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Prestação de contas em obrigação alimentar: breves notas sobre o REsp 1.814.639/RS

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Prestação de contas em obrigação alimentar: breves notas sobre o REsp 1.814.639/RS

ALIMENTOS

AUTORIDADE PARENTAL

DIREITO CIVIL

DISCIPLINA DOS ALIMENTOS

OBRIGAÇÃO ALIMENTAR

PRESTAÇÃO DE CONTAS

PROCESSO CIVIL

RESP 1.814.639/RS

Gustavo Tepedino
Gustavo Tepedino

08/07/2020

Publicado em 9 de junho de 2020, o REsp 1.814.639/RS[1] estabelece novo paradigma para as relações parentais em termos de obrigação alimentar. Em boa hora, abandona-se a racionalidade estritamente patrimonial, pautada na análise exclusiva da titularidade sobre os recursos pagos a título de obrigação alimentar como parâmetro para a averiguação da legitimidade na prestação de contas. Compatibiliza-se a interpretação da matéria com a perspectiva personalista, alinhada ao princípio da proteção integral da criança e do adolescente e com base em releitura da autoridade parental de modo consentâneo com os valores constitucionais.

O cerne da controvérsia girava em torno da viabilidade jurídica da ação de prestar (exigir) contas ajuizada pelo alimentante contra a guardiã do alimentando, para fins de obtenção de informações acerca da destinação da pensão paga mensalmente. O problema específico veio a lume com o ingresso no ordenamento jurídico da lei 13.058/14, que incluiu a norma contida no § 5º do art. 1.583 do Código Civil, versando sobre a legitimidade do genitor não guardião para, com o propósito de “supervisionar os interesses do filho”, “solicitar informações e/ou prestação de contas” em face da genitora titular da guarda unilateral. Em vista disso, a 3ª Turma deu parcial provimento ao recurso para obrigar a mãe a apresentar contas ao pai, demonstrando como utiliza os valores pagos a título de pensão alimentícia. A decisão foi tomada por maioria de três votos a dois, após o ministro Moura Ribeiro abrir divergência. O ministro enfatizou a necessidade de contornar os entraves procedimentais decorrentes da interpretação até então predominante dos arts. 550 a 553 do Código de Processo Civil, para admitir a prestação de contas no caso, sob pena de se deixar a parte sem instrumento legal para efetivar seu direito.

O entendimento anterior centrava-se na ilegitimidade ativa do alimentante, na medida em que apenas o filho seria parte legítima para pleitear a ação de prestação de contas, e não o alimentante, como ocorria com frequência. Além disso, não raro afirmava-se que o provimento juris­dicional não seria útil, em face da irrepetibilidade dos alimentos. Ou seja, ainda que se consignasse a utilização irregular dos alimentos, não se admitiria como consequência a repetição dos valores auferidos, razão pela qual a mobilização do aparato estatal e a decisão judicial restariam ineficientes. Argumentava-se, ainda, que, uma vez entregue a prestação alimentar ao guardião, a este era transferida automaticamente a gestão exclusiva do respectivo valor pecuniário, que sabia a melhor forma de gasto do dinheiro, já que guardião exclusivo, esvanecendo-se, também por isso, a possibilidade jurídica da prestação de contas em alimentos.

A mudança de posição fundamentou-se na doutrina da proteção integral, no princípio do melhor interesse da criança e do adolescente e do legítimo exercício da autoridade parental. Sustentou-se, assim, a viabilidade, em determinadas hipóteses, da ação de exigir contas ajuizada por genitor alimentante contra o guardião e representante legal de alimentando incapaz, na medida em que tal pretensão associa-se à saúde física e psicológica do menor.

Na análise das vicissitudes concretas evidenciadas no REsp 1.814.639/RS, toma-se em relevo importantes circunstâncias, como o seríssimo quadro de saúde apresentado pelo alimentando, que possui severas necessidades especiais. Por outro lado, o caso concreto traz graves indícios de que os valores recebidos a título de alimentos não estariam sendo vertidos em proveito do menor. Ilustrativamente, a criança estuda em escola pública, deixando de frequentar escolas inclusivas que teriam maiores condições de proporcionar atenção especial a crianças nas condições em que se encontra. Por outro lado, o valor da pensão prestada por seu genitor já chegou a atingir o patamar de trinta salários mínimos, além do custeio de seu plano de saúde.

Diante de diversos indícios do mau uso da pensão, o genitor não guardião “não apenas poderia, mas deveria ter algum mecanismo de acompanhamento para ver se os alimentos estão efetivamente vertidos em favor do menor com tantos problemas. Poderá, inclusive, ser responsabilizado por sua omissão”, conforme destacou a ministra Nancy Andrighi, em voto de desempate.

Segundo a orientação vencedora, a função supervisora figura (não apenas como direito, mas) como verdadeiro dever imposto pelo ordenamento, por qualquer dos titulares da autoridade parental, acerca do modo pelo qual a verba alimentar é empregada. O dever legal manifesta-se, inclusive, no § 5º do art. 1.538 do Código Civil. O entendimento reforça a compreensão de que a autoridade parental dos genitores em relação aos filhos menores, a teor do art. 1.632 do Código Civil, não se desfaz com o término do casamento ou da união estável. De fato, após a separação dos genitores, o poder-dever do não guardião permanece íntegro para a promoção e defesa dos interesses do filho menor.

