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Pode o síndico proibir obras nos apartamentos durante a pandemia?

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Thiago Ferreira Cardoso Neves

Thiago Ferreira Cardoso Neves

02/09/2020

Thiago Ferreira Cardoso Neves e Rodolpho Barreto Sampaio Júnior*

A pandemia apresentou questionamentos jurídicos inéditos. E não poderia mesmo ser diferente. Afinal, um vírus que se dissemina muito rapidamente, comprometendo a capacidade de atendimento hospitalar e levando a população a se recolher no refúgio de seus lares não aparece todo dia. Felizmente…

Dentre esses questionamentos, um tem chamado a atenção: o síndico, ou a assembleia de condôminos, teria poderes para impedir a realização de uma obra em uma unidade autônoma?

Essa é, definitivamente, uma questão nova. Ela surgiu em decorrência da implementação de uma das medidas mais importantes para a diminuição da velocidade de contágio: o isolamento social.

Com o fechamento das escolas, com a adoção do home office, com a interdição de atividades não essenciais, as pessoas passaram a exercer, em suas casas, as tarefas que antes eram exercidas em outro ambiente.

E foi justamente nesse momento que os conflitos entre vizinhos ultrapassaram os limites daquilo que sempre se entendeu como sensível. Como se sabe, os condomínios edilícios são uma fonte interminável de conflitos, a ponto de o saudoso civilista Sylvio Capanema chamá-los de “condemônios”.

E as razões são óbvias. O compartilhamento de espaços físicos comuns e a constante convivência entre pessoas de hábitos, estilos de vida e, por que não, cultura e educação absolutamente distintos faz com que seja mais difícil uma convivência harmoniosa.

Pense-se, exemplificativamente, em uma relação familiar. Se entre pessoas do mesmo sangue já é tormentoso conviver com as diferenças, imagine-se entre pessoas sem nenhum vínculo afetivo ou mesmo sanguíneo. São inevitáveis os conflitos.

Por essa razão, inúmeras são as situações que, potencialmente, dão origem a esses desentendimentos, o que se agravou, como dito, durante o período pandêmico.

Vamos imaginar, por exemplo, a criança que está tendo aulas online e o professor que ministra tais aulas, o trabalhador que faz reuniões virtuais, o que passou a atender os seus clientes de seu telefone residencial, o advogado que faz audiência e sustentações orais de sua casa, o juiz que preside esses atos, as consultas médicas a distância, os idosos que, presos em casa, tem nos programas de televisão a sua principal, senão a única, forma de distração.

É fácil imaginar, nesses casos, como que os barulhos de uma obra podem ser prejudiciais. Ninguém consegue se concentrar com um martelete colocando paredes abaixo. É fácil imaginar a situação: as pessoas presas em casa por meses, tendo que conciliar afazeres domésticos com as suas atividades profissionais, auxiliando os filhos em suas lições escolares, suportando serras e marretas das oito horas da manhã às oito da noite… De fato, é quase impossível a convivência pacífica.

E ainda existe uma outra questão, talvez mais importante: o aumento no fluxo de pessoas que transitam pelo condomínio. Aqueles que trabalham diretamente na obra, aos quais se somam os fornecedores de materiais, os que recolhem o entulho, os que realizam intervenções pontuais, como eletricista, bombeiro hidráulico, o arquiteto, o engenheiro.

Nesse caso, o que se verifica é a possibilidade de se aumentar a contaminação dos demais moradores. Afinal, há uma movimentação maior nas áreas comuns do condomínio, uma utilização mais intensa dos elevadores e escadas. E essa movimentação pode, sim, levar o novo coronavírus para dentro do prédio.

Existem, então, duas questões distintas, mas que levam à mesma indagação. O síndico, ou a assembleia de condôminos, pode interferir na propriedade privada dos moradores e impedir a realização de obras durante a pandemia, para a preservação do sossego e da saúde dos moradores?

A resposta nos parece ser positiva.

Em nosso entender, existe sim a possibilidade de, excepcionalmente, suspender-se a realização de certas obras nos condomínios edilícios, ou condomínios horizontais, como também são chamados.

E em quais circunstâncias pode se dar essa suspensão das obras?

Essa resposta exige a análise de uma série de elementos. Vamos a eles:

Primeiramente, devemos verificar quais regras foram estabelecidas pela prefeitura do local em que se situa o imóvel. Se a prefeitura decretou o lockdown, por exemplo, é claro que as obras não estarão liberadas. Do mesmo modo, se as atividades de construção civil foram impedidas naquele município, as obras nos imóveis também não poderão ser realizadas.

Então, o primeiro aspecto a se observar é a autorização, no município em que se situa o imóvel, para a realização de obras de construção civil. Mas deve ficar claro que dessa autorização não decorre, de imediato, a possibilidade de realização de reformas nas unidades residenciais.

Precisamos observar um outro aspecto: qual a natureza da obra?

