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Parecer jurídico: Novo Código Florestal e a Lei da Mata Atlântica (ADI 6446/DF)

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Parecer jurídico: Novo Código Florestal e a Lei da Mata Atlântica (ADI 6446/DF)

ADI 6446/DF

APP

CÓDIGO FLORESTAL

DESPACHO Nº 4.410/2020

DIREITO AMBIENTAL

ECOLOGIA

INCONSTITUCIONALIDADE

LEI DA MATA ATLÂNTICA

MATA ATLÂNTICA

MEIO AMBIENTE

Ingo Wolfgang Sarlet
Ingo Wolfgang Sarlet

08/10/2020

As organizações não governamentais Fundação SOS Mata Atlântica, fundação com personalidade jurídica de direito privado, sem fins lucrativos ou econômicos, qualificada como Organização da Sociedade Civil de Interesse Público – OSCIP , inscrita no CNPJ sob nº 57.354.540/0001-90, com sede na Avenida Paulista, 2073, Torre Horsa I, cj. 1.318, na cidade de São Paulo, Estado de São Paulo, WWF-Brasil, associação civil com personalidade jurídica de direito privado, sem fins lucrativos ou econômicos, inscrita no CNPJ sob nº 26.990.192/0001-14, com sede na CLS Quadra 114, Bloco D, Loja 35, Asa Sul, na cidade de Brasília, Distrito Federal, Instituto Socioambiental (ISA), associação civil sem fins econômicos, qualificada como Organização da Sociedade Civil de Interesse Público – OSCIP, inscrita no CNPJ sob o nº 00.081.906/0002- 69, com sede na Av. Higienópolis, 901, sala 30, São Paulo/SP, Rede de Organizações Não Governamentais da Mata Atlântica (RMA), associação civil sem fins lucrativos, inscrita no CNPJ sob o nº 01.721.361/0001-90, com sede na SCLN, 210, bloco C, Brasília/DF, Associação Mineira de Defesa do Ambiente (AMDA), associação civil com personalidade jurídica de direito privado, sem fins partidários ou econômicos, inscrita no CNPJ sob o nº 20.473.625/0001-88, com sede na Rua Antares nº 100, Bairro Santa Lúcia, na cidade de Belo Horizonte, Estado de Minas Gerais, e Associação de Preservação do Meio Ambiente e da Vida (APREMAVI), associação civil sem fins econômicos, qualificada como Organização da Sociedade Civil de Interesse Público – OSCIP, inscrita no CNPJ sob o nº 79.355.269/0001-40, com sede na Estrada Geral s/n, localidade de Alto Dona Luiza, município de Atalanta, Estado de Santa Catarina, solicitaram dos signatários a elaboração, a título pro bono, de parecer jurídico para subsidiar a sua atuação como Amici Curiae na Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI 6446/DF proposta pelo Presidente da República perante o Supremo Tribunal Federal, em que se suscita um suposto conflito entre dois diplomas legislativos em matéria ambiental, quais sejam: o Novo Código Florestal (Lei 12.651/2012), precisamente em relação à incidência dos artigos 61-A e 61-B, e a Lei da Mata Atlântica (Lei 11.428/2006), formulando os quesitos, divididos em oito blocos, a seguir transcritos integralmente do ofício que os encaminhou:

QUESITOS:

1)     É cabível o controle abstrato de constitucionalidade por meio de ação direta de inconstitucionalidade para validar ou invalidar atos já revogados (no caso, o Despacho 4.410/2020) ou para resolver eventuais antinomias entre normas infraconstitucionais? Em tais hipóteses, existe violação frontal à Constituição por ato normativo primário em vigor, de modo a constituir objeto adequado para propositura da ação direta de inconstitucionalidade?

2) Na hipótese de conflito de normas infraconstitucionais, como verificado na ADI 6446/DF, entre a Lei 12.651/2012 (“lei geral”) e Lei 428/2006 (“lei especial”), aplica-se o critério da especialidade para a solução do conflito, ainda que a lei especial tenha sido editada antes da lei geral?

3) A aplicação dos artigos 61-A e 61-B da Lei 12.651/2012 ao Bioma Mata Atlântica (em detrimento da Lei da Mata Atlântica – Lei 11.428/2006) pleiteada pela Presidência da República por meio da ADI 6446/DF, implica violação ao princípio da proibição do retrocesso ecológico (e dever de progressividade) e, portanto, configura redução inconstitucional do patamar legislativo de proteção do Bioma Mata Atlântica hoje em vigor?

I – CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS E APRESENTAÇÃO DA CONTROVÉRSIA JURÍDICO-CONSTITUCIONAL

No mês de abril de 2020, o Ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, por meio do Despacho nº 4.410/2020, posteriormente revogado pelo Despacho nº 19.258/2020, propunha uma forma de resolver o conflito aparente de normas infraconstitucionais, ao pretender fazer regras sobre uso rural consolidado constantes do Novo Código Florestal (Lei nº 12.651/2012), precisamente os seus artigos artigos 61-A e 61-B, prevalecerem sobre a regulamentação normativa estabelecida pela Lei da Mata Atlântica (Lei nº 11.428/2006), notadamente em relação aos deveres restauração consagrados pelo diploma especial em questão.

Após a revogação do Despacho nº 4.410/2020, o Presidente da República, por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6446/DF, requereu ao Supremo Tribunal Federal (STF) a validação do referido despacho (revogado pelo próprio Ministro do Meio Ambiente) e a declaração da nulidade da interpretação jurídica que sobreponha a Lei da Mata Atlântica (Lei nº 11.428/2006) ao regramento do Novo Código Florestal (Lei nº 12.651/2012).

A controvérsia jurídico-constitucional, que será desenvolvida no presente parecer, circunscreve-se à análise preliminar acerca do cabimento da ação constitucional em questão em vista do seu objeto, bem como, em termos de mérito, aos questionamentos relativos (a) à questão sobre o suposto conflito entre normativas infraconstitucionais, como suscitado na ADI 6446/DF, entre a Lei 12.651/2012 (“lei geral”) e Lei 11.428/2006 (“lei especial”), e (b) à violação do princípio da proibição de retrocesso e de suas respectivas exigências.

Em linhas gerais, buscaremos formular a(s) resposta(s) mais adequada(s) aos quesitos formulados, na perspectiva de sua consistência jurídico- constitucional.

II   – RESPOSTAS AOS QUESITOS

 II.I.    RESPOSTA AO QUESITO 1

1) É cabível o controle abstrato de constitucionalidade por meio de ação direta de inconstitucionalidade para validar ou invalidar atos já revogados (no caso, o Despacho 4.410/2020) ou para resolver eventuais antinomias entre normas infraconstitucionais? Em tais hipóteses, existe violação frontal à Constituição por ato normativo primário em vigor, de modo a constituir objeto adequado para propositura da ação direta de inconstitucionalidade?

O Quesito 1 circunscreve-se à questão de natureza preliminar, notadamente por discutir o problema da admissibilidade da ADI 6446/DF no que diz respeito ao seu objeto. Dito de outro modo, em causa está a adequação da opção pela via do controle abstrato de constitucionalidade, mediante manejo de Ação Direta de Inconstitucionalidade para validar ou invalidar atos já revogados (no caso, o Despacho 4.410/2020 do Ministro do Meio Ambiente) ou mesmo para resolver eventuais antinomias entre normas infraconstitucionais, ou seja, entre a Lei 12.651/2012 e a Lei 11.428/2006, bem como se, em tais hipóteses, existe violação frontal à Constituição por ato normativo primário em vigor, de modo a constituir objeto adequado para propositura da ação direta de inconstitucionalidade.

Inicialmente, cumpre assinalar que, de fato, causa certa espécie o pedido lançado pela AGU na peça exordial no sentido de se “manter a validade do Despacho nº 4.410/2020”. Isso porque se trata de ato administrativo do Ministro do Meio Ambiente que se encontra hoje revogado. Após ser editado no mês de abril de 2020, o Despacho nº 4.410/2020 foi revogado pelo próprio Ministro do Meio Ambiente por meio do Despacho nº 19.258/2020, voltando atrás em sua decisão. O ato administrativo em questão encontra-se hoje fora do espectro jurídico, equiparando-se a algo como um “nada” em termos jurídicos, dada a sua revogação posterior. Isso, por si só, ao nosso ver, impossibilita a sua apreciação (e, menos ainda, a sua “validação”1) pelo STF, na medida em que um ato administrativo revogado não configura objeto adequado para ensejar a propositura de ação direta de constitucionalidade.

Note-se que o STF, em casos semelhantes – inclusive, comparativamente menos problemáticos, porquanto em causa pedido de declaração de inconstitucionalidade de lei – já se pronunciou no sentido de que em tais situações a ação não possui objeto, não podendo, assim, ser conhecida.2 Aliás, a solução nem poderia der outra, já que do contrário se estaria a reconhecer a validade de ato que não mais existe mais para o mundo jurídico e que nem mesmo – como no presente caso – veio a produzir efeitos concretos durante a sua breve vigência.

Mesmo que se viesse – ad argumentandum – a reconhecer o inviável (ao menos de acordo com o marco normativo vigente), entendendo ser cabível controle abstrato e concentrado em relação a ato administrativo já revogado, a inadmissibilidade da presente ADI ainda assim seria manifesta por outro motivo.

Isso se verifica pelo fato de o controle concentrado de constitucionalidade não ser o meio apto para a resolução de conflito normativo entre legislações infraconstitucionais, tal como o apontado no presente caso, designadamente entre a Lei da Mata Atlântica (Lei nº 11.428/2006) e o Novo Código Florestal (Lei nº 12.651/2012), precisamente em relação à incidência, ou não, dos seus artigos artigos 61-A e 61-B em face do regime jurídico de proteção do bioma da Mata Atlântica.

Nessa perspectiva, sabe-se, forte na doutrina especializada e jurisprudência mais do que consolidada do STF, que é pressuposto para o exercício da sua competência de controlar a legitimidade constitucional de atos normativos, que se verifique uma situação que implique violação direta e imediata da Constituição Federal por atos normativos específicos, não de discussões sobre o conflito de legislação infraconstitucional e a prevalência de uma lei federal em face de outra.

A uniformização da interpretação das leis federais para o efeito de solucionar alegado conflito entre diplomas legislativos – como, em última análise, o pretende Presidência da República mediante a propositura da ADI 6446/DF – é atribuição conferida pela Constituição Federal ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), não ao STF. O texto constitucional é expresso nesse sentido, conforme se pode observar dos dispositivos que seguem:

Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:

I – processar e julgar, originariamente: a) a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 3, de 1993)

Art. 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça: (…)

III – julgar, em recurso especial, as causas decididas, em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando a decisão recorrida:

a) contrariar tratado ou lei federal, ou negar-lhes vigência;

Igualmente, a jurisprudência do STF consolidou entendimento pacífico sobre o tema, inadmitindo o manuseio de ação direta de inconstitucionalidade em tais situações:

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ATO ESTATAL E CONTEÚDO  DE  NORMA  INFRACONSTITUCIONAL. PRECEDENTE

DA CORTE. 1. A pretensão de cotejo entre o ato estatal impugnado e o conteúdo de outra norma infraconstitucional não enseja ação direta de inconstitucionalidade, na linha de precedentes da Corte. (…) Ocorre que este cotejo, entre leis infraconstitucionais, não permite a utilização da ação direta  de  inconstitucionalidade,  que faz  parte  do  sistema  concentrado da constitucionalidade das leis. A violação deve ser direta contra a Constituição Federal’. (ADI 1692 – Rel.: Ilmar Galvão)

“(…) A alegada ofensa (…) depende, necessariamente, da interpretação de diplomas impregnados de índole meramente infraconstitucional (….). O que se pretende (…) é o exame de constitucionalidade de ato legislativo a ser realizado – com evidente subversão dos princípios que regem o controle normativo abstrato – a partir do confronto do seu conteúdo com espécies jurídicas de índole igualmente legislativa, para, daí, e em desdobramento exegético ulterior, estabelecer-se, mediante prévia aferição, o cotejo consequente com o texto da própria Constituição da República. (…) Como se sabe (…), situações de litigiosidade constitucional reflexa não se qualificam, por absoluta ausência de possibilidade jurídica, como objeto válido e adequado à fiscalização normativa abstrata”. (ADI 1419 –Rel.: Celso de Mello)

“(…) 4. Inviabilidade do exame de constitucionalidade da Lei rondoniense: questão posta para cotejar a Lei rondoniense n. 1.126/2002 com a Lei nacional 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor). Exame de legalidade que não viabiliza o controle abstrato da lei estadual por meio da ação direta. Precedentes. 5. Ação direta de inconstitucionalidade não conhecida” (ADI 2.876 – Rel.: Cármen Lúcia). No mesmo sentido: ADI 4131 – Rel.: Luiz Fux.