Ao refutar o argumento, até então apregoado, de ausência de legítimo interesse do alimentante após a definitiva transmissão dos alimentos, a decisão bem salienta que “o que justifica o legítimo interesse processual em ação dessa natureza é só e exclusivamente a finalidade protetiva da criança ou do adolescente beneficiário dos alimentos, diante da sua possível malversação, e não o eventual acertamento de contas, perseguições ou picuinhas com a(o) guardiã(ao), devendo ela ser dosada, ficando vedada a possibilidade de apuração de créditos ou preparação de revisional pois os alimentos são irrepetíveis”.

Afinal, de que adiantaria todo o escopo protetivo constitucional assegurado às crianças e aos adolescentes, sem os meios e garantias efetivas para a consecução do dever de protegê-las integralmente e com absoluta prioridade, inclusive em assunto relacionado à prestação de alimentos? Daí a relevância da ação de exigir contas, que torna efetiva a linguagem textual do aludido art. 1.583, § 5º, na supervisão dos interesses do menor e prestação de contas em favor do alimentante, cotitular da autoridade parental.

O magistrado há de levar em consideração que o correto emprego dos alimentos prestados a menor ou incapaz tem o condão de assegurar seu livre desenvolvimento, garantindo-lhe as condições materiais e morais essenciais à realização de sua personalidade e à preservação de sua vida, saúde, liberdade e integridade psicofísica. Caberá ao magistrado, evidentemente, com o emprego da razoabilidade exigida pela legalidade constitucional, evitar que a ação de prestação de contas seja utilizada como instrumento de controle do alimentante em relação à vida pessoal do guardião. Tal indesejável risco, todavia, não é novo, e se aplica a qualquer procedimento judicial, cujo exercício abusivo há de ser rechaçado, especialmente na atuação de qualquer dos genitores que pretendesse fazer da autoridade parental ou da guarda expediente oblíquo para resgatar rancores pessoais.

O REsp 1.814.639/RS, pautado nos argumentos acima expostos, abre caminho para a adequação às situações existenciais de estruturas procedimentais originariamente previstas para relações patrimoniais. Afinal, categorias e institutos jurídicos devem ser identificados e compatibilizados, do ponto de vista hermenêutico, à função a ser desempenhada. Ou seja, a função precede o modelo jurídico escolhido, e não o contrário. Em outras palavras, a promoção do melhor interesse dos menores em desenvolvimento, sua integridade psicofísica e a formação de sua personalidade determinam, conformam e delimitam a atuação dos titulares da autoridade parental (independentemente da guarda), assim como a atuação processual do autor da ação de prestação de contas.

Daí a importância da decisão, que leva em conta a função a que se destinam os alimentos, bem como seu caráter dúplice, com faceta material, mas também – e especialmente – imaterial. Desse modo, supera-se a lógica própria de relações patrimoniais, pela qual a transferência da propriedade retirava do alimentante o interesse sobre a disponibilidade do bem transferido, que passava ao controle exclusivo do novo proprietário. Sob a perspectiva da autonomia existencial e do princípio do melhor interesse da criança, convém repetir: a autoridade parental é assegurada independentemente da atribuição da guarda e deve ser exercida por ambos os genitores sempre no interesse do alimentante.

Nessa esteira, a nova interpretação redimensiona, com inegável acerto, a compreensão da autoridade parental e a disciplina dos alimentos, administrados pelo guardião no exclusivo interesse dos filhos com vistas à formação integral de sua personalidade.

Do ponto de vista do direito processual, o acórdão também deixa claro que a pretensão do alimentante segue o rito típico previsto para as ações de exigir contas previsto pelo art. 530 e §§ do Código de Processo Civil. Evita-se, assim, flexibilizações subjetivas dos ritos processuais, que tanto ameaçam a segurança jurídica.

Em matéria de alimentos, não se encontra presente, evidentemente, a lógica do rigor mercantil, devendo as contas ser apresentadas de forma adequada para permitir o seu exame específico. Confere-se, assim, com transparência, a compatibilidade das decisões do guardião com o melhor interesse do filho, cabendo ao juiz nessa direção definir a periodicidade razoável para que as contas sejam prestadas. A rigor, o que muda são a finalidade e os fundamentos da prestação de contas alimentar (função) e não o rito (estrutura) procedimental disponível pelo legislador processual.

FONTE: MIGALHAS


[1] STJ, 3ª T., REsp 1.814.639/RS, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Rel. p/ Acórdão Min. Moura Ribeiro, julg. 26.05.20, publ. DJ 09.06.20.


*Gustavo Tepedino é professor Titular de Direito Civil e ex-diretor da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Sócio do escritório Gustavo Tepedino Advogados.

*Ana Carolina Brochado Teixeira é doutora em Direito Civil pela UERJ. Mestre em Direito Privado pela PUC/MG. Professora de Direito Civil do Centro Universitário UNA. Coordenadora editorial da Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil.

*Danielle Tavares Peçanha é advogada mestranda em Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Advogada do escritório Gustavo Tepedino Advogados.

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