Trata-se de uma obra urgente, destinada a impedir um dano maior ou evitar a depreciação ou destruição do imóvel? É uma obra emergencial, como a que decorre da ruptura do encanamento? Ou o reparo de um muro de arrimo ou do telhado, que teve algumas telhas levadas por uma ventania?

Nesses casos, parece razoável entender-se que a obra pode ser realizada. Aliás, mesmo durante a vigência de medidas restritivas impostas pela prefeitura, deve-se admitir a realização de obras e reparos emergenciais.

Mas e quando se trata de uma simples reforma do apartamento? Quando o que se pretende é realizar benfeitorias úteis ou voluptuárias, que tornam mais cômodo o uso da coisa. Existe amparo legal para se impedir a realização de obras durante a pandemia?

Em nosso entender, tanto o Código Civil quanto a Lei de Condomínios e Incorporações conferem aos condôminos a possibilidade de, excepcionalmente, se impedir ou se restringir a realização de atividades que ameacem a saúde dos moradores ou perturbem a sua paz ou sossego.

A lei 4.591/64, que dispõe sobre o condomínio em edificações, assegura aos condôminos, em seu art. 19, o direito de usar e fruir de sua unidade autônoma, segundo suas conveniências e interesses, e de usar as partes e coisas comuns.

Mas note-se que esse mesmo dispositivo legal condiciona o uso da unidade autônoma à observância das normas de boa vizinhança, ao passo que o uso das áreas comuns deve ser feito de maneira a não causar dano ou incômodo aos demais moradores:

Art. 19. Cada condômino tem o direito de usar e fruir, com exclusividade, de sua unidade autônoma, segundo suas conveniências e interesses, condicionados, umas e outros às normas de boa vizinhança, e poderá usar as partes e coisas comuns de maneira a não causar dano ou incômodo aos demais condôminos ou moradores, nem obstáculo ou embaraço ao bom uso das mesmas partes por todos.

Já o art. 10 da mesma lei proíbe o condômino de usar sua unidade de forma nociva ou perigosa ao sossego, à salubridade e à segurança dos demais condôminos:

Art. 10. É defeso a qualquer condômino:

[…]

III – destinar a unidade a utilização diversa de finalidade do prédio, ou usá-la de forma nociva ou perigosa ao sossego, à salubridade e à segurança dos demais condôminos;

[…]

§ 1º O transgressor ficará sujeito ao pagamento de multa prevista na convenção ou no regulamento do condomínio, além de ser compelido a desfazer a obra ou abster-se da prática do ato, cabendo, ao síndico, com autorização judicial, mandar desmanchá-la, à custa do transgressor, se este não a desfizer no prazo que lhe for estipulado.

O Código Civil vai no mesmo sentido:

Ele assegura ao condômino em seu art. 1.335 o direito de usar, fruir e livremente dispor de suas unidades:

Art. 1.335. São direitos do condômino:

I – usar, fruir e livremente dispor das suas unidades;

E, no seu art. 1.336, estabelece como dever do condômino não usar a sua área privativa de maneira prejudicial ao sossego, salubridade e segurança dos condôminos:

Art. 1.336. São deveres do condômino:

[…]

IV – dar às suas partes a mesma destinação que tem a edificação, e não as utilizar de maneira prejudicial ao sossego, salubridade e segurança dos possuidores, ou aos bons costumes.

Nos dispositivos seguintes, o Código Civil elenca as multas que podem ser aplicadas ao condômino que descumpre os seus deveres, e ele inovou ao trazer a figura do condômino que apresenta reiterado comportamento antissocial, gerando incompatibilidade de convivência com os demais condôminos.

§ 2º O condômino, que não cumprir qualquer dos deveres estabelecidos nos incisos II a IV, pagará a multa prevista no ato constitutivo ou na convenção, não podendo ela ser superior a cinco vezes o valor de suas contribuições mensais, independentemente das perdas e danos que se apurarem; não havendo disposição expressa, caberá à assembleia geral, por dois terços no mínimo dos condôminos restantes, deliberar sobre a cobrança da multa.

Art. 1337. O condômino, ou possuidor, que não cumpre reiteradamente com os seus deveres perante o condomínio poderá, por deliberação de três quartos dos condôminos restantes, ser constrangido a pagar multa correspondente até ao quíntuplo do valor atribuído à contribuição para as despesas condominiais, conforme a gravidade das faltas e a reiteração, independentemente das perdas e danos que se apurem.

Parágrafo único. O condômino ou possuidor que, por seu reiterado comportamento anti-social, gerar incompatibilidade de convivência com os demais condôminos ou possuidores, poderá ser constrangido a pagar multa correspondente ao décuplo do valor atribuído à contribuição para as despesas condominiais, até ulterior deliberação da assembleia.

É possível observar que o Código Civil assegura ao condômino a possibilidade de usar, gozar, dispor e fruir livremente de sua unidade, mas também condiciona esse uso ao respeito aos demais moradores, que deverão ter seu sossego, salubridade e segurança observados.

