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Luiz Regis Prado

Luiz Regis Prado

21/09/2020

Do ponto de vista histórico, é a partir do cristianismo que tem lugar o conceito de pessoa como categoria espiritual, dotada de valor em si mesma, um ser de fins absolutos, possuidor de direitos fundamentais e, portanto, de dignidade. Com o advento da teologia cristã, difunde-se a convicção segundo a qual o homem é o único ser vivo sobre a terra feito à imagem e semelhança de Deus: cada alma humana é obra mestra de Deus!

O termo pessoa é pela vez primeira definido por Anício Mânlio Torquato Severino Boécio (480-524)[1], em seu tratado Contra Euthychen et Nestorium, nos seguintes termos: “naturae rationabilis individua substantia” (“substância individual de natureza racional” – concepção substancial de pessoa). Antes, é preciso mencionar a contribuição de Aurelius Agostinus, Santo Agostinho, que na mediação do dogma da trinitate faz emergir a noção de pessoa como ente subjetivo. Ao depois, a definição citada acaba acolhida e reelaborada por Santo Tomás de Aquino (“persona significat id quaod est perfectissimum in tota natura, scilicet subsistens in rationali natura” – Summa Theologiae, I, q. 29, art. 1),[2] constituindo a matriz teleológica cristã da ideia de dignidade da pessoa humana.

A respeito do tema, sobretudo no campo penal, a pessoa humana deve ocupar uma posição absoluta e central, não puramente retórica, mas concreta e operativa.[3]

De igual modo, calha recordar aqui as célebres palavras “não existe liberdade onde as leis permitem que, em determinadas circunstâncias, o homem deixe de ser pessoa e se converta em coisa”.[4] Além, da menção à Beccaria (1738-1794), faz-se necessário lembrar as contribuições, anterior, de Giovanni Pico della Mirandola (1463-1496), e, posterior, de Immanuel Kant (1724-1804). Pico della Mirandola publica trabalho, intitulado De Hominis Dignitate, em que a questão da dignidade humana aparece como referência central.[5] De outro lado, para Kant, “a autonomia é, pois, o fundamento da dignidade da natureza humana e de toda natureza racional”.

Segundo o autor: “O homem, e em geral, todo ser racional, existe como um fim em si mesmo, e não simplesmente como meio que qualquer vontade possa usar, segundo seu desejo, em todas suas ações, tanto naquelas que lhe concernem como nas que concernem a outros seres racionais, deve sempre ser considerado como um fim”. Ainda para ele, a dignidade do homem se opõe ao preço: “ No reino dos fins tudo tem um preço ou uma dignidade. O que tem um preço pode ser substituído por qualquer outra coisa, julgada equivalente; ao contrário, o que é superior a todo preço, o que não admite equivalente, é o que tem uma dignidade”. “Mas o que constitui a única condição que pode fazer que qualquer coisa seja um fim em si mesmo, isto não tem somente um valor relativo, quer dizer um preço, mas um valor intrínseco, isto é, uma dignidade”.[6] Essas e outras manifestações histórico-filosóficas, próprias dos movimentos jusnaturalista e iluminista culminaram com a Declaração francesa de 1789, que erige a liberdade, dignidade e igualdade em valores espirituais e morais inerentes à pessoa humana.

O homem deixa de ser considerado apenas como cidadão, e passa a valer como pessoa, independentemente, de qualquer ligação política ou jurídica.

O reconhecimento do valor do homem enquanto homem implica o surgimento de um núcleo indestrutível de prerrogativas que o Estado não pode deixar de reconhecer, verdadeira esfera de ação dos indivíduos que delimita o poder estatal. Verifica-se, assim, “um deslocamento do Direito do plano do Estado para o plano do indivíduo, em busca do necessário equilíbrio entre a liberdade e a autoridade”.[7] Partindo do princípio de que o homem é o único ser capaz de valores, conclui-se que a essência do homem é o seu dever ser, isto é, o homem não existe como simples unidade psicofísica e biológica, porque nele, ao contrário das demais entidades naturais, reside algo que representa uma possibilidade de inovação e superação. Trata-se de sua capacidade de síntese, pela qual pode instaurar novos objetos do conhecimento. No centro dessa concepção axiológica, o homem é, a um só tempo, um ente que é e deve ser, tendo consciência dessa dignidade. E é dessa autoconsciência “que nasce a ideia de pessoa, segundo a qual não se é homem pelo mero fato de existir, mas pelo significado ou sentido da existência”.[8]

Com o advento da Constituição Federal de 1988, a dignidade da pessoa humana é guindada à categoria de valor fundamentador do sistema de direitos fundamentais (art. 1.º, III, CF).