“O recurso especial, por sua vez, está vocacionado, no campo de sua específica atuação temática, à tutela do direito objetivo infraconstitucional da União. A sua apreciação jurisdicional compete ao STJ, que detém, ope constitutionis, a qualidade de guardião do direito federal comum. O legislador constituinte, ao criar o STJ, atribuiu-lhe, dentre outras eminentes funções de índole jurisdicional, a prerrogativa de uniformizar a interpretação das leis e das normas infraconstitucionais emanadas da União Federal (CF, art. 105, III, c)” (AI 603.866 AgR – Rel.: Marco Aurélio)

À vista de todo o exposto, resulta cristalino que, em sede de preliminar, deve ser reconhecida a prejudicialidade pela perda do objeto, com o consequente não conhecimento da ação pelo STF, e (ou) sua inadmissibilidade em virtude da inexistência de violação direta e imediata à Constituição por ato normativo primário em vigor.

CONCLUSÃO – RESPOSTA AO QUESITO 1

1)     Não, é incabível o controle abstrato de constitucionalidade por meio de ação direta de inconstitucionalidade para validar ou invalidar atos já revogados (no caso, o Despacho 4.410/2020) ou para resolver eventuais antinomias entre normas infraconstitucionais. Em tais hipóteses, não existe violação frontal à Constituição por ato normativo primário em vigor, de modo a constituir objeto adequado para propositura da ação direta de inconstitucionalidade.

 II.II. RESPOSTA AO QUESITO 2

 2) Na hipótese de conflito de normas infraconstitucionais, como verificado na ADI 6446/DF, entre a Lei 12.651/2012 (“lei geral”) e Lei 11.428/2006 (“lei especial”), aplica-se o critério da especialidade para a solução do conflito, ainda que a lei especial tenha sido editada antes da lei geral?

A Lei da Mata Atlântica (Lei 11.428, de 22 de dezembro de 2006) atende ao comando constitucional do art. 225, § 4º, da CF/1988 o qual estabelece que a Mata Atlântica – juntamente com a Floresta Amazônica brasileira, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira – constitui “patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á, na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais”.

Entre os biomas e regiões brasileiras listadas como patrimônio nacional, a Mata Atlântica é a única regulada e protegida por uma legislação especial, o que se deve, em grande medida, à conscientização e mobilização da sociedade civil empenhada em assegurar a proteção do bioma mais afetado pela ação/omissão destrutiva no Brasil. A Lei da Mata Atlântica é exemplo da modernização da legislação ambiental brasileira, com o objetivo maior de frear e, quem sabe, até mesmo reverter a trágica história de devastação da Mata Atlântica, conforme bem descreveu o historiador norte-americano Warren Dean no seu livro clássico A ferro e fogo: a história e a devastação da Mata Atlântica brasileira, publicado orginalmente no ano de 1996.[3]

Bioma, na definição do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), é o “conjunto de vida (vegetal e animal) definida pelo agrupamento de tipos de vegetação contíguos e identificáveis em escala regional, com condições geoclimáticas similares e história compartilhada de mudanças, resultando em uma diversidade biológica própria”.4 No Brasil, conforme classificação estabelecida pelo IBGE, existem seis biomas continentes: Amazônia, Cerrado, Mata Atlântica, Caatinga, Pampa e Pantanal.

Fonte: IBGE

A Mata Atlântica, que abrange aproximadamente 13% do território nacional e está presente em 17 Estados brasileiros, é o bioma mais degradado e devastado de todos eles, estimando-se que restam somente algo em torno de 12,4% da sua cobertura vegetal original, se tomarmos como parâmetro a cobertura existente à época da chegado dos portugueses ao Brasil. No tocante à ocupação humana, cabe registrar que aproximadamente 72% da população brasileira reside no bioma da Mata Atlântica, concentrando 70% do PIB nacional[5], o que, como se pode inferir, por um lado, reforça a pressão em relação à sua ocupação e utilização de seus recursos naturais, por outro, contudo, exige um marco jurídico rígido de proteção para salvaguardar o pouco que ainda resta do estado original (status quo ante) do bioma.

A interpretação levada a efeito pelo revogado Despacho nº 4.410/2020 do Ministro do Meio Ambiente objetiva é um exemplo dessa pressão econômica, na medida em que, ao privilegiar o marco legislativo menos rígido em termos protetivos (no caso o Novo Código Florestal de 2012, em detrimento da Lei da Mata Atlântica), estimula a ampliação da intervenção antrópica sobre o bioma da Mata Atlântica e a utilização ainda mais intensa e predatória dos seus (já escassos) recursos naturais, comprometendo a sua integridade ecológica.

Nesse contexto, ao propor a ADI 6446/DF, o Governo Federal pretende que o STF se manifeste sobre o que entende ser hipótese de conflito entre normas infraconstitucionais, no caso, entre o Novo Código Florestal (Lei 12.651/2012) e a Lei da Mata Atlântica (Lei 11.428/2006). O Código Florestal de 2012, por sua vez, exerce a função de “lei geral”, na medida em que se trata de uma espécie de subsistema normativo que se aplica de modo genérico à proteção florestal de todos os biomas brasileiros. Essa compreensão foi consagrada expressamente no art. 1º- A da Lei 12.651/2012, ao prever que: “Art. 1º-A. Esta Lei estabelece normas gerais sobre a proteção da vegetação, áreas de Preservação Permanente e as áreas de Reserva Legal; a exploração florestal, o suprimento de matéria-prima florestal, o controle da origem dos produtos florestais e o controle e prevenção dos incêndios florestais, e prevê instrumentos econômicos e financeiros para o alcance de seus objetivos”.

A Lei da Mata Atlântica, por sua vez, possui a natureza de uma “lei especial”, na medida tem por objeto a proteção florestal de um bioma especifico, aplicando-se de forma restritiva (e não genérica).6 É uma legislação editada com um objetivo especial e delimitado, ou seja, a proteção do bioma da Mata Atlântica. Como referido antes, entre todos os biomas continentais e regiões brasileiras listadas como “patrimônio nacional”, a Mata Atlântica é a única detentora de uma legislação especial, o que reforça a natureza particular e sui generis do diploma em questão. A Lei 11.428/2006 revela a preocupação do legislador brasileiro em proteger o bioma mais impactado de todos e com uma área remanescentes de apenas 12,4% do sua cobertura original, cumprindo, assim, com o seu dever constitucional a cargo do Estado de proteger um bioma classificado como patrimônio nacional (art. 225, § 4º, da CF/1988).

O critério hermenêutico da especialidade, por essa ótica, revela-se como o método mais adequado para a solução do conflito entre o Novo Código Florestal (Lei 12.651/2012) e a Lei da Mata Atlântica (Lei 11.428/2006), preservando, na maior medida possível, a vontade do legislador ordinário, ao estabelecer um regime jurídico especial de proteção para o bioma da Mata Atlântica. Dada a “natureza protetiva” da Lei da Mata Atlântica, criada com o objetivo de resguardar o pouco que ainda (re) existe da sua cobertura original, seria até possível suscitar a aplicação de algum dispositivo do Novo Código Florestal ou mesmo de outro diploma ambiental que estabelecesse um patamar jurídico mais rígido de proteção para o bioma da Mata Atlântica. Mas esse não é o caso dos dispositivos do Código Florestal (artigos 61-A e 61-B) que a Presidência da República pretende ver aplicados ao regime jurídico da Mata Atlântica. Pelo contrário, a intenção do (revogado) Despacho nº 4.410/2020 do Ministro do Meio Ambiente era (ao fim e ao cabo, segue sendo) justamente estabelecer um marco legislativo mais permissivo e flexível para a utilização de recursos naturais no bioma da Mata Atlântica, o que conflita com as premissas básicas e razão de ser da Lei11.428/2006.

Ademais, com a devida vênia, o fato de a lei especial (Lei 11.428/2006) ter sido editada antes da lei geral (Lei 12.651/2012), como suscitado pela Advocacia Geral da União na inicial da ADI para justificar a prevalência do Novo Código Florestal sobre a Lei da Mata Atlântica, em nada modifica o entendimento exposto no parágrafo anterior. A lei especial (Lei da Mata Atlântica) não foi revogada pela lei geral (Novo Código Florestal)! Os dispositivos da “lei especial” continuam – como antes, ao tempo da vigência do Código Florestal de 1965! – plenamente em vigor e aplicados ao regime de proteção do bioma da Mata Atlântica, justamente em razão de a Lei 11.428/2006 ter estabelecido um regime especial e diferenciado de proteção.

Esse entendimento é reforçado inclusive pela própria Lei 12.651/2012, na medida em que, quando houve a intenção do legislador ordinário revogar ou alterar algum dispositivo da Lei 11.428/2006, isso foi feito expressamente, como se vislumbra no caso do art. 35.7  A “lei especial” (Lei 11.428/2006) prevalece, portanto, em face da “lei geral” (Lei 12.651/2012), notadamente no sentido de afastar a incidência dos artigos 61-A e 61-B do Novo Código Florestal em relação ao regime jurídico da Mata Atlântica.

O fato de o STF ter julgado “constitucionais” os artigos 61-A e 61-B do Novo Código Florestal na ADI 4.902/DF proposta pela PGR, ao contrário do que foi alegado pela Advocacia Geral da União na inicial da ADI para justificar a prevalência do Novo Código Florestal sobre a Lei da Mata Atlântica, não impacta ou altera o regime jurídico de proteção do bioma da Mata Atlântica, justamente em razão da natureza de “lei especial” inerente à Lei 11.428/2006, como já sinalizado anteriormente. Ademais, os dispositivos em questão, além de possuírem a natureza de “normas de transição e temporárias”, possuem conteúdo extremamente permissivo, incompatível com o regime jurídico da Lei 11.428/2006, notadamente por conta do disposto nos seus artigos 2º, parágrafo único, 5º e 17.

Não por outra razão, os artigos 61-A e 61-B estiveram entre os mais criticados do Novo Código Florestal durante e após o seu tramite legislativo e tiveram a sua constitucionalidade questionada pela PGR na ADI 4.902/DF, justamente por estabelecer uma espécie de “anistia” aos desmatadores, na medida em que que tais dispositivos buscam consolidar situações irregulares (em desacordo com a legislação ambiental) em áreas de preservação permanente (APP), conflitando claramente com o espírito e os dispositivos Lei da Mata Atlântica. De tal sorte, toda e qualquer área integrante do bioma da Mata Atlântica deve ser excluída do regime das áreas consolidadas previsto no Novo Código Florestal (artigos 61-A e 61-B).

