá atraso nestes casos para abertura do inventário em decorrência da norma transitória criada para ser aplicada apenas no período de reconhecimento oficial da pandemia do COVID-19.

Outro prazo impróprio para o encerramento do inventário, com a efetiva adjudicação dos bens em favor do único herdeiro, ou com a realização da partilha dos bens, valores e outros direitos entre os herdeiros, também mereceu tratamento transitório na lei emergencial. O art. 19, parágrafo único, do PL n° 1.179/20, prevê a suspensão do prazo de 12 (doze) meses (CPC/2015) para ultimação do processo de inventário, adjudicação ou partilha, caso o feito tenha sido iniciado antes de 01.02.2020, até o dia 30.10.2020, data na qual o prazo voltará a ter curso, abatido o prazo anteriormente observado até o dia 01.02. Assim, por exemplo, caso o processo de inventário tenha sido distribuído em 01.12.2019, houve o cômputo de 2 (dois) meses até a suspensão do prazo de 12 (doze) meses (CPC/2015, art. 611, parágrafo único), sendo que tal prazo voltará a correr depois do dia 30.10.2020, até completar os 10 (dez) meses remanescentes do prazo total original.

O prazo de 12 (doze) meses para o encerramento do inventário, adjudicação ou partilha também não implicará perda de direitos sucessórios em favor dos herdeiros e/ou legatários, mas apenas poderá ensejar a remoção do inventariante por possível desídia CPC/2015, art. 622, I e II) ou a perda do direito do testamenteiro à vintena, caso também seja demonstrada sua desídia.  Ou seja: a regra da suspensão do prazo de encerramento do inventário, adjudicação ou partilha, na via judicial, é importante para o inventariante e para o testamenteiro, mas sem qualquer consequência para os herdeiros e/ou legatários.

Deve-se apenas observar que, nos casos em que haja um único herdeiro no acervo hereditário, não será necessária a instauração de inventário judicial, podendo o inventário e a adjudicação do acervo hereditário ao único herdeiro serem realizados por escritura pública. Mas se houver a opção pela via judicial – eis que a escolha da escritura pública é uma faculdade, e não uma imposição legal -, o inventário e a adjudicação terão que seguir o prazo do art. 611, parágrafo único, do CPC/2015, com a suspensão no período de 01.02.2020 a 30.10.2020, por força da possível norma transitória do art. 19, parágrafo único, do PL n° 1.179/20.

Nota conclusiva

O COVID-19 pegou a população dos países de surpresa, deixando todos perplexos com o seu alto grau de contágio e potencial lesivo. Seu surgimento demonstrou que a humanidade não está preparada para enfrentar estes invisíveis inimigos, trazendo para a realidade aquilo que apenas se via nas telas dos cinemas. Os fatos são, induvidosamente, estarrecedores.

Surpreendidas, as maiores potências econômicas se viram de “cabeça para baixo”, tentando solucionar não apenas a crise sanitária e de saúde, mas também graves problemas políticos, jurídicos e econômicos. Sobre estes últimos aspectos, a pandemia revelou que nenhum ordenamento jurídico estava preparado para o enfrentamento de situações como esta. Basta ver a profusão de atos normativos que têm sido editados em países como Alemanha, Estados Unidos da América e também o Brasil, entre outros, para tratar da matéria.

Nesse sentido, o PL n° 1.179/20 se revela como uma iniciativa salutar para tratar, ainda que de modo transitório e excepcional, dos problemas mais urgentes envolvendo as relações privadas. Por certo, trata-se de um projeto de lei elaborada em pouquíssimo espaço de tempo, dada a urgência do contexto de calamidade pública, o que reduziu ou praticamente suprimiu a possibilidade de debates e discussões aprofundadas.

Ainda assim, o PL n° 1.179/20 serve bem ao seu propósito e, por isso, deve ser convertido em lei. Diante da profusão de situações conflituosas que já se apresentam, e outras que certamente irão surgir, faz-se necessária a edição de uma lei visando amainar os efeitos da crise, reduzindo a possibilidade de decisões judiciais arbitrárias, conflitantes e, até mesmo, díspares.

