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A necessidade de prévio requerimento e o uso da plataforma consumidor.gov.br

CONSUMO

CPC

JUDICIÁRIO

PLATAFORMA CONSUMIDOR GOV

PRINCÍPIO DO ACESSO À JUSTIÇA

REQUERIMENTO ADMINISTRATIVO

RESOLUÇÃO DE CONFLITOS

Fernando Gajardoni

Fernando Gajardoni

14/05/2020

É necessário prévio requerimento administrativo para o acesso ao Poder Judiciário? Seria essa uma condicionante legítima para o acesso ao sistema de Justiça?

Esta questão, que durante longos anos foi respondida no Brasil de modo negativo, tem ganhado novos contornos a partir de diversos precedentes de Tribunais Superiores, em releitura das condições para o exercício do direito de ação, especialmente do interesse processual (interesse de agir).

De fato, visto o interesse processual ser o juízo de necessidade/adequação, não parece fazer sentido se afirmar “necessário” o pronunciamento judicial sem que o interessado tenha, antes, manifestado ao adversário sua pretensão. Antes do conhecimento de tal pretensão sequer poderia se pensar em resistência ao pedido.

Além disso, não se pode ignorar o estímulo que o CPC confere aos meios extrajudiciais de solução de conflitos (art. 3º, § 3º).

Desse modo, é necessária a releitura do princípio do acesso à justiça, de maneira que – dentro de certos parâmetros e desde que isso seja possível sem maiores dificuldades – não viola o art. 5º, XXXV, da CF e o art. 3º, caput, do CPC a exigência de prévio requerimento extrajudicial antes da propositura de ações perante o Judiciário.

É possível verificar a evolução da jurisprudência nesse sentido, deixando de lado uma visão de que sempre, em qualquer situação e sem qualquer critério, seria possível ajuizar uma medida judicial. Vejamos alguns exemplos.

O Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento do Recurso Extraordinário 631.240, com repercussão geral reconhecida, considerou que a exigência do prévio requerimento administrativo em causas previdenciárias – antes de o segurado recorrer à Justiça para a concessão de benefício previdenciário – não fere a garantia de livre acesso ao Judiciário, previsto no artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal. Isso porque sem pedido administrativo anterior, não fica caracterizada lesão ou ameaça de direito. Em seu voto, o ministro Roberto Barroso considerou que “não há como caracterizar lesão ou ameaça de direito sem que tenha havido um prévio requerimento do segurado. O INSS não tem o dever de conceder o benefício de ofício. Para que a parte possa alegar que seu direito foi desrespeitado é preciso que o segurado vá ao INSS e apresente seu pedido” (grifos nossos).

Ficou decidido, porém – dentro da visão de que a exigência de prévio requerimento perante o INSS não pode ser erigida a instrumento de postergação ou embaraço do acesso à Justiça (aí sim, óbice inconstitucional) –, que não é necessário o exaurimento de todas as instâncias administrativas, não havendo impedimento ao segurado para que ingresse no Judiciário antes que eventual recurso seja examinado pela autarquia. Considerou-se, ainda, não haver de aguardar a apreciação de prévio requerimento administrativo para que o segurado ingresse judicialmente: a) com pedidos de revisão de benefícios (a não ser nos casos em que seja necessária a apreciação de matéria de fato); b) com pedidos em que a posição do INSS seja notoriamente contrária ao direito postulado (como é o caso das aposentadorias por idade rural com base exclusivamente em prova oral); e c) com pedidos em que, apresentado o requerimento administrativo, não haja resposta do INSS em prazo razoável.

Esse mesmo entendimento se aplica à exibição de documentos junto a bancos. O STJ tem decidido que a exigência de requerimento prévio junto à agência bancária é indispensável para aquilatar o interesse processual/necessidade e, assim, não viola o princípio do acesso à Justiça. Nesse sentido, “a propositura de ação cautelar de exibição de documentos bancários (cópias e segunda via de documentos) é cabível como medida preparatória a fim de instruir a ação principal, bastando a demonstração da existência de relação jurídica entre as partes, a comprovação de prévio pedido à instituição financeira não atendido em prazo razoável, e o pagamento do custo do serviço conforme previsão contratual e normatização da autoridade monetária” (STJ, Resp. 1.349.453-MS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 10.12.2014, grifos nossos).