Além disso, na legislação comparada, convém aludir à Declaração Universal dos Direitos Humanos[9], de 1948; à Carta alemã[10], de 1949; à Constituição espanhola[11], de 1978, entre outras, que como a brasileira elevam a dignidade da pessoa ao patamar de valor jurídico supremo. Entendido como princípio matricial, por excelência, protetor da pessoa em sua essência, tem o condão de designar o aspecto de humanidade do próprio homem.[12]

A noção de dignidade humana, como dado inerente ao ser humano enquanto tal, encerra, também, a promoção do desenvolvimento livre e pleno da personalidade individual, projetando-se, assim, culturalmente.[13]

Desse modo, e coerentemente com a sua finalidade maior, o Estado democrático de Direito e social deve consagrar e garantir o primado dos direitos fundamentais, abstendo-se de práticas a eles lesivas, como também propiciar condições para que sejam respeitados, inclusive com a eventual remoção de obstáculos à sua total realização.

Todavia, convém evidenciar que não se trata de simples criação legislativa, porquanto apenas se reconhece no texto constitucional a eminência da dignidade como valor (ou princípio) supremo, básico, cuja existência, bem como o próprio conceito de pessoa humana, são dados anteriores, aferidos de modo prévio à normação jurídica.

Com postura similar, enfatiza-se que a “pessoa é um dado prévio, tanto que o homem, como homem, é um ser com dignidade, um fim e não um meio, um sujeito e não um objeto. A pessoa é também um dado prévio porquanto o homem é o único ser terreno que possui a qualidade de ser senhor de seus atos, de ser sui juris, pois, tão somente ele atua por si mesmo sem deixar que a natureza aja sobre ele (nom solum agunt, sicut alia, sed per se agunt, diz Santo Tomás)”.[14]

A respeito dos valores constitucionais, quadra dizer que têm uma tríplice dimensão: (a) fundamentadora do conjunto de disposições e instituições constitucionais e do ordenamento jurídico – núcleo básico e informador do sistema jurídico-político; (b) orientadora da ordem político-jurídica a determinados fins e metas; e (c) crítica, como critério ou parâmetro idôneo de valoração de fatos ou condutas.[15]

Como viga mestra fundamental, e peculiar ao Estado democrático de Direito, a dignidade da pessoa humana há de plasmar todo o ordenamento jurídico positivo – como dado imanente e limite mínimo vital[16] à intervenção jurídica.

Trata-se de um princípio de justiça substancial, de validade a priori,[17] positivado jurídico-constitucionalmente. Nesse sentido, é possível asseverar que a dignidade da pessoa humana pode assumir contornos de verdadeira categoria lógico-objetiva ou lógico-concreta,[18] inerente ao homem enquanto pessoa. É, pois, um atributo ontológico do homem como ser integrante da espécie humana – vale em si e por si mesmo.

Nessa perspectiva, pondera-se que “a pretensão (do homem a respeito de sua personalidade), do mesmo modo que a dignidade humana, não requer uma atribuição humana; é um direito de caráter prévio, predeterminado, ‘natural’, que corresponde igualmente a todos os homens”.[19] Por isso, agrega o citado autor, o respeito à dignidade humana não pode ser dado (nem adquirido) pelo Direito positivo, “é indeclinável, indisponível e irrenunciável”.[20]

A dignatio do homem, dizia Samuel Pufendorf (1632-1694), radica no fato de ser dotado de inteligência, eticamente livre, capaz de distinguir e de escolher. Já a simples menção do termo homem evoca uma dignidade.[21] No mesmo plano, considerava o citado autor a liberdade e a igualdade como atributos originários de todo homem.

A dignidade da pessoa humana – da natureza humana – antecede, portanto, o juízo axiológico do legislador e vincula de forma absoluta sua atividade normativa, mormente no campo penal. Daí por que toda lei que viole a dignidade da pessoa humana deve ser reputada como inconstitucional. Assim, pode-se afirmar que, “se o Direito não quiser ser mera força, mero terror, se quiser obrigar a todos os cidadãos em sua consciência, há de respeitar a condição do homem como pessoa, como ser responsável”, pois, “no caso de infração grave ao princípio material de justiça, de validade a priori, ao respeito à dignidade da pessoa humana, carecerá de força obrigatória e, dada sua injustiça, será preciso negar-lhe o caráter de Direito”.[22]

Observe-se, ainda, que a força normativa desse princípio basilar se esparge por toda a ordem jurídica e serve de alicerce aos demais princípios penais fundamentais. Dessa forma, por exemplo, uma transgressão aos princípios da legalidade ou da culpabilidade implicará também, em última instância, lesão ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.

