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Períodos de crise: restrições do Estado às liberdades

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José dos Santos Carvalho Filho

José dos Santos Carvalho Filho

24/04/2020

Os regimes democráticos, por sua essência, prezam a observância de alguns axiomas que se afiguram primordiais para sua caracterização, e, entre eles, se inclui a garantia às liberdades individuais e coletivas.

O art. 5º, caput, da Constituição Federal, oferece claramente os valores sociais e humanos que devem ser resguardados nas democracias, expressando-se nos direitos à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, dentro dos parâmetros fixados na própria Carta.

Tais valores sob garantia são clássicos e essenciais, já nascidos nos primórdios do Estado de Direito com o fito de assegurar o respeito à dignidade do ser humano e à sua proteção contra eventual arbítrio cometido pelo poder estatal, além de estabelecer condições mínimas de vida e desenvolvimento da personalidade humana. (1)

Nestes breves comentários, pretende-se desenhar um sucinto perfil da liberdade, um dos valores sob proteção constitucional, sob a pressão de períodos de crise social. Ou seja, das restrições que lhe podem ser impostas em momentos de anormalidade.

Adotando a classificação de José Afonso da Silva, tem-se, de um lado, a liberdade interna, que retrata o livre-arbítrio e o poder de escolha entre mais de uma possibilidade existente. De outro, há a liberdade externa, pela qual são removidos obstáculos ou coações que atinjam o querer individual. (2)

Mediante a liberdade, o indivíduo vai satisfazendo seu bem-estar e sua felicidade pessoal, e isso é próprio da democracia. Quanto mais avança o processo de democratização, mais o indivíduo afasta obstáculos que constranjam a liberdade. Quer dizer: amplia-se a conquista da liberdade como garantia fundamental.

Entretanto, até mesmo a liberdade não pode ser absoluta e, por esse motivo, está sujeita a alguns limites fixados genérica ou especificamente na Constituição. Onde há excesso de liberdade e ausência de barreiras para determinadas, a democracia passa a sofrer arranhões que acabam por descaracterizá-la.

Desse modo, estão alinhadas na Constituição diversas normas – qualificadas como normas de eficácia contida por José Afonso da Silva – em cujo âmbito está previsto um sistema de restrições às liberdades públicas, por meio do qual se permite ao legislador ordinário a imposição de barreiras de contenção no que toca à conduta dos indivíduos.

À guisa de exemplos, cite-se a liberdade do exercício de cultos religiosos e da proteção dos locais em que são praticados (art. 5º, VI, CF). Ainda, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva (art. 5º, VII, CF). Também: a locomoção no território do país em tempos de paz, permitindo-se que o indivíduo entre, permaneça ou dele saia com seus bens (ar. 5º, XV, CF). Em todas essas hipóteses, pode haver limitações.

Habitualmente, as normas inserem a expressão “na forma da lei”, “nos termos da lei” ou outra expressão análoga, para possibilitar a intervenção restritiva do Estado. Entretanto, não se trata de conditio sine qua; há mandamentos que, mesmo sem elas, permitem restrições como resultado do processo interpretativo da volitio constitucional.

No entanto, as próprias restrições estão sujeitas a limites, não podendo assim desnaturar o preceito garantidor da liberdade. Em outras palavras, eventuais restrições não podem estender-se ao ponto de atingir a própria essência do preceito, culminando por elidir seu conteúdo. Nesse caso, a restrição será inconstitucional.

Esses parâmetros aplicam-se em períodos de normalidade, em que inexiste qualquer fato que afaste o equilíbrio que impera nas instituições e populações. Mas, nos períodos de crise, esses parâmetros sofrem algumas modificações para adaptar-se à situação de anormalidade social e, frequentemente, suscitam dúvidas quanto à sua legitimidade.

O que se quer dizer é que a democracia é una e global, mas suas linhas de equilíbrio jamais podem ser idênticas em momentos de normalidade e de crise social. É indiscutível que, sujeito à crise, o Estado se torna muito mais interventivo e restritivo no sistema das liberdades. Longe está, porém, qualquer afronta à democracia; ao contrário, essa postura serve justamente para preservá-la.

A própria Constituição admite a ocorrência de crises mais expressivas e, para a defesa do Estado e da democracia, acautela-se mediante a decretação do estado de defesa (art. 136) e do estado de sítio (arts. 137 a 139). Em tais situações, são previstas várias medidas restritivas que se contrapõem, em tese, às liberdades individuais ou coletivas. Para exemplificar, o estado de defesa permite restrições à liberdade de reunião e ao sigilo de correspondência (art. 136, § 1º, I, “a” e “b”). No estado de sítio, admite-se a obrigação de permanecer em localidade determinada (art. 139, I).