Outro fundamento complementar à especialidade diz respeito ao critério hermenêutico da prevalência da norma mais protetiva.[8] Os princípios são fontes do Direito Ambiental dotados de força normativa, na medida em que, assim como as regras jurídicas em sentido estrito, também carregam conteúdo normativo, ou seja, são normas jurídicas, vinculando o Estado e mesmo os particulares9. Em razão de sua natureza jurídico-normativa, os princípios são fundamentais na aplicação e desenvolvimento do Direito Ambiental. Na condição de parâmetros materiais eles permitem ao intérprete e aplicador do Direito Ambiental (em especial, Juízes e Tribunais) alcançar o verdadeiro sentido e “estado da arte” do ordenamento jurídico ambiental, inclusive para o efeito de suprir deficiências e lacunas existentes e verificadas, muitas vezes, diante de novas questões ecológicas que emergem continuamente. [10]

O mesmo se pode dizer em relação ao papel dos princípios jurídicos ambientais nos casos de conflito entre a proteção ambiental e a proteção e promoção de outros bens jurídicos de hierarquia constitucional, como colocado na ADI 6446/DF.

Além disso, considerados os aspectos referidos, a partir dos princípios se viabiliza também o próprio controle das ações e omissões dos órgãos estatais e de atores privados, pois mesmo os atos designados de discricionários da administração pública são sempre atos vinculados aos direitos e princípios fundamentais, cabível, portanto, o controle jurisdicional, de modo que o Estado- Juiz, ante situações de omissão ou atuação insuficiente dos demais Poderes (Legislativo e Executivo), exerça o seu papel de “guardião” do direito fundamental ao meio ambiente (das presentes e futuras gerações) por meio do que se tem denominado de governança judicial ecológica. A limitação à discricionariedade administrativa em matéria ambiental, em particular, deriva da norma constitucional que impor ao Poder Executivo o dever estatal de proteger o meio ambiente, tal como preceitua expressamente o art. 225 da CF/1988.

O parágrafo único do art. 6º da Lei 11.428/2006 reforça esse cenário normativo ao estabelecer um rol de princípios dirigente do regime jurídico de proteção da Mata Atlântica: função socioambiental da propriedade, equidade intergeracional, prevenção, precaução, usuário-pagador, transparência das informações e atos (ou acesso à informação ambiental), gestão democrática, celeridade procedimental e a gratuidade dos serviços administrativos prestados ao pequeno produtor rural e às populações tradicionais.

Note-se que além da consagração expressa de princípios clássicos do Direito Ambiental, como a função ambiental ou ecológica da propriedade (e da posse), a equidade intergeracional (e justiça intergeracional), a prevenção, a precaução e o usuário-pagador (derivado do princípio do poluidor-pagador), cada vez mais se dá destaque, como o faz a própria legislação referida, aos princípios relacionados aos chamados “direitos ambientais de participação”, como resulta evidente na referência aos princípios da transparência das informações e atos, gestão democrática e celeridade procedimental e a gratuidade dos serviços administrativos prestados ao pequeno produtor rural e às populações tradicionais.[11]

Os princípios são muitas vezes essenciais também para permitir uma (de regra cogente) interpretação sistemática do Direito Ambiental[12], precisamente em homenagem, também, aos princípios da supremacia e da unidade da Constituição e da ordem jurídica (inclusive em vista do necessário diálogo das fontes normativas), conforme se pode apreender da jurisprudência do STJ em destaque.

“PROCESSO CIVIL. DIREITO AMBIENTAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA PARA TUTELA DO MEIO AMBIENTE. OBRIGAÇÕES DE FAZER, DE NÃO FAZER E DE PAGAR QUANTIA. POSSIBILIDADE DE CUMULAÇÃO DE PEDIDOS ART. 3º DA LEI 7.347/85. INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA. ART. 225, § 3º, DA CF/88, ARTS. 2º E 4º DA LEI 6.938/81, ART. 25, IV, DA LEI 8.625/93 E ART. 83 DO CDC. PRINCÍPIOS DA PREVENÇÃO, DO POLUIDOR-PAGADOR E DA REPARAÇÃO INTEGRAL. (…) 2. O sistema jurídico de proteção ao meio ambiente,  disciplinado  em normas  constitucionais  (CF,  art.  225,  §  3º) e infraconstitucionais (Lei 6.938/81, arts. 2º e 4º), está fundado, entre outros, nos princípios da prevenção, do poluidor-pagador e da reparação integral. (…)”.(STJ, REsp 625.249/PR, 1ª Turma, Rel. Min. Luiz Fux, j. 15.08.2006).

AMBIENTAL. PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. ANTINOMIA DE NORMAS. APARENTE. ESPECIFICIDADE. INCIDÊNCIA DO CÓDIGO FLORESTAL. ÁREA DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE. MAIOR PROTEÇÃO AMBIENTAL. PROVIMENTO. RESPEITO AO LIMITE IMPOSTO PELO CÓDIGO FLORESTAL. 1. proteção ao meio ambiente integra, axiologicamente, o ordenamento jurídico brasileiro, e as normas infraconstitucionais devem respeitar a teleologia da Constituição Federal. Dessa forma, o ordenamento jurídico precisa ser interpretado de forma sistêmica e harmônica, por meio da técnica da interpretação corretiva, conciliando os institutos em busca do interesse público primário. 2. Na espécie, a antinomia entre a Lei de Parcelamento do Solo Urbano (Lei n. 6.766/1979) e o Código Florestal (Lei n. 12.651/2012) é apenas aparente, pois a primeira estabelece uma proteção mínima e a segunda tutela a proteção específica, intensificando o mínimo protetivo às margens dos cursos de água. 3. A proteção marginal dos cursos de água, em toda a sua extensão, possui importante papel de proteção contra o assoreamento. O Código Florestal tutela em maior extensão e profundidade o bem jurídico do meio ambiente, logo, é a norma específica a ser observada na espécie. 4. Recurso especial provido.” (STJ, REsp 1.546.415/SC, 2ª Turma, Rel. Min. Og Fernandes, j. 21.02.2019)

Visto se tratar de critério para solucionar antinomias, destaca-se o reconhecimento do princípio hermenêutico “in dubio pro natura”[13]. Tal princípio, contudo, exige uma adequada compreensão e aplicação, devendo ser conciliado com outros princípios de interpretação e aplicação do Direito em caso de conflitos, como é o caso do assim chamado princípio pro homini consagrado pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos[14], bem como (entre outros) dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, no âmbito de um Estado Democrático, Social e Ecológico de Direito, onde nenhuma das agendas constitucionais nucleares (liberal, social e ecológica) podem assumir uma posição preferencial apriorística, no sentido de completamente imune a uma conciliação, com limitações recíprocas, com outros direitos, princípios e bens jurídico-constitucionais.

A respeito do tema, calha referir, de modo a ilustrar a utilização dos princípios em matéria ambiental, a posição do Ministro Herman Benjamin, do STJ, em voto emblemático exarado no julgamento do REsp 1.198.727/MG, segundo o qual: “a legislação de amparo dos sujeitos vulneráveis e dos interesses difusos e coletivos deve ser interpretada da maneira que lhes seja mais favorável e melhor possa viabilizar, no plano da eficácia, a prestação jurisdicional e a ratio essendi da norma”.

“ADMINISTRATIVO. AMBIENTAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DESMATAMENTO DE VEGETAÇÃO NATIVA (CERRADO) SEM AUTORIZAÇÃO DA AUTORIDADE AMBIENTAL. DANOS CAUSADOS À BIOTA. INTERPRETAÇÃO DOS ARTS. 4º, VII, E 14, § 1º, DA LEI 6.938/1981, E DO ART. 3º DA LEI 7.347/85. PRINCÍPIOS DA REPARAÇÃO INTEGRAL, DO POLUIDOR-PAGADOR E DO USUÁRIO-PAGADOR. POSSIBILIDADE DE CUMULAÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER (REPARAÇÃO DA ÁREA DEGRADADA) E DE PAGAR QUANTIA CERTA (INDENIZAÇÃO). REDUCTION AD PRISTINUM STATUM. DANO AMBIENTAL INTERMEDIÁRIO, RESIDUAL E MORAL COLETIVO. ART. 5º DA LEI DE INTRODUÇÃO AO CÓDIGO CIVIL. INTERPRETAÇÃO IN DUBIO PRO NATURA DA NORMA AMBIENTAL. 1. Cuidam os autos de ação civil pública proposta com o fito de obter responsabilização por danos ambientais causados pelo desmatamento de vegetação nativa (Cerrado). O juiz de primeiro grau e o Tribunal de Justiça de Minas Gerais consideraram provado o dano ambiental e condenaram o réu a repará-lo; porém, julgaram improcedente o pedido indenizatório pelo dano ecológico pretérito e residual. 2. A legislação de amparo dos sujeitos vulneráveis e dos interesses difusos e coletivos deve ser interpretada da maneira que lhes seja mais favorável e melhor possa viabilizar, no plano da eficácia, a prestação jurisdicional e a ratio essendi da norma. A hermenêutica jurídico-ambiental rege-se pelo princípio in dubio pro natura. (…)” (STJ, REsp 1.198.727/MG, 2ª T., Rel. Min. Herman Benjamin, j. 14.08.2012).

Mais recentemente e de forma paradigmática, o princípio da progressividade aplicado ao regime jurídico de proteção ecológica foi consagrado expressamente, juntamente com o princípio da proibição de retrocesso ecológico, no art. 3, c, do Acordo Regional de Escazú para América Latina e Caribe sobre Acesso à Informação, Participação Pública e Acesso à Justiça em Matéria Ambiental (2018).15 “Artigo 3 – Princípios – Na implementação do presente Acordo, cada Parte será? guiada pelos seguintes princípios: (…) c) princípio de vedação do retrocesso e princípio de progressividade (…)”. O princípio da melhoria da qualidade ambiental ou princípio da progressividade em matéria ambiental tem encontrado amplo esteio na jurisprudência brasileira, notadamente no âmbito do STJ, sendo, assim, uma importante diretriz normativa e hermenêutica para a resolução de conflitos ecológicos.

“PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AMBIENTAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. RESPONSABILIDADE POR DANO CAUSADO AO MEIO AMBIENTE. ZONA COSTEIRA. LEI 7.661/1988. CONSTRUÇÃO DE HOTEL EM ÁREA DE PROMONTÓRIO. NULIDADE DE AUTORIZAÇÃO OU LICENÇA URBANÍSTICO-AMBIENTAL. OBRA POTENCIALMENTE CAUSADORA DE SIGNIFICATIVA DEGRADAÇÃO DO MEIO AMBIENTE. ESTUDO PRÉVIO DE IMPACTO AMBIENTAL – EPIA E RELATÓRIO DE IMPACTO AMBIENTAL – RIMA. COMPETÊNCIA PARA O LICENCIAMENTO URBANÍSTICO-AMBIENTAL. PRINCÍPIO DO POLUIDOR-PAGADOR (ART. 4°, VII, PRIMEIRA PARTE, DA LEI 6.938/1981). RESPONSABILIDADE OBJETIVA (ART. 14, § 1°, DA LEI 6.938/1981). PRINCÍPIO DA MELHORIA DA QUALIDADE AMBIENTAL (ART. 2°, CAPUT, DA LEI 6.938/1981). (…) 12. Ante o princípio da melhoria da qualidade ambiental, adotado no Direito brasileiro (art. 2°, caput, da Lei 6.938/81), inconcebível a proposição de que, se um imóvel, rural ou urbano, encontra-se em região já ecologicamente deteriorada ou comprometida por ação ou omissão de terceiros, dispensável ficaria sua preservação e conservação futuras (e, com maior ênfase, eventual restauração ou recuperação). Tal tese equivaleria, indiretamente, a criar um absurdo cânone de isonomia aplicável a pretenso direito de poluir e degradar: se outros, impunemente, contaminaram, destruíram, ou desmataram o meio ambiente protegido, que a prerrogativa valha para todos e a todos beneficie. (…)” (STJ, REsp 769.753/SC, 2ª Turma, Ministro Herman Benjamin, j. 08.09.2009).