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[1] Referências sobre a ideia de pessoa estão presentes entre os estoicos, ainda que com caráter mais especulativo. Marco Túlio Cícero (106 a.C.- 43 a.C.) distingue entre a natureza superior do homem (portador de razão) em relação aos animais (De Officciis – Livro I, Cap. XVII, XVI: “aquilo que convém à excelência da natureza humana considerada em tudo o que a distingue dos demais animais”; “o homem que participa das luzes da razão, pela qual conhece as causas das coisas e suas consequências”). Tanto o pensamento grego como a obra de Cícero vão servir de base primeira à ideia cristã medieval.

[2]        Cf. Cattaneo, M. A. Pena, diritto e dignità umana, p. 278 e ss.; Adorno, R. La bioéthique et la dignité de la personne, p. 41-42.

[3]        Cattaneo, M. A. Op. cit., p. 275.

[4]        Beccaria, C. Dei delitti e delle pene, XXVII, p. 316.

[5] Ganho, Maria de Lourdes S. Acerca do pensamento de Giovanni Pico della Mirandola. In: Pico della Mirandola, G. Discurso sobre a dignidade do homem, p.XXI-XXII.

[6] Kant, I. Fondements de la métaphysique des moeurs, p.61-66; Idem. Fundamentação da metafísica dos costumes, p.82-88.

[7]        Reale, M. Questões de Direito Público, p. 4.

[8]        Reale, M. Filosofia do Direito, p. 211.

[9]  “Art. I.2. Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade”.

[10] “Artigo 1 [Dignidade da pessoa humana – Direitos humanos – Vinculação jurídica dos direitos fundamentais]: (1) A dignidade da pessoa humana é intangível. Respeitá-la e protegê-la é obrigação de todo o poder público. (2) O povo alemão reconhece, por isto, os direitos invioláveis e inalienáveis da pessoa humana como fundamento de toda comunidade humana, da paz e da justiça no mundo. (3) Os direitos fundamentais, discriminados a seguir, constituem direitos diretamente aplicáveis e vinculam os poderes legislativo, executivo e judiciário”.

[11] “Art.10.1. A dignidade da pessoa, os direitos invioláveis que lhe são inerentes, o livre desenvolvimento da personalidade, o respeito à lei e aos direitos dos demais são fundamento da ordem política e da paz social”.

[12] Edelman, B. La dignité de la personne humaine, un concept nouveau. In: Pavia, M-L; Revet, T. La dignité de la personne humaine, p. 26-27.

[13] “O valor da pessoa consiste, de imediato, em ser mais do que o mero existir, em ter domínio sobre a própria vida, e esta superação, este domínio, é a raiz da dignidade da pessoa”, nas palavras de Legaz y Lacambra (La noción jurídica de la persona humana y los derechos del hombre. Revista de Estúdios Políticos, 55, p.19).

[14] Legaz y Lacambra, L. Filosofía del Derecho, p. 530. Também, Recasens Siches, L. Tratado general de filosofía del Derecho, p.247.

[15]       Pérez Luño, A. E. Derechos humanos, Estado de Derecho y Constitución, p. 288.

[16]       Desse modo, “o indivíduo deve ceder ao todo, até enquanto não seja ferido o valor da pessoa, ou seja, a plenitude do homem enquanto homem” (Reale, M. Op. cit., p. 279).

[17]       Cerezo Mir, J. Culpabilidad y pena. In: Problemas fundamentales del Derecho Penal, p. 195.

[18]       Cf. Cerezo Mir, J. La naturaleza de las cosas y su relevancia jurídica. In: Problemas fundamentales del Derecho Penal, p. 39 e ss.

[19]       Larenz, K. Derecho justo: fundamentos de ética jurídica, p. 64.

[20]       Ibidem, p. 64.

[21]       Cf. Welzel, H. Introducción a la filosofía del Derecho, p. 145.

[22]       Cerezo Mir, J. Curso de Derecho Penal español. P. G., I, p. 18. O Projeto de Código Penal espanhol de 1980 dispunha: “Art. 3. No hay pena sin culpabilidad. Cuando la pena venga determinada por la producción de un resultado anterior más grave, sólo responderá de éste si se hubiere causado, al menos, por culpa”.

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