A exigência de prévio requerimento tem sido estendida, ainda, para outros tipos de demandas judiciais, como nas cobranças de seguro obrigatório (DPVAT) junto à Seguradora Líder (Resolução CNSP 154/2006 e Portaria CNSP n° 2.797/07) e, mais recentemente, em pedidos direcionados às pessoas jurídicas de direito público para fornecimento de medicamento de alto custo. Em ambos os casos, somente após a prévia negativa da cobertura pela seguradora, ou do atendimento à demanda de saúde pela administração direta, que se tem permitido o processamento das ações respectivas perante o Poder Judiciário.

A tendência está bem-posta e, aparentemente, ainda será estendida para casos outros1. A necessidade de racionalização do acesso à Justiça (essencial para a própria contenção de gastos em um Estado agigantado) e de se reduzir o número de demandas derivadas de conflitos hipotéticos (em que o adverso sequer tem conhecimento prévio da pretensão apresentada em juízo) bem indica que o mote do Sistema de Justiça é cada vez mais prestigiar mecanismos extrajudiciais de solução dos conflitos, sejam os contenciosos administrativos nos casos de demandas contra o Poder Público, os SACs (Serviços de Atendimento ao Consumidor) nas relações de consumo, ou mesmo as ferramentas, especialmente virtuais, de recepção e atendimento a reclamações.

Evidentemente, tal releitura pressupõe um grau de eficiência mínima da instância administrativa2. Tanto a administração pública quanto as empresas privadas devem conceber meios eficientes e julgamentos pautados nas reais expectativas jurídicas das partes, solucionando as questões favoravelmente ao demandante todas as vezes que puderem identificar que este possui significativas chances de ter seu pedido acolhido caso, no futuro, valha-se do Judiciário3.

Neste quadrante ganha especial relevo a plataforma consumidor.gov.br. Trata-se de plataforma digital que permite a interlocução direta entre consumidores e empresas, via internet, para solução de conflitos de consumo, evitando, assim, o ajuizamento de ações perante o Judiciário (especialmente JECs).

Monitorada pela Secretaria Nacional do Consumidor – Senacon – do Ministério da Justiça, Procons, Defensorias, Ministérios Públicos e, também, por toda a sociedade, a ferramenta permite que as reclamações dos consumidores sejam encaminhadas diretamente a empresas previamente cadastradas no sistema, que têm o prazo de 10 (dez) dias para apresentar uma solução ao problema4.

Considerando a possibilidade de aperfeiçoamento da plataforma e expansão de seu alcance para outras empresas, afigura-se correto o entendimento, baseado na proposta aqui apresentada, de que o exercício do direito de ação perante o Judiciário seja condicionado à prévia tentativa de solução do conflito através da referida plataforma, desde que se trate de fornecedores previamente cadastrados no sistema e que tenham histórico razoável de solução extrajudicial de litígios por esta plataforma.

Isso obviamente dependerá da credibilidade desse sistema de resolução de conflitos, cuja responsabilidade recai sobre os seus próprios usuários, utilizando-o como oportunidade efetiva de resolver conflitos de parte a parte, sem os custos inerentes ao Poder Judiciário. Uma sociedade que se pretende madura deve ser capaz de resolver algumas controvérsias via negociação direta, não necessitando ser, invariavelmente, tutelada pelo Poder Judiciário.

Por evidente, tanto quanto nos casos de ações previdenciárias e exibitórias, esse entendimento deve ser temperado pela admissão de hipóteses excepcionais em que o acesso à Justiça se daria de forma direta, como nos casos em que: a) a resposta não se dê em tempo razoável; b) os pedidos de consumidores, de ordinário, não são atendidos pelos fornecedores cadastrados; e c) seja necessária tutela de urgência, não sendo possível ao jurisdicionado aguardar eventual solução extrajudicial.