O Acordo de Escazú (2018) também reconheceu o princípio in dubio pro natura para a resolução de conflitos legislativos. Segundo previsão expressa do seu art. 4:

“(…) 7. Nenhuma disposição do presente Acordo limitará ou derrogará outros direitos e garantias mais favoráveis estabelecidos ou que possam ser estabelecidos na legislação de um Estado Parte ou em qualquer outro acordo internacional de que um Estado seja parte, nem impedirá um Estado Parte de conceder um acesso mais amplo à informação ambiental, à participação pública nos processos de tomada de decisões ambientais e à justiça em questões ambientais. 8. Na implementação do presente Acordo, cada Parte procurará adotar a interpretação mais favorável ao pleno gozo e respeito dos direitos de acesso (…).”[16]

O princípio da progressividade ou da melhoria da qualidade ambiental, como imperativo legal imposto ao Estado, também já foi contemplado no âmbito da jurisprudência do STF. A titulo de exemplo, o Min. Alexandre de Moraes, em decisão proferida em 16.05.2019, julgou improcedente a Ação Cível Originária (ACO) 838, na qual o Estado de Santa Catarina pedia a declaração de nulidade do Decreto Presidencial 19/2005, que criou o Parque Nacional das Araucárias. O Min. Alexandre de Morais, muito embora não tenha utilizado a expressão “princípio da progressividade”, decidiu o caso tomando por base as premissas que o caracterizam. O Ministro assinalou que a exigência de lei para a alteração de espaços ambientais, prevista no artigo 225, parágrafo 1º, inciso III, da CF/1988, visa à manutenção de um determinado nível de proteção ambiental, no entanto, conforme assinalou na decisão, “essa garantia não pode agir em detrimento da melhoria do nível de proteção ambiental”.

Em outra decisão, também sob a relatoria do Min. Alexandre de Moraes, sobre competência legislativa concorrente, proibição de retrocesso e dever de progressividade em matéria de Direitos (Humanos e Fundamentais) Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais – DESCA, assinalou o Ministro que:

“A lei atacada resultou em afronta ao princípio da vedação do retrocesso, que impossibilita qualquer supressão ou limitação de direitos fundamentais já adquiridos. Tal garantia se coaduna com os princípios da dignidade da pessoa humana e da segurança jurídica, estabelecendo um dever de progressividade em matérias sociais, econômicas, culturais e ambientais”. (STF, ADI 5.016/BA, Rel. Min. Alexandre de Moraes, j. 11.10.2018)

Igualmente, o Ministro Luiz Fux assinalou, em caso semelhante de conflito legislativo envolvendo o exercício da competência legislativa concorrente em matéria ambiental, no sentido de assegurar a prevalência do regime jurídico mais protetivo, que:

“não bastasse se tratar de exercício legítimo de competência legislativa constitucionalmente assegurada, a medida deve ser elogiada também quanto ao seu conteúdo, tendo em vista a preocupação que o legislador estadual manifestou em conferir tratamento mais protetivo ao meio ambiente”.[17]

Tanto os princípios da progressividade e da melhoria do nível de proteção ambiental quanto o princípio in dubio pro natura operam na mesma lógica ou imperativo normativo de assegurar o fortalecimento do regime jurídico de proteção ecológica, colocando balizas diretivas tanto para o legislador quanto para o intérprete da norma ambiental, o que é extremamente relevante para a resolução do conflito colocado na ADI 6446/DF entre a Lei 11.428/2006 e a Lei 12.651/2012, de modo a privilegiar o marco normativo que assegurar maior proteção jurídica ao bioma da Mata Atlântica.

CONCLUSÃO – RESPOSTAS AO QUESITO 2

 1)  Sim, na hipótese de conflito de normas infraconstitucionais, como verificado na ADI 6446/DF, entre a Lei 12.651/2012 (“lei geral”) e Lei 11.428/2006 (“lei especial”), aplica-se o critério da especialidade para a solução do conflito, ainda que a lei especial tenha sido editada antes da lei geral.

 2)  Igualmente, tanto o princípio da progressividade quanto o princípio “in dubio pro natura”, consagrados expressamente em sede doutrinária, no Acordo de Escazú (2018) e na jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores (STJ e STF), devem servir de critério hermenêutico para solver conflitos legislativos por meio do imperativo normativo de assegurar o fortalecimento do regime jurídico de proteção ecológica, colocando balizas diretivas tanto para o legislador quanto para o intérprete da norma ambiental. A resolução do conflito estabelecido na ADI entre a Lei 11.428/2006 e a Lei 12.651/2012 deve necessariamente privilegiar o marco normativo que assegura maior proteção jurídica ao bioma da Mata Atlântica – no caso, a Lei da Mata Atlântica -, afastando, assim, a incidência a dos artigos 61-A e 61-B do Novo Código Florestal.

 3) Os artigos 61-A e 61-B do Novo Código Florestal, além de possuírem a natureza de “normas de transição e temporárias”, possuem conteúdo extremamente permissivo, incompatível com o regime jurídico da Lei 11.428/2006, notadamente por conta do disposto nos seus artigos 2º, parágrafo único, 5º e 17, de sorte que a especialidade destes últimos dispositivos e do regime jurídico especial de proteção do bioma da Mata Atlântica (patrimônio nacional, tal como estabelecido em sede constitucional pelo art. 225, § 4º, da CF/1988) afastam a incidência dos dispositivos do diploma florestal geral, inadmitindo, assim, a consolidação de atividades (agrossilvipastoris, de ecoturismo e de turismo rural) em Área de Preservação Permanente (APP) de áreas rurais situadas no referido

 II. III. RESPOSTA AO QUESITO 3

3) A aplicação dos artigos 61-A e 61-B da Lei 12.651/2012 ao Bioma Mata Atlântica (em detrimento da Lei da Mata Atlântica – Lei 11.428/2006) pleiteada pela Presidência da República por meio da ADI 6446/DF, implica violação ao princípio da proibição do retrocesso ecológico (e dever de progressividade) e, portanto, configura redução inconstitucional do patamar legislativo de proteção do Bioma Mata Atlântica hoje em vigor?

A resposta quanto ao terceiro questionamento também é afirmativa, conforme se demonstrará mediante os argumentos que seguem o que, por sua vez, pressupõe a incursão por elementos relevantes da dogmática jurídico constitucional, do direito internacional e da própria jurisprudência dos Tribunais Superiores, notadamente do STF.

1.   O direito-dever fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, os deveres estatais de proteção ecológica e o princípio da proibição de retrocesso (e dever de progressividade) em matéria ambiental à luz da CF/1988

A aplicação dos artigos 61-A e 61-B da Lei 12.651/2012 ao Bioma Mata Atlântica (em detrimento da Lei da Mata Atlântica – Lei 11.428/2006) pleiteada pela Presidência da República por meio da ADI 6446/DF implica violação ao princípio da proibição do retrocesso ecológico (e correlato dever de progressividade) e, portanto, configura redução inconstitucional do patamar legislativo de proteção do Bioma Mata Atlântica hoje em vigor.

Igualmente, a pretensão da Advocacia Geral da União na inicial da ADI no sentido de que o STF exclua do ordenamento jurídico interpretação que impeça a aplicação do regime ambiental de áreas consolidadas previsto no Código Florestal às áreas de preservação permanente inseridas no bioma da Mata Atlântica implica flagrante violação ao núcleo essencial do direito fundamental ao meio ambiente consagrado no art. 225 da CF/1988, inclusive no tocante ao direito- garantia ao mínimo existencial ecológico, conforme veremos a seguir, como expressão do princípio da dignidade da pessoa humana e sua dimensão ecológica (art. 1º, III, da CF/1988)[18].

Desde a sua gênese com a edição da Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6.938/81) – o Código Ambiental Brasileiro -, o desenvolvimento da legislação e da política ambiental como um todo – estruturação administrativa em matéria ambiental – ocorreu de modo progressivo no Brasil, com um status e patamar normativo cada vez mais consistente, especializado e aprimorado ao longos dos anos.

Já vivenciamos ao longo de quatro décadas uma história de avanços na consolidação do marco jurídico e político ecológico hoje vigente, inclusive no sentido da “constitucionalização” do Direito Ambiental e consagração da proteção ecológica no rol dos direitos fundamentais estabelecido pela nossa Lei Fundamental de 1988, como um novo direito fundamental de titularidade de todos a viver em um meio ambiente sadio e equilibrado. Paralelamente ao reconhecimento do direito fundamental ao meio ambiente, a nossa ordem constitucional (art. 225) consagrou a proteção ambiental como um dos objetivos ou tarefas elementares do Estado de Direito brasileiro. Isso conduz ao reconhecimento, pela ordem constitucional, da dupla funcionalidade da proteção ambiental no ordenamento jurídico brasileiro, assumindo simultaneamente tanto a forma de um objetivo e tarefa estatal quanto de um direito (e dever) fundamental do indivíduo e da coletividade, como já sedimentado na jurisprudência do STF:

“A QUESTÃO DO DIREITO AO MEIO AMBIENTE ECOLOGICAMENTE EQUILIBRADO DIREITO DE TERCEIRA GERAÇÃO   –   PRINCÍPIO   DA   SOLIDARIEDADE.    O   direito  à integridade do meio ambiente – típico direito de terceira geração – constitui prerrogativa jurídica de titularidade coletiva, refletindo, dentro do processo de afirmação dos direitos humanos, a expressão significativa de um poder atribuído, não ao indivíduo identificado em sua singularidade, mas, num sentido verdadeiramente mais abrangente, a própria coletividade social. Enquanto os direitos de primeira geração (Direito Civis e Políticos) – que compreendem  as  liberdades  clássicas,  negativas  ou  formais  –  realçam o princípio da liberdade e os direitos de segunda geração (Direitos Econômicos, Sociais e Culturais) – que se identificam com as liberdades positivas, reais ou concretas – acentuam o princípio da igualdade, os direitos de terceira geração, que materializam poderes de titularidade coletiva atribuídos genericamente a todas as formações sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem um momento importante no processo de desenvolvimento, expansão e reconhecimento dos direitos humanos, caracterizados, enquanto valores fundamentais indisponíveis, pela nota de uma essencial inexauribilidade”. (STF, MS 22.164/SP, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, j. 30.10.1995).

O princípio da dignidade da pessoa humana comporta hoje uma dimensão ecológica, o que implica necessariamente a garantia de um patamar mínimo de bem-estar em termos ecológicos, inclusive à luz do que se tem designado de um direito-garantia ao mínimo existencial ecológico, conforme resultou consignado em recente decisão do Ministro Ministro Luís Roberto Barroso na ADPF 708/DF:

“Além de constituir um direito fundamental em si, o direito ao meio ambiente saudável é internacionalmente reconhecido como pressuposto para o desfrute de outros direitos que integram o mínimo existencial de todo ser humano, como a vida, a saúde, a segurança alimentar e o acesso à água”.