A pandemia da COVID-19, pela grande celeridade de contágio e pelo alto grau de letalidade, tem ocasionado situação de extensa crise social no que toca à saúde pública e à inusitada e assustadora contaminação da doença. Como em outros países – porque a crise é globalizada -, medidas severas têm sido adotadas para superá-la.

Uma delas foi a edição do Decreto Legislativo nº 6, de 20.3.2020, pelo qual foi declarado estado de calamidade pública, com a permissão de admitir exceções de natureza fiscal relativamente à Lei Complementar nº 101/2000, que regula a responsabilidade na gestão fiscal.

Outras medidas, contudo, atingem diretamente a liberdade dos indivíduos. O noticiário diuturno nos fornece uma série de exemplos. Medida inusitada, por exemplo, foi a proibição de frequentar praias, ou de formar aglomerações. A recomendação de quarentena não chega a ser medida coercitiva, mas em vários países foi proibida a circulação de pessoas – e, portanto, tocando na liberdade de ir e vir – sem a comprovação da real necessidade.

No HC 572.269, o STJ, por decisão do Ministro Jorge Mussi, indeferiu a ordem em pedido para a concessão de salvo-conduto visando ao acesso a praias públicas. No pedido, o impetrante, hostilizando o Decreto 47.006/2020, do Estado do Rio de Janeiro, postulou fosse concedido acesso a todas as pessoas não contaminadas pelo coronavírus. Embora a decisão se tenha fundado na impossibilidade de apreciar HC contra ato normativo em tese, extrai-se que, na essência, a vedação não foi considerada ofensa à liberdade.

Ainda em virtude da pandemia, a Prefeitura do Rio de Janeiro idealizou requerer ao Judiciário a transferência compulsória de idosos moradores da Favela da Rocinha para hotéis, considerando a sua vulnerabilidade e a perigosa e rápida contaminação na comunidade. (3)

Enfim, trata-se apenas de alguns exemplos dentre tantos que traduzem intervenções restritivas levadas a cabo pelo Estado nesses tempos de COVID-19. Algumas delas têm sido questionadas, pois que, em tese, ofendem algumas liberdades. No entanto, não há dúvida de que, para preservar o interesse público, no caso a saúde, urge sejam tomadas, em momentos de crise, providências incompatíveis com as liberdades em seu sentido integral. Tudo, porém, se situa no regime democrático.

Por isso, repete-se aqui, os parâmetros de atuação estatal e de garantia das liberdades ficam arrefecidos em períodos de crise social. Infere-se ser aplicável, nesses casos, a teoria da ponderação de princípios, pela qual certo princípio pode prevalecer sobre outro de conteúdo antagônico como decorrência da especificidade da situação concreta. Em tempos de pandemia, o princípio da garantia da vida e da saúde têm supremacia sobre algumas liberdades, inclusive a de ir e vir, tudo em função da necessária tutela à população.

E qual seria o problema em relação à mudança de parâmetros constitucionais nos períodos de crise? Sem dúvida, é a aplicação dos parâmetros excepcionais. O emprego destes deve cercar-se de equilíbrio e sensatez das autoridades estatais e nunca ultrapassar os limites do que for absolutamente indispensável. Haverá perigo à democracia se houver tendências autoritárias.

Por outro lado, é indiscutível a dificuldade de exercer efetivo controle sobre eventuais atos inconstitucionais. A uma, porque se trata de situação de crise social. A duas, porque inexistem normas expressas pautando a conduta dos agentes estatais. A três, porque autoritarismos vêm habitualmente escamoteados por capa de legitimidade.

É sempre bom estarmos atentos à certeza de que agressões à democracia não mais se perpetuam por fuzis e canhões. Modernamente, como o comprovam inúmeros exemplos, entender o modo com que “regimes democráticos tradicionais e consolidados são enfraquecidos de modo ‘legal’, por dentro, é fundamental”, como assevera com razão o cientista político Jairo Nicolau. (4)

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NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

(1)       ALEXANDRE DE MORAES, Constituição Federal comentada, obra colet., Gen/Forense, 2018, p. 44.

(2)       JOSÉ AFONSO DA SILVA, Direito constitucional positivo, Malheiros, 20ª ed., 2002, p. 230.

(3)       Jornal “O Globo”, de 15.4.2020, p. 12.

(4)       JAIRO NICOLAU, no prefácio à obra Como as democracias morrem, de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, Zahar, 2018, p. 11.


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