Assim, salvo nos casos excepcionais acima expostos, se houver uma demanda de consumo ajuizada em face de empresa cadastrada no sistema, é lícito ao juiz determinar ao autor que comprove ter utilizado previamente a plataforma consumidor.gov.br (CPC, arts. 6º, 10 e 321), sob pena de indeferimento da inicial, por falta de interesse de agir (CPC, art. 330, III). Portanto, apenas após a comprovação de uso desse sistema – e insucesso na composição extrajudicial – é que o juiz determinaria a citação do réu.

De se considerar, ainda, que uma vez tentada a solução extrajudicial do conflito pela plataforma consumidor.gov.br, e não havendo sucesso na pretensão extrajudicialmente esboçada, fica dispensada a audiência de conciliação do art. 334 do CPC ou do art. 21 da Lei 9.099/95, até como forma de acelerar o tramitar do processo judicial e desincentivar comportamento ímprobo de fornecedores (que podem ver na prévia exigência do uso da plataforma salvaguarda para postergar a prestação da tutela jurisdicional).

Fato é que a nova leitura do princípio do acesso à Justiça leva à conclusão de que o Judiciário deve mesmo ser a ultima ratio. Sendo possível a apresentação de prévio requerimento administrativo junto a órgãos oficiais constituídos (como é o caso da plataforma consumidor.gov.br), sem que existam quaisquer óbices nesse sentido, ausente também qualquer prejuízo pelo tempo de resposta destes órgãos, tal requerimento deve ser considerado como condição para o exercício do direito de ação (interesse processual – necessidade) perante o Judiciário.

FONTE: Migalhas

__________

1 Nesse sentido, a doutrina processual começa a caminhar para a releitura do acesso à justiça. Como exemplo, João Batista Lopes, em artigo ainda inédito, aponta que o “atual modelo processual está esgotado”, sendo necessário repensá-lo, propondo uma série de sugestões para “coibir o abuso no direito de demandar”, dentre as quais uma proposta em parte análoga ao que se defende neste artigo (Modelo Constitucional de Processo e lentidão da Justiça, artigo aceito para publicação na RePro).

2 Sobre o tema, já se advertiu: “Em contrapartida, atualmente ganha forc¸a a tese de ausência de interesse processual pela inexistência de exaurimento da via administrativa, exceto se demonstrado, prima facie, a absoluta impossibilidade de qualquer êxito naquela (decisões ou práticas administrativas anteriores e contrárias ao êxito do requerimento administrativo). Conquanto sejamos simpáticos à tese, ela pressupõe e exige a estruturação adequada dos contenciosos administrativos, a fim de oferecer respostas rápidas e com qualidade aos administrados. No contexto atual, em que o procedimento administrativo, ressalvadas algumas exceções, apresenta baixa performance, inviável exigir seu prévio exaurimento, sob pena de erigir mais um obstáculo ao acesso à justiça”. (GAJARDONI, Fernando da Fonseca; DELLORE, Luiz; ROQUE, Andre Vasconcelos; OLIVEIRA JUNIOR, Zulmar Duarte de. Teoria geral do processo: comentários ao CPC de 2015; parte geral. 3. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 125)

3Louvável, por isso, a edição do recente decreto 9.830, de 10 de junho de 2019, regulamentando a nova redação dos artigos 20 ao 30 do decreto-lei 4.657, de 4 de setembro de 1942, que pretende qualificar a motivação das decisões, inclusive administrativas.

4 De acordo com dados informados na própria plataforma, 80% das reclamações registradas no Consumidor.gov.br são solucionadas pelas empresas, que respondem as demandas dos consumidores em um prazo médio de 7 dias. Evidente, portanto, estar atendido o grau de eficiência mínimo a que se referiu anteriormente.


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