Compartilhando do mesmo entendimento, destaca-se passagem do voto do Ministro Ricardo Lewandowski no julgamento da ADI 4.903/DF (Caso do Novo Código Florestal):

“(…) o mínimo existencial é aquele conjunto de bens materiais e imateriais sem o qual uma pessoa não pode levar uma vida digna e esta inclui, evidentemente, um meio ambiente hígido, condição sine qua non, registre-se, para viabilizar a própria continuidade da vida dos seres humanos na Terra. Embora raramente inscrito de forma textual nas Constituições, o Mínimo Existencial representa a própria essência de qualquer ordenamento jurídico que se julgue civilizado”.[19]

Ainda a respeito da questão, reproduz-se também outra passagem da mesma decisão Ministro Barroso na ADPF 708/DF, inclusive mediante a constatação de preocupante cenário de retrocesso na política ambiental brasileira nos últimos anos, em contraste com a trajetória até então progressiva e de fortalecimento do marco jurídico ecólogo verificada desde o inicio da Década de 1980, por meio da Lei 6.938/81 (Lei da Política nacional do Meio Ambiente):

(…) Tudo sugere, portanto, uma trajetória contínua, progressiva e preocupante de esvaziamento das políticas públicas brasileiras em matéria ambiental, agravada exponencialmente no último ano e meio. De fato, tal estado de coisas envolve não apenas o direito de todos a um meio ambiente saudável em si (art. 225, CF), mas produz reflexos sobre um amplo conjunto de outros direitos fundamentais protegidos pela Constituição de 1988, como o direito à vida (art. 5º, CF), à saúde (art. 6º, CF), à segurança alimentar e à água potável (art. 6º, CF), à moradia (no sentido de habitat), ao trabalho (art. 7º, CF), podendo impactar, ainda, o direito à identidade cultural, o modo de vida e a subsistência de povos indígenas, quilombolas e demais comunidades tradicionais (art. 23, III, art. 215, caput e §1º e art. 216 c/c art. 231, CF e art. 68, ADCT). Tal relação de interdependência entre o direito ao meio ambiente saudável e outros direitos não é estranha à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que, a título ilustrativo, tem reconhecido aos princípios da precaução e da prevenção uma origem comum, que conecta o direito ao meio ambiente saudável ao direito à saúde. Nesse sentido: ADI 5.592, rel. p/ acórdão Min. Edson Fachin, j. 11.09.2019; ADI 4.066, rel. Min. Rosa Weber, j. 24.08.2017; RE 627.189, rel. Min. Dias Toffoli, j. 08.06.2016.

Ademais, não há qualquer distinção quanto ao regime jurídico ou força jurídica a ser aplicada aos direitos fundamentais presentes no catálogo e àqueles incluídos no rol através da abertura do art. 5º, §2º, da Constituição,20 tendo, portanto, o direito fundamental ao meio ambiente aplicação imediata, na linha do que dispõe o § 1º do art. 5º, bem como constituindo-se de norma de eficácia direta e irradiante sob todo o ordenamento jurídico e passando a integrar o rol das cláusulas pétreas (art. 60, § 4º, inc. IV, da CF/1988). No plano material, houve uma decisão tomada pelo constituinte brasileiro ao consolidar o direito subjetivo dos indivíduos e da coletividade a viverem em um meio ambiente ecologicamente equilibrado, considerando ser o mesmo “essencial à sadia qualidade de vida” (art. 225, caput, da CF/1988). Ao declarar ser a qualidade ambiental essencial a uma vida humana saudável (e também digna), o constituinte consignou no pacto constitucional sua escolha de incluir a proteção ambiental entre os valores permanentes e fundamentais da República brasileira. E, portanto, eventual retrocesso em tal matéria constitucional – por exemplo, supressão total ou parcial do conteúdo na norma inscrita no art. 225 da CF/1988 – representaria flagrante violação aos valores edificantes do nosso sistema constitucional.

Em razão da aderência do direito ao meio ambiente ao direito à vida, conforme a lição de José Afonso da Silva, há a contaminação da proteção ambiental com uma qualidade que impede sua eliminação por via de emenda constitucional[21], estando, por via de consequência, inserido materialmente no rol das matérias componentes dos limites materiais ao poder de reforma constantes do art. 60, § 4º, da Constituição Federal[22], de modo a conferir ao direito fundamental ao meio ambiente o status de cláusula pétrea.  Outra não poderia ser a interpretação constitucional dada ao direito ao meio ambiente, em vista da consagração da sua jusfundamentalidade. A consolidação constitucional da proteção ecológica como cláusula pétrea corresponde à decisão essencial da Lei Fundamental brasileira, em razão da sua importância do desfrute de uma vida com qualidade ambiental à proteção e equilíbrio de todo o sistema de valores e direitos constitucionais, e especialmente à dignidade humana. Com o reconhecimento da proteção ambiental como cláusula pétrea, a Constituição brasileira, como identificou Benjamin, conferiu um “valioso atributo de durabilidade” à proteção ambiental no âmbito ordenamento jurídico-constitucional brasileiro, o qual “funciona como barreira à desregulamentação e a alterações ao sabor de crises e emergências momentâneas, artificiais ou não”.[23]

O reforço constitucional que se pretende conferir ao direito fundamental ao ambiente através do seu reconhecimento como cláusula pétrea também está em consonância com a garantia constitucional de proibição de retrocesso ecológico, já que tal instituto jurídico-constitucional objetiva blindar o bloco normativo constitucional-ambiental contra eventuais retrocessos, especialmente no tocante proteção conferida aos direitos fundamentais e à dignidade da pessoa humana. De acordo com tal entendimento, Morato Leite pontua que “o direito fundamental ao ambiente não admite retrocesso ecológico, pois está inserido como norma e garantia fundamental de todos, tendo aplicabilidade imediata, consoante art. 5º, §§ 1º e 2º, da Constituição. Além do que o art. 60, § 4º, IV, também da Carta Magna, proíbe proposta de abolir o direito fundamental ambiental, nesse sentido considerado cláusula pétrea devido à sua relevância para o sistema constitucional brasileiro”.[24]

Por certo, não há como negar que uma interpretação restritiva das cláusulas pétreas tem por objetivo impedir uma petrificação de toda a Constituição, o que não pode prevalecer diante de uma exegese sistemática, que tenha sempre presente a necessidade de preservar os seus elementos essenciais, insuscetíveis de supressão ou esvaziamento pela atuação do poder de reforma constitucional. Constituindo os direitos sociais e os direitos ecológicos (assim como os direitos civis e políticos) valores basilares de um Estado Ecológico ou (Socio)Ambiental e Democrático de Direito, sua abolição acabaria porredundar na própria destruição da identidade da nossa ordem constitucional, o que, por evidente, se encontra em flagrante contradição com a finalidade precípua das cláusulas pétreas.

Quanto ao risco de uma indesejável galvanização da Constituição, é preciso considerar que apenas uma efetiva ou tendencial abolição das decisões fundamentais tomadas pelo Constituinte se encontra vedada, não se vislumbrando qualquer obstáculo à sua eventual adaptação às exigências de um mundo em constante transformação.[25] O STJ, nesse sentido, passou a reconhecer a categoria jurídica dos direitos ambientais adquiridos, como “limite constitucional intocável e intransponível da “incumbência” do Estado de garantir a preservação e a restauração dos processos ecológicos essenciais” (art. 225, § 1º, I), conforme ementa da decisão que segue abaixo.

“PROCESSO CIVIL E AMBIENTAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. RESPONSABILIDADE POR DANOS AMBIENTAIS. MATA CILIAR AO REDOR DO RESERVATÓRIO HIDRELÉTRICO DE SALTO SANTIAGO. ÁREA DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE. DANOS AMBIENTAIS. REFLORESTAMENTO. (…) NOVO CÓDIGO FLORESTAL. IRRETROATIVIDADE. PRECEDENTES.(…) O novo Código Florestal não pode retroagir para atingir o ato jurídico perfeito, os direitos ambientais adquiridos e a coisa julgada, tampouco para reduzir de tal modo e sem as necessárias compensações ambientais o patamar de proteção de ecossistemas frágeis ou espécies ameaçadas de extinção, a ponto de transgredir o limite constitucional intocável e intransponível da “incumbência” do Estado de garantir a preservação e a restauração dos processos ecológicos essenciais (art. 225, § 1º, I). Precedentes. Agravo regimental improvido.” (STJ, AgRg no REsp 1.434.797/PR, 2ª Turma, Rel. Min. Humberto Martins, j. 17.05.2016)

Mais recentemente, dado o necessário “diálogo de fontes normativas” [26] e também do assim chamado “diálogo entre Cortes de Justiça”27), esse mesmo entendimento pode ser apreendido do conteúdo da Opinião Consultiva n. 23/2017 sobre “Meio Ambiente e Direitos Humanos” da Corte Interamericana de Direitos Humanos, representando o ápice até aqui do denominado greening”[28] do Sistema Interamericano de Direitos Humanos[29]. A Corte, no referido documento, reconheceu expressamente

“la existencia de una relación innegable entre la protección del medio ambiente y la realización de otros derechos humanos, en tanto la degradación ambiental y los efectos adversos del cambio climático afectan el goce efectivo de los derechos humanos”[30], “que varios derechos de rango fundamental requieren, como una precondición necesaria para su ejercicio, una calidad medioambiental mínima, y se ven afectados en forma profunda por la degradación de los recursos naturales”[31], de modo que se tem como consequência disso “la interdependencia e indivisibilidad entre los derechos humanos y la protección del medio ambiente”.[32]

O STF, nesse sentido e de modo a reforçar a vinculação e diálogo de fontes normativas entre os planos normativos internacional e nacional, em voto da Ministra Rosa Weber no julgamento da ADI 4066/DF (Caso do Amianto), já reconheceu a supralegalidade (ou hierarquia supralegal) dos tratados internacionais em matéria ambiental, conferido, assim, o mesmo tratamento assegurado aos tratados internacionais de direitos humanos, de modo que também tais diplomas internacionais devem servir de parâmetro normativo para a interpretação da legislação infraconstitucional brasileira em matéria ambiental. No seu voto, a Ministra atribui status supralegal à Convenção de Basileia sobre o Controle de Movimentos Transfronteiriços de Resíduos Perigosos e seu Depósito, de 1989, aprovada no Brasil pelo Decreto Legislativo n. 34/1992 e promulgada pelo Decreto n. 875/1993. Segundo a Ministra, “porque veiculadoras de regimes protetivos de direitos fundamentais, as Convenções n. 139 e 162 da OIT, bem como a Convenção de Basileia, assumem, no nosso ordenamento jurídico, status de supralegalidade (…).[33] .

Assim, importa enfatizar, um dos aspectos mais importantes do controle de convencionalidade diz respeito ao dever ex officio de Juízes e Tribunais internos de atentarem para o conteúdo dos diplomas internacionais sobre direitos humanos, entre os quais o direito ao meio ambiente, o que, em matéria ambiental, reforça o que tem designado como uma espécie de governança judicial ecológica. Isso, por sua vez, reforça o dever dos Estados-Membros da Convenção Americana de Direitos Humanos, como é o caso do Brasil, de assegurar no âmbito da sua legislação doméstica um regime jurídico de proteção ecológica compatível com tal cenário normativo internacional.

O Estado, por imposição constitucional, assume a função de governança ecológica, colocando-se na posição de gestor ou administrador (Stewardship34) dos recursos naturais e, mais do que isso, do equilíbrio e integridade da Natureza na sua totalidade (princípio da integridade ecológica[35]). Os deveres de proteção ecológica do Estado estão alicerçados no compromisso político e jurídico- constitucional assumido pelos entes estatais e pela sociedade por meio do pacto constitucional firmado em 1988. O Estado brasileiro tem, portanto, o dever tutelar e garantir nada menos do que uma vida digna, saudável e segura aos indivíduos e à sociedade como um todo, o que passa pela tarefa de promover a realização dos seus direitos fundamentais, retirando possíveis óbices colocados à sua efetivação.

De acordo com tal premissa, a implantação das liberdades e garantias fundamentais (direito à vida, livre desenvolvimento da personalidade, etc.) pressupõe uma ação positiva (e não apenas negativa) dos poderes públicos, no sentido de remover os “obstáculos” de ordem econômica, social e cultural que impeçam o pleno desenvolvimento da pessoa humana.[36] Uma vez alçada ao status constitucional de direito fundamental, além de tarefa e dever do Estado e da sociedade, a proteção ecológica passa a ser identificado como elemento indispensável ao pleno desenvolvimento da pessoa humana, qualquer “óbice” que interfira na concretização e exercício do direito em questão deve ser afastado pelo Estado, seja tal conduta ou omissão obra de particulares, seja ela oriunda do próprio poder público.

O rol dos deveres de proteção ambiental do Estado traçado pelo § 1.º e demais dispositivos do art. 225, cabe frisar, é apenas exemplificativo,[37] estando aberto a outros deveres necessários a uma tutela abrangente e integral do ambiente, especialmente em razão do surgimento permanente de novos riscos e ameaças à Natureza provocadas pelo avanço da técnica e intervenção humana no meio natural, como é o caso hoje, por exemplo, do aquecimento global, impondo ao Estado novos deveres de proteção climáticos (Klimaschutzpflichten[38]).