É certo que o PL n° 1.179/20, em sendo transformado em lei, não porá fim a todos os problemas e discussões, fazendo eternizar a paz, tal como se fosse um Dalai Lama jurídico. Não. Dúvidas não há de que insatisfações serão manifestadas, pessoas se sentirão prejudicadas e haverá até mesmo uma certa indignação por parcela da comunidade jurídica.

Sem prejuízo de todos esses percalços, que são comuns à edição de qualquer lei, o PL n° 1.179/20, na grande maioria de suas disposições, propõe regras equilibradas e adequadas ao contexto de excepcionalidade no âmbito das relações privadas, apascentando e evitando discussões que certamente desaguariam e se eternizariam no Judiciário. O PL n° 1.179/20 não é perfeito, e nem poderia sê-lo, inclusive por se tratar de resultado de obra humana. Mas, em nome da segurança jurídica, da estabilidade das relações e da implementação da justiça social em momento de crise institucional e graves efeitos sociais e econômicos, em sendo transformado em lei, cumprirá o seu papel ao permitir que as pessoas saibam qual é o regime jurídico aplicável nas mais importantes questões decorrentes das relações privadas durante a pandemia, afastando, assim, mais uma incerteza dentre as tantas que esta grave crise traz para o próprio futuro da humanidade.

Assim, há que se louvar a iniciativa da edição de uma lei que serve como marco  para instituir um Regime Jurídico Transitório e Emergencial nas relações jurídicas de Direito Privado, pois por certo ajudará a amenizar os tortuosos conflitos que, se ainda não concretizados, já povoam a mente de muitos. Por óbvio, o papel da doutrina e dos tribunais, no exercício das atividades de interpretação e de aplicação das normas transitórias e emergenciais contidas no PL n° 1.179/20, ensejará o aperfeiçoamento da concretização dos preceitos do marco normativo tão importante para reger o contexto de excepcionalidade em decorrência da pandemia do COVID-19 e das medidas das autoridades públicas brasileiras e dos organismos internacionais.


[1] GOMES, Orlando. Direitos reais. 19. Ed. Forense: Rio de Janeiro, 2008, p. 185.

[2] As Emendas n°s. 47, 48 e 49, dos Senadores Soraya Thronicke e Rodrigo Pacheco, tinham como objetivo instituir regras transitórias para permitir a redução do valor anteriormente estabelecido da pensão alimentícia e ensejar a alteração das condições da guarda dos filhos menores pelos pais nos tempos de “quarentena” ou de isolamento social. Tais emendas não foram acolhidas sob o fundamento de que a legislação brasileira já prevê mecanismos para tais hipóteses.

[3] “Por causa do coronavírus, ministra manda devedor de alimentos cumprir prisão domiciliar” (Superior Tribunal de Justiça, Notícias, matéria publicada em 19.03.2020, www.stj.jus.br, visitado em 02.04.2020.

[4] Gama, Guilherme Calmon Nogueira da. Comentários ao art. 1.699. In: NANNI, Giovanni Ettore (coord.). Comentários ao Código Civil: Direito Privado contemporâneo. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 2083.


[1] Desembargador do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (RJ-ES); Professor Titular de Direito Civil da Universidade do Estado do  Rio de Janeiro; Professor Permanente do PPGD da Universidade Estácio de Sá; Professor Titular de Direito Civil do IBMEC; Mestre e Doutor em Direito Civil pela UERJ

[2] Mestre e doutorando em Direito Civil pela UERJ; Professor dos cursos de pós-graduação da EMERJ, do IBMEC e do CERS; Visiting researcher no Max Planck Institute for Comparative and International Private Law – Hamburg-ALE; Vice-Presidente Administrativo da Academia Brasileira de Direito Civil – ABDC e; Advogado.


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