Esse entendimento vai ao encontro de uma das três principais diretrizes do Código Civil de 2002: a socialidade.

Miguel Reale, ao explicar as razões que o levaram à elaboração de um novo Código, mencionou que não era possível ignorar que, diferentemente do que ocorria à época em que foi elaborado o Código Beviláqua, a maioria da população brasileira já reside nos centros urbanos, e esse fato impõe uma limitação ao caráter essencialmente individualista do direito civil.

E não há como negar que a diretriz da socialidade, definida por Miguel Reale no início dos anos 70, foi posteriormente respaldada pelo princípio da função social da propriedade, acolhido pela Constituição de 1988.

Desse modo, e para responder à pergunta formulada inicialmente, se o síndico ou a assembleia de condôminos pode restringir a realização de obras nas unidades autônomas durante a pandemia, a resposta só pode ser positiva.

Tanto a Lei de Condomínios quanto o Código Civil conferem ao proprietário o direito de realizar intervenções em sua unidade autônoma, mas condicionam esse direito à segurança, salubridade, paz e sossego dos demais moradores. E esse condicionamento vai ao encontro da própria função social da propriedade, assegurada constitucionalmente.

Do mesmo modo, tanto a lei 4.591/64, quanto o Código Civil, conferem ao síndico poderes para assegurar que a segurança, a paz e o sossego sejam mantidas em conformidade com a lei, a Convenção e o Regimento Interno.

Nesse sentido, prevê o art. 1.348 do Código Civil, notadamente em seu inciso IV, que é dever do síndico “cumprir e fazer cumprir a convenção, o regimento interno e as determinações da assembleia”.

Já a Lei de Condomínios prevê, em seu art. 22, § 1º, “b” que compete ao síndico “exercer a administração interna da edificação ou do conjunto de edificações, no que respeita à sua vigência, moralidade e segurança”, deixando evidente o alvo de preocupação do síndico no que toca a esses importantes aspectos da vida condominial.

Ora, em se tratando de um dever, percebemos que não se pode interpretar essas disposições como uma mera faculdade do síndico. Ele deve agir, sob pena, inclusive, de eventual responsabilização por omissão, caso esta venha acarretar danos ao Condomínio ou demais condôminos.

Vê-se, portanto, que não se trata de uma mera possibilidade de atuação do síndico, mas um verdadeiro poder-dever que se lhe impõe, de modo que nos parece não apenas ser possível, mas sim imperiosa a sua atuação.

Nesse sentido, e a título de exemplo, perdeu-se a oportunidade, quando do veto ao art. 11 da lei 14.010/20, de se deixar clara a questão atinente aos poderes interventivos do síndico durante a crise epidêmica. O RJET, como já dissemos em outras oportunidades, tem como propósito estabilizar as relações conflituosas durante o período da pandemia, visando alcançar o mínimo de paz social.

Com esse propósito, o referido dispositivo previa expressamente a possibilidade de o síndico interferir unilateralmente na vida condominial, proibindo a utilização de áreas comuns, bem como a realização de festas e eventos nas unidades autônomas, tudo visando cumprir os deveres que, por lei, lhe são impostos.

Por isso, o veto presidencial foi extremamente prejudicial à sociedade, em que pese as razões para a extirpação da norma fosse um duvidoso interesse público.

Cumpre asseverar, no entanto, que reconhecer ao síndico os referidos poderes não significa dar a ele “carta branca” para intervir na esfera jurídica alheia. Muito pelo contrário. Os deveres impostos ao síndico têm como propósito resguardar os direitos dos demais condôminos. A mens legis, então, tem como função o resguardo dos interesses primários dos condôminos, como a vida e a saúde.

Desse modo, caso se verifique um desvio de finalidade em sua atuação, em prejuízo dos coproprietários, o que caracterizará evidente abuso de direito, nos termos da cláusula geral do art. 187 do Código Civil, sua conduta será passível de controle judicial, tudo para bem e fielmente atender às finalidades dos dispositivos anteriormente expostos.

Portanto, em um condomínio em que os moradores estão confinados em seus apartamentos, em observância a medidas de isolamento social determinadas pelas autoridades, estudando e trabalhando em suas próprias casas, não temos dúvidas de que a realização de obras úteis ou voluptuárias impõe um desgaste excessivo aos moradores, autorizando a restrição, temporária e excepcional, a essas atividades.

FONTE: MIGALHAS

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*Thiago Ferreira Cardoso Neves é sócio advogado do escritório Almeida e Neves Advogados. Vice-presidente administrativo da Academia Brasileira de Direito Civil – ABDC. Doutorando e mestre em Direito Civil. Professor da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro – EMERJ.

*Rodolpho Barreto Sampaio Júnior é doutor em Direito. Professor adjunto na PUC/MG e no PPGD da Faculdade Milton Campos. Membro da Academia Brasileira de Direito Civil – ABDC e do Instituto dos Advogados de Minas Gerais – IAMG. Procurador do Estado de Minas Gerais.

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