Como conteúdo dos deveres de proteção climática resultantes do regime constitucional de tutela ecológica estabelecido pelo art. 20a da Lei Fundamental alemã, Thomas Groß, destaca, além da vedação de proteção insuficiente (Untermaßverbot), como objetivo estatal (Staatsziel) correlato, a “vedação ou proibição de piora ou deterioração” (Verschlechterungsverbot) das condições climáticas, inclusive em vista de um dever de adoção de medidas, por parte dos Poderes Executivo e Judiciário, que contemplem a resolução de conflitos lastreados por uma espécie de “princípio” (o autor não chega a utilizar tal nomenclatura) “in dubio pro natura” e, portanto, com práticas resolutivas “amigas do clima” (klimafreundliche Lösungen).

Os deveres estatais de proteção ecológica estabelecem tanto a obrigação constitucional do Estado-Legislador de adotar medidas legislativas quanto do Estado-Administrador de executar tais medidas de forma adequada e suficiente à efetivação da tutela ecológica e do direito fundamental em questão tem por escopo resguardar também os interesses e direitos das futuras gerações, ou seja, a atuação estatal deve levar em conta as consequências e efeitos de longo prazo das decisões tomadas. E, quando tal não ocorrer, por omissão ou atuação insuficiente, o Estado-Juiz poderá ser acionado para coibir ou corrigir eventuais violações aos parâmetros constitucionalmente exigidos em termos de proteção e promoção da qualidade e da segurança ambiental.

Outro aspecto importante atrelado aos deveres de proteção ambiental do Estado diz respeito à limitação da discricionariedade estatal (legislativa, administrativa e judicial) deles decorrente. Os deveres de proteção vinculam os poderes estatais ao ponto de limitar a sua liberdade de conformação na adoção de medidas atinentes à tutela ecológica. A consagração constitucional da proteção ambiental como objetivo ou tarefa estatal, de acordo com o entendimento de Garcia, traduz a imposição de deveres de proteção ao Estado que lhe retiram a sua “capacidade de decidir sobre a oportunidade do agir”, obrigando-o também a uma adequação permanente das medidas às situações que carecem de proteção, bem como a uma especial responsabilidade de coerência na autorregulação social.[39]

No caso especialmente do Poder Executivo, há uma clara limitação ao seu poder-dever40 de discricionariedade, de modo a restringir a sua margem de liberdade na escolha nas medidas protetivas do ambiente, sempre no intuito de garantir a maior eficácia possível e efetividade ao direito fundamental em questão. Na mesma linha, Benjamin identifica a redução da discricionariedade da Administração Pública como benefício da “constitucionalização” da tutela ambiental, pois as normas constitucionais impõem e, portanto, vinculam a atuação administrativa no sentido de um permanente dever de levar em conta o meio ambiente e de, direta e positivamente, protegê-lo, bem como exigir o seu respeito pelos demais membros da comunidade estatal.[41]

Tomando por base os deveres de proteção ambiental impostos pela ordem constitucional ao Estado com um todo (Estado-Legislador, Estado-Administrador e Estado-Juiz), o conflito em questão também deve ser analisado à luz do princípio da proibição de retrocesso em matéria ambiental. No âmbito do Direito Internacional dos Direitos Humanos, privilegia-se o tratamento integrado e interdependente dos direitos humanos (liberais, sociais e ecológicos).

A título de exemplo, tem-se falado hoje inclusive da sigla DESCA (para além da clássica denominação de DESC), contemplando uma visão integrada dos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais. O Protocolo de San Salvador Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1988) incorpora tal compreensão acerca dos DESCA, apontando, no bojo do seu texto, juntamente com amplo rol de direitos sociais, que “toda pessoa tem direito a viver em meio ambiente sadio e a dispor dos serviços públicos básico” (art. 11.1), bem como que “os Estados- Partes promoverão a proteção, preservação e melhoramento do meio ambiente” (11.2).

Na esfera dos fundamentos jurídicos da proibição de retrocesso há que destacar, ainda, a cláusula de progressividade ou o dever de progressiva realização (e proteção) prevista no Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966, que impõe aos Estados pactuantes a implementação progressiva dos direitos sociais nele consagrados. Dispõe o art. 2.º, parágrafo 1, do Pacto que

“cada Estado Parte do presente Pacto compromete-se a adotar medidas, tanto por esforço próprio como pela assistência e cooperação internacionais, principalmente nos planos econômico e técnico, até o máximo de seus recursos disponíveis, que visem a assegurar, progressivamente, por todos os meios apropriados, o pleno exercício dos direitos reconhecidos no presente Pacto, incluindo, em particular, a adoção de medidas legislativas”.

Também o art. 26 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1969)[42], complementado pelo art. 1.º do Protocolo de San Salvador Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1988), prevê norma equivalente no sentido de caracterizar o dever dos Estados-Membros de “desenvolvimento progressivo” dos direitos econômicos, sociais e culturais. Da obrigação de progressividade na implementação dos direitos econômicos, sociais e culturais, como acentua Piovesan, decorre a chamada “cláusula de proibição do retrocesso social”, na medida em que é vedado aos Estados retrocederem na implementação de tais direitos[43].

Antes ainda do Protocolo de San Salvador, também o próprio Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966) já sinalizava a sua receptividade e abertura à tutela ecológica – ainda bastante incipiente no plano normativo internacional, considerando que a Conferência e Declaração de Estocolmo das Nações Unidas sobre Meio Ambiente Humano datam de 1972. Alguns dispositivos do seu texto já destacavam a relação da proteção do ambiente com os direitos sociais, na medida em que dispõe sobre o direito de toda pessoa a um nível de vida adequado e de uma melhoria contínua das condições de vida (art. 11.1), bem como acerca do direito de toda pessoa a desfrutar do mais elevado nível de saúde física e mental relacionado à melhoria de todos os aspectos de higiene do trabalho e do meio ambiente (art. 12.1 e 12.2.b).[44]

Trilhando o mesmo caminho, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, no âmbito da Opinião Consultiva n. 23/2017, reconheceu expressamente, que, como “consecuencia de la interdependencia e indivisibilidad entre los derechos humanos y la protección del medio ambiente es que, en la determinación de estas obligaciones estatales, la Corte puede hacer uso de los principios, derechos y obligaciones del derecho ambiental internacional, los cuales como parte del corpus iuris internacional contribuyen en forma decisiva a fijar el alcance de las obligaciones derivadas de la Convención Americana en esta materia”.45 Forte em tal entendimento, a Corte entendeu que o art. 11 do Protocolo de San Salvador “debe considerarse incluido entre los derechos económicos, sociales y culturales protegidos por el articulo 26 de la Convención Americana, debido a que bajo dicha norma se encuentran protegidos aquellos derechos que se derivan de las normas económicas, sociales y sobre educación, ciencia y cultura contenidas en la Carta de la OEA, en la Declaración Americana sobre Derechos y Deberes del Hombre (en la medida en que ésta última ‘contiene y define aquellos derechos humanos esenciales a los que la Carta se refiere’) y los que se deriven de una interpretación de la Convención acorde con los criterios establecidos en el artículo 29 de la misma. La Corte reitera la interdependencia e indivisibilidad existente entre los derechos civiles y políticos, y los económicos, sociales y culturales, puesto que deben ser entendidos integralmente y de forma conglobada como derechos humanos, sin jerarquía entre sí y exigibles en todos los casos ante aquellas autoridades que resulten competentes para ello”[46].

A Corte IDH, portanto, com base em tal entendimento, consignou expressamente a incidência do dever de progressividade (e correlato princípio da vedação de retrocesso) em face do art. 11 do Protocolo de San Salvador, que trata especificamente do direito humano a viver em um meio ambiente sadio.

O princípio da progressividade e os respectivos deveres do Estado, inicialmente pensada e aplicada ao âmbito dos direitos sociais em sentido estrito, tanto no âmbito global quanto interamericano, hoje deve ser concebida como um espécie de cláusula ou princípio geral da Teoria Geral dos Direitos Humanos (e o mesmo vale para a Teoria Geral dos Direitos Fundamentais na esfera constitucional). Isso implica reconhecer que também as medidas normativas e fáticas voltadas à tutela ecológica estão acobertadas por tal parâmetro normativo, com o propósito dirigente de instituir uma progressiva melhoria da qualidade ambiental e, consequentemente, da qualidade de vida em geral, conforme já citado anteriormente. É possível, nesse sentido, sustentar a ampliação da incidência do instituto da proibição de retrocesso para além dos direitos sociais, de modo a contemplar os direitos fundamentais em geral47 (liberais, sociais eecológicos).

Mais uma razão, portanto, para levar a sério a crítica lançada por Jorge R. Novais no sentido de que a metódica mais correta consiste em aplicar ao universo dos direitos fundamentais (incluindo, portanto, o direito ao ambiente) a teoria geral que dispõe sobre os limites e restrições dos direitos fundamentais, em vez de tratar os direitos sociais e os direitos ecológicos como se não fossem fundamentais ou mesmo constituíssem um grupo distinto a merecer uma tutela diferenciada.48 A proibição de retrocesso ecológico encontra-se, portanto, ancorada e iluminada pela Teoria Geral dos Direitos Fundamentais, como medida de salvaguarda do direito fundamental ao ambiente consagrado, no caso brasileiro, no art. 225 da CF/1988.

A proibição de retrocesso em matéria de proteção e promoção dos DESCA guarda relação com a previsão expressa de um dever de progressiva realização contido em cláusulas vinculativas de direito internacional. Tanto quanto proteger o pouco que há em termos de direitos sociais e ecológicos efetivos, também aplica-se o correlativo dever de progressiva implantação de tais direitos e construção de uma cidadania inclusiva, até mesmo em termos de uma cidadania ecológica. O progresso (em termos fáticos e normativos), aqui compreendido na perspectiva de um dever de desenvolvimento sustentável, necessariamente conciliando os eixos econômico, social e ambiental, segue sendo possivelmente o maior desafio não apenas, mas especialmente para Estados Constitucionais tidos como periféricos ou em fase de desenvolvimento.

A garantia da proibição de retrocesso ecológico,49 nessa perspectiva, seria concebida no sentido de que a tutela jurídica ambiental – tanto sob a perspectiva constitucional quanto infraconstitucional – deve operar de modo progressivo tanto no âmbito normativo quanto institucional, a fim de assegurar a ampliação da qualidade de vida existente hoje e atender a padrões cada vez mais rigorosos de tutela da dignidade da pessoa humana, não admitindo redução no seu regime jurídico, em termos normativos e fáticos, a um nível de proteção inferior àquele verificado hoje. De acordo com Canotilho, “a liberdade de conformação política do legislador no âmbito das políticas ambientais tem menos folga no que respeita à reversibilidade político-jurídica da proteção ambiental, sendo-lhe vedado adoptar novas políticas que traduzam em retrocesso retroactivo de posições jurídico- ambientais fortemente enraizadas na cultura dos povos e na consciência jurídica geral”.[50]

Não sem razão, o conceito de desenvolvimento sustentável, cunhado no âmbito da Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento da Organização das Nações Unidas (ONU), por conta da publicação, no ano de 1987, do Relatório Nosso Futuro Comum, traz que o mesmo seria “aquele que atende às necessidades do presente sem comprometer a possibilidade de as gerações futuras atenderem a suas próprias necessidades”.[51] A ideia de sustentabilidade[52] está na razão de ser da proteção do ambiente, já que manter (e, em muitos casos, recuperar) o equilíbrio ambiental implica o uso racional e harmônico dos recursos naturais, de modo a não os levar ao seu esgotamento, e, consequentemente, à sua degradação. Até por uma questão de justiça entre gerações humanas, a geração presente teria a responsabilidade de deixar como legado às gerações futuras condições ambientais idênticas ou melhores do que aquelas recebidas das gerações passadas, estando a geração vivente, portanto, vedada a alterar em termos negativos as condições ecológicas, inclusive por força do princípio da proibição de retrocesso ecológico e do dever de melhoria progressiva do regime jurídico de proteção ecológica do Estado e dos particulares.

No plano internacional, a mesma ideia de melhoria e aperfeiçoamento da proteção jurídica ecológica resultou consignada no Princípio 27 da Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (1992), ao estabelecer que“os Estados e os povos irão cooperar de boa fé e imbuídos de um espírito de parceria para a realização dos princípios consubstanciados nesta Declaração, e para o desenvolvimento progressivo do direito internacional no campo do desenvolvimento sustentável ”.[53] Mais recentemente, no Preambulo do Acordo de Paris (2015), a comunidade internacional reconhece um expressamente “a necessidade de uma resposta eficaz e progressiva à ameaça urgente da mudança do clima com base no melhor conhecimento científico disponível”. [54]

De modo emblemático, esse parece ser o conteúdo consagrado na norma inscrita no art. 37 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, quando dispõe que “todas as políticas da União devem integrar um nível elevado de proteção do ambiente e a melhoria da sua qualidade, e assegurá-los de acordo com o princípio do desenvolvimento sustentável”. Do parâmetro de um nível elevado de proteção ecológica e de uma melhoria da qualidade ambiental, deriva a proibição de retrocessos legislativos ou administrativos. Ou, como refere Sabine Schlake, verifica-se a caracterização da proibição de piora ou deterioração (Verschlechterungsverbot) do atual status quo ecológico. Tal afirmação é ilustrada por meio da Diretiva 2000/60/CE da Comunidade Europeia, de 23 de Outubro de 2000, que estabelece um quadro de ação comunitária no domínio da política de águas, ao prever que “os Estados-Membros aplicarão as medidas necessárias para evitar a deterioração do estado de todas corpos de águas superficiais (…)” (art. 4, 1, a, i,).[55]

Do parâmetro normativo de um nível elevado de proteção da Carta dos Direitos Fundamentais, também se configura o dever de uma melhoria dos níveis de proteção ecológica, ou, como sustenta a doutrina alemã ao comentar tal dispositivo, um imperativo de otimização, melhoria, aperfeiçoamento, etc. (Optimierungsgebot).[56] O desrespeito a tal diretriz normativa, tanto pela ótica do imperativo de otimização quanto da proibição de deterioração ou piora do estado ou condições ecológicas, colocaria a medida legislativa ou administrativa praticada pelo Estado-Membro em confronto aberto com a Carta dos Direitos Fundamentais e as diretivas normativas europeias em matéria ambiental.

No ordenamento jurídico brasileiro, em sintonia com tal contexto normativo internacional e comparado, verifica-se também, em diversos diplomas, a adoção de um princípio (ou dever) de melhoria progressiva da qualidade ambiental.57 O nosso “Código Ambiental”, ou seja, a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6.938/1981), de forma bastante clara, seguiu tal diretriz normativa e consagrou, no seu art. 2.º, caput, que “a Política Nacional do Meio Ambiente tem por objetivo a preservação, melhoria e recuperação da qualidade ambiental propícia à vida, visando assegurar, no País, condições ao desenvolvimento socioeconômico, aos interesses da segurança nacional e à proteção da dignidade da vida humana”.[58]

Seguindo na análise da legislação brasileira, é importante destacar, ainda, que há um grande déficit em termos de proteção ambiental existente hoje, na medida em que, como é visível na questão do aquecimento global e das mudanças climáticas, impõem-se medidas no sentido de “recuar” em termos de práticas poluidoras – por exemplo, reduzir as emissões dos gases geradores do efeito estufa –, não sendo suficiente apenas impedir que tais práticas sejam ampliadas. O exemplo da Mata Atlântica é emblemático nesse sentido, justamente por se tratar do bioma continental brasileiro mais devastando de todos, restando hígida, como já referido anteriormente, apenas 12,4% da sua cobertura vegetal original.

Em sintonia com tal entendimento, com o intuito de fazer com que as práticas poluidoras “recuem” – através da “redução dos impactos” da ação humana sobre o ambiente – e a qualidade ambiental melhore de forma progressiva, a Lei da Política Nacional sobre Mudança do Clima – PNMC (Lei 12.187/2009), que, além de enunciar, no caput do art. 3.º, como diretrizes para a questão climática, a consagração dos princípios da precaução, da prevenção, da participação cidadã e do desenvolvimento sustentável – bem como do princípio das responsabilidades comuns, porém diferenciadas, aplicado no âmbito internacional –, estabelece, no mesmo artigo citado, no seu inciso I, que “todos têm o dever de atuar, em benefício das presentes e futuras gerações, para a redução dos impactos decorrentes das interferências antrópicas sobre o sistema climático”. A proteção do bioma da Mata Atlântica, nesse sentido, tem um papel fundamental para a integridade do sistema climático, de sorte que a discussão lançada na ADI 6.446/DF também diz respeito a caso de litigância climática59 e possível violação ao direito fundamental a um clima estável, como suscitado por Gabriel Wedy em sede doutrinária[60].

A legislação infraconstitucional que busca dar operatividade ao dever constitucional de proteção ecológica deve ter assegurada a sua blindagem contra retrocessos que a tornem menos rigorosa ou flexível, admitindo práticas poluidoras hoje proibidas, assim como buscar sempre um nível mais rigoroso de proteção, considerando especialmente o déficit legado pelo nosso passado e um “ajuste de contas” com o futuro, no sentido de manter um equilíbrio ambiental também para as futuras gerações. O que não se admite, até por um critério de justiça entre gerações humanas, é que sobre as gerações futuras recaia integralmente o ônus do descaso ecológico perpetrado pelas gerações passadas e presentes, destacando inclusive a sub-representação político-jurídica dos interesses e direitos não apenas das crianças e jovens que hoje já habitam o Planeta Terra, mas também das futuras gerações (ainda por nascer), em descompasso com a própria proteção assegurada em sede constitucional pelo caput do art. 225 da CF/1988, o que reforça a importância do papel (em algumas situações, contramajoritário) exercido pelo Estado-Juiz na salvaguarda do bem jurídico ecológico.

O princípio da proibição de retrocesso ecológico, como afirma Carlos A. Molinaro, estabelece uma proposição empírica de que, por intermédio de uma eleição valiosa de nossa existência e de uma avaliação intergeracional, não é permitido que se retroceda a condições ambientais prévias àquelas que se desfrutam na atualidade.61 Quanto a esse ponto, verifica-se que a noção da limitação dos recursos naturais também contribui para a elucidação da questão, uma vez que boa parte dos recursos naturais não é renovável, e, portanto, tem a sua utilização limitada e sujeita ao esgotamento. Torna-se, portanto, imperativoo uso racional, equilibrado e equânime dos recursos naturais, no intuito de não agravar de forma negativa a qualidade de vida e o equilíbrio dos ecossistemas, comprometendo inclusive as condições existências elementares à vida das futuras gerações.

A doutrina, sensível à questão e, sobretudo, à atual tendência de “flexibilização” da legislação ambiental, o que se vê de modo preocupante no caso brasileiro nos últimos anos, tem caminhado no sentido de consagrar a vertente ecológica do princípio da proibição de retrocesso, inclusive a ponto de reconhecê- lo como um novo princípio geral do Direito Ambiental.[62] Segundo, Herman Benjamin, a proibição de retrocesso “transformou-se em princípio geral do Direito Ambiental, a ser invocado na avaliação da legitimidade de iniciativas legislativas destinadas a reduzir o patamar de tutela geral do meio ambiente, mormente naquilo que afete em particular: a) processos ecológicos essenciais, b) ecossistemas frágeis ou à beira de colapso e) espécies ameaçadas de extinção”.63 Não há dúvida, por exemplo, que o bioma da Mata Atlântica encontra-se, nesse sentido, do ponto de vista fático, como um ecossistema frágil à beira de colapso, o que implica a extinção progressiva de espécies da flora e da fauna (hoje ameaçados), restando tão somente 12,4% da sua cobertura vegetal original, de sorte que qualquer retrocesso normativo no seu regime jurídico de proteção é inadmissível.

J. J. Gomes Canotilho, da mesma forma, destaca que a consagração constitucional do meio ambiente como tarefa ou fim do Estado impõe a proibição de retrocesso ecológico, determinando que “a água, os solos, a fauna, a flora, não podem ver aumentado o ‘grau de esgotamento’, surgindo os ‘limites do esgotamento’ como limite jurídico-constitucional da liberdade de conformação dos poderes públicos”.64 De modo complementar, Orci B. Teixeira assinala que o princípio da proibição de retrocesso ecológico encontra assento constitucional e visa inviabilizar toda e qualquer medida regressiva em desfavor do meio ambiente, impondo limites à atuação dos poderes públicos, bem como autorizando a intervenção do Poder Público para impedir o retrocesso, quer por medidas de polícia administrativa quer por meio de decisões judiciais. O direito fundamental ao ambiente, como conclui o autor, “só é modificável in mellius e não in pejusuma vez que é expressão da sadia qualidade de vida e da dignidade da pessoa humana”.[65]

Mais recentemente e de forma paradigmática, o princípio da progressividade aplicado ao regime jurídico de proteção ecológica foi consagrado expressamente, juntamente com o princípio da proibição de retrocesso ecológico, no art. 3, c, do Acordo Regional de Escazú para América Latina e Caribe sobre Acesso à Informação, Participação Pública e Acesso à Justiça em Matéria Ambiental (2018).66 O Acordo de Escazú também reconheceu o que se pode designar como um princípio in dubio pro natura para a resolução de conflitos legislativos. Segundo previsão expressa do seu art. 4: (…) 7. Nenhuma disposição do presente Acordo limitará ou derrogará outros direitos e garantias mais favoráveis estabelecidos ou que possam ser estabelecidos na legislação de um Estado Parte ou em qualquer outro acordo internacional de que um Estado seja parte, nem impedirá um Estado Parte de conceder um acesso mais amplo à informação ambiental, à participação pública nos processos de tomada de decisões ambientais e à justiça em questões ambientais. 8. Na implementação do presente Acordo, cada Parte procurará adotar a interpretação mais favorável ao pleno gozo e respeito dos direitos de acesso (…).”[67]

A cláusula de progressividade, em outras palavras, veicula a necessidade de a tutela legislativa dispensada a determinado direito fundamental ser permanentemente aprimorada e fortificada, vinculando juridicamente os Poderes Públicos à consecução de tal objetivo. O princípio (garantia) constitucional da proibição de retrocesso contempla dois conteúdos normativos que se complementam:[68] se, por um lado, impõe-se ao Estado a obrigação de “não piorar” as condições normativas hoje existentes em determinado ordenamento jurídico – e o mesmo vale para a estrutura organizacional-administrativa –, por outro lado, também se faz imperativo, especialmente relevante no contexto da proteção do ambiente, uma obrigação de “melhorar”, ou seja, de aprimorar tais condições normativas – e também fáticas – no sentido de assegurar um contexto cada vez mais favorável ao desfrute de uma vida digna e saudável pelo indivíduo e pela coletividade como um todo. Traçado um panorama geral, tanto na esfera conceitual quanto normativa, iremos agora abordar o princípio da proibição de retrocesso em vista da vinculação do Estado (Estado-Legislador, Estado- Administrador e Estado-Juiz), inclusive mediante a sua aplicação a casos concretos.

Em algumas situações, o princípio da proibição de retrocesso assume a natureza de uma regra jurídica imperativa, na hipótese de risco eminente e comprovado de extinção de espécies da fauna ou da flora em razão da intervenção humana em determinado ecossistema, como ocorre inevitavelmente com o avanço da perda da cobertura vegetal original e destruição do bioma da Mata Atlântica. Não há, a nosso ver, qualquer justificativa de ordem social ou econômica que possa justificar a subversão irreversível da ordem natural ou ecológica. Esse parece ser o entendimento de Alexandra Aragão, para quem: “sinteticamente, o princípio da proibição do retrocesso destina-se a evitar degradações reversíveis, mas graves ou então degradações de menor gravidade embora irreversíveis, ou seja, existe uma proibição do retrocesso definitivo e uma proibição do retrocesso reversível. A proibição de retrocesso, sendo os efeitos reversíveis, é relativa, admitindo compressões em função de outros valores social ou ambientalmente relevantes. Sendo os efeitos irreversíveis, a proibição de retrocesso é absoluta, ou seja, não admite derrogações, salvo em caso de estado de necessidade.”[69]

A ação (ou omissão) do Estado, tanto de parte do Estado-Legislador como de autoridades administrativas, que, amparada e comprovada por estudos científicos, implicar a redução do regime jurídico de proteção ecológica e afetar diretamente sob risco concreto de extinção determinada espécie da fauna e da flora deve necessariamente ser tida por inconstitucional frente ao princípio da proibição de retrocesso ecológico, impondo-se como regra jurídica absoluta em eventual caso concreto com tal configuração, o que nos parece ocorrer no âmbito da proteção do bioma da Mata Atlântica.

De acordo com o Livro Vermelho da Fauna Brasileira Ameaçada de Extinção (2018), elaborado pelo Ministério do Meio Ambiente e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), o bioma da Mata Atlântica é aquele que apresenta o maior número de espécies da fauna ameaçadas de extinção, com 50,5% de todas as espécies ameaçadas no Brasil, sendo que 38,5% dessas espécies são endêmicas, ou seja, existem somente no referido bioma, conforme passagens do relatório que seguem:

“O Brasil possui uma das maiores riquezas de espécies do planeta, mais de 13% da biota, característica que inspirou o conceito de um país megadiverso. Com sua dimensão continental e enorme variedade de habitat terrestres e aquáticos, reúne seis importantes biomas (Amazônia, Caatinga, Cerrado, Mata Atlântica, Pampa e Pantanal) e o maior sistema fluvial do mundo. Dois desses biomas, o Cerrado e a Mata Atlântica, são hotspots – áreas com grande riqueza e endemismos, consideradas prioritárias para a conservação em nível mundial”. [70]

“A Mata Atlântica é o bioma que apresenta maior número de espécies ameaçadas, tanto em números absolutos quanto em proporcionais à riqueza dos biomas (Figura 7). Do total de espécies ameaçadas do Brasil, 50,5% se encontram na Mata Atlântica, sendo que 38,5% são endêmicos desse bioma. (Figura 8).”[71]

Os dados oficiais trazidos pelo Livro Vermelho da Fauna Brasileira Ameaçada de Extinção (2018), a nosso ver, reforçam a interpretação a ser conferida em favor do regime jurídico mais rígido de proteção estabelecido pela Lei da Mata Atlântica, como forma de salvaguardar as diversas espécies da fauna e da flora hoje ameaçadas de extinção no bioma da Mata Atlântica, sob pena de ensejar violação incontestável ao princípio da proporcionalidade, o qual, diante a irreversibilidade da extinção de espécies da biodiversidade brasileira, deve ser tomado como um imperativo ou regra absoluta em tal situação. Tal entendimento, alias, é reforçado pela previsão do inciso VII,

Art. 225 (…) § 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: (…)

VII proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.

A aplicação dos artigos 61-A e 61-B da Lei 12.651/2012 ao bioma Mata Atlântica (em detrimento da Lei da Mata Atlântica – Lei 11.428/2006) pleiteada pela Presidência da República por meio da ADI 6446/DF caminha, conforme demostrado tanto do ponto de vista normativo quanto fático, justamente na contramão do regime jurídico ecológico brasileiro, implicando flagrante violação ao princípio da proibição do retrocesso ecológico (e mesmo ao dever de progressividade e aos direitos ambientais adquiridos) e, portanto, configurando redução inconstitucional do patamar legislativo de proteção do Bioma Mata Atlântica hoje em vigor. Igualmente, a pretensão da Advocacia Geral da União na inicial da ADI 6446/DF no sentido de que o STF exclua do ordenamento jurídico interpretação que impeça a aplicação do regime ambiental de áreas consolidadas previsto no Código Florestal às áreas de preservação permanente inseridas no bioma da Mata Atlântica implica flagrante violação ao núcleo essencial do direito fundamental ao meio ambiente consagrado no art. 225 da CF/1988, inclusive no tocante ao direito-garantia ao mínimo existencial ecológico.

A Mata Atlântica é um dos 25 hotspots de biodiversidade do mundo, sendo o bioma mais degradado do país, em razão da ocupação e desmatamento em mais de 85% de sua área original e que, como referido anteriormente, possui o maior número de espécies da fauna ameaçadas de extinção (mais de 50% do total das espécies do total da fauna brasileira ameaçada). A aplicação dos artigos 61-A e 61-B da Lei 12.651/2012 ao bioma, que implicaria a regularização de ocupações e desmatamentos ilegais da ordem de 330 mil hectares, representa uma redução significativa do patamar de proteção deste bioma, conforme destaca a Nota Técnica do Observatório das Águas, emitida para subsidiar a argumentação técnica do Amici Curiae. Isso, por si só, reforça, com elementos fáticos e de ordem científica, situação que caracteriza, como referido anteriormente, afronta ao núcleo essencial do direito fundamental de todos os brasileiros a viver em um meio ambiente ecologicamente equilibrado, inclusive pela ótica da interdependência e indivisibilidade de todas as dimensões de direitos fundamentais no seu conjunto.

Ademais, é fundamental distinguir, pela ótica da aplicação do princípio da proibição de retrocesso ecológico, o julgamento do STF proferido nas ADIs 4.901/DF, 4.902/DF e 4.903/DF sobre o Novo Código Florestal e o discussão posta na ADI 6446/DF sobre a Lei da Mata Atlântica. Num primeiro momento, é importante destacar que a nossa Corte Constitucional reconheceu – como já o fez em vários outros julgados anteriores e posteriores ao caso do Novo Código Florestal – que o principio da proibição de retrocesso ecológico ou ambiental se trata de um princípio constitucional implícito no nosso sistema constitucional consagrado pela Lei Fundamental de 1988, de modo similar ao princípio da proibição de retrocesso social. Mas, como ocorre com todos os princípios da nossa ordem constitucional, não se trata de um principio absoluto e, em particular no caso do Novo Código Florestal, o entendimento prevalecente entre os Ministros foi no sentido de que não houve violação a tal principio.

Outra situação completamente nova está colocada no ADI 6446/DF, de sorte que novamente o STF deverá analisar o conflito legislativo colocado entre Lei 11.428/2006 e a Lei 12.651/2012 pelo crivo hermenêutico do princípio da proibição de retrocesso. Não se trata de rediscutir o que já foi decidido anteriormente pelo STF, posto que no julgamento das ADIs 4.901/DF, 4.902/DF e 4.903/DF não foi objeto de análise a aplicação dos dispositivos lá impugnados em face da Lei da Mata Atlântica. O fato de o STF ter afastado a incidência do princípio da proibição de retrocesso no caso específico dos dispositivos do Novo Código Florestal impugnados nas ações constitucionais referidas propostas pela PGR não faz com que tais dispositivos sejam aplicados deliberadamente a matérias com regime jurídico especial, como é o caso da Lei 11.428/2006. Pelo contrário, na medida em que, como sustentado por nós neste parecer, o status jurídico de “lei especial” inerente à Lei da Mata Atlântica, como sustentado na resposta ao Quesito 2, reforça a sua prevalência sobre qualquer legislação de caráter geral – como é o caso do Novo Código Florestal -, notadamente em relação a dispositivos que enfraqueceriam o seu regime jurídico especial de proteção, como é patente nos artigos 61-A e 61-B da Lei 12.651/2012.

Não está em jogo aqui (re)discutir a “constitucionalidade” dos artigos 61- A e 61-B, já decidida pelo STF, mas sim a aplicação ou não dos dispositivos em questão ao regime jurídico especial de proteção do bioma da Mata Atlântica. São coisas bem diferentes, como pontuado anteriormente. Não obstante a Lei 12.651/2012, lei geral de proteção das florestas e demais formas de vegetação, seja aplicável subsidiariamente à Mata Atlântica – como, por exemplo, no caso dos regimes jurídicos das áreas de preservação permanente e da reserva legal -, só devem ser compreendidos como aplicáveis os dispositivos da “lei geral” que não conflitem ou afrontem os dispositivos da “lei especial”, comprometendo o objetivo fundamental da Lei da Mata Atlântica, que reside justamente na salvaguarda dos últimos fragmentos remanescentes do bioma continental mais devastando de todos do nosso território nacional, e que a CF/1988 consagrou como “patrimônio nacional” (art. 225, § 4°), reiterando-se, no mais, os fundamentos lançados neste tópico da resposta ao Quesito 3.

2.  Os deveres de proteção ecológica do Estado (Legislador, Administrador e Juiz) e o princípio da proibição de proteção insuficiente ou deficiente (como corolário do princípio da proporcionalidade)

Outro critério importante para analisar a (in)constitucionalidade da aplicação dos artigos 61-A e 61-B da Lei 12.651/2012 ao Bioma Mata Atlântica (em detrimento da Lei da Mata Atlântica – Lei 11.428/2006) pleiteada pela Presidência da República por meio da ADI 6446/DF diz respeito ao princípio da proporcionalidade, notadamente na sua vertente da proibição de proteção insuficiente ou deficiente. Muito embora a controvérsia em torno da intensidade (maior ou menor) da vinculação dos órgãos estatais e a ausência de maior uniformidade no que diz com os efeitos jurídicos que decorrem dos deveres de proteção estatais, tem sido aceita em geral a noção de que ao Estado, também no que tange aos seus deveres de proteção ecológica, por força normativa do disposto no art. 225 da CF/1988, incumbe medidas positivas no sentido de salvaguardar o regime jurídico de tutela do direito-dever fundamental ao ambiente.

A ação estatal, tanto do Estado-Legislador quanto do Estado- Administrador, deve situar-se, no âmbito do que se convencionou designar de uma dupla face (ou dupla dimensão) do princípio da proporcionalidade, entre a proibição de excesso de intervenção, por um lado, e a proibição de insuficiência de proteção,72 por outro. Posto de outra forma, se, por um lado, o ente estatal não pode atuar de modo excessivo, intervindo na esfera de proteção de direitos fundamentais a ponto de desatender aos critérios da proporcionalidade ou mesmo a ponto de violar o núcleo essencial do direito fundamental em questão, também é certo que o Estado, por força dos deveres de proteção aos quais está vinculado, não pode omitir-se ou atuar de forma insuficiente na promoção e proteção de tal direito, sob pena de incorrer em violação à ordem jurídico- constitucional.

Conforme passagem do voto do Min. Gilmar Mendes no julgamento da ADI 3112/DF, em decisão da nossa Corte Constitucional que afastou a alegação de inconstitucionalidade formulada em face do Estatuto do Desarmamento (Lei 10.826/2003), ao diferenciar os princípios da proibição de excesso e proibição de proteção deficiente, com base na dogmática constitucional alemã: “no primeiro caso, o princípio da proporcionalidade funciona como parâmetro de aferição da constitucionalidade das intervenções nos direitos fundamentais como proibições de intervenção. No segundo, a consideração dos direitos fundamentais como imperativos de tutela (Canaris) imprime ao princípio da proporcionalidade uma estrutura diferenciada. O ato não será adequado quando não proteja o direito fundamental de maneira ótima; não será necessário na hipótese de existirem medidas alternativas que favoreçam ainda mais a realização do direito fundamental; e violara o subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito se o grau de satisfação do fim legislativo e inferior ao grau de satisfação em que não se realiza o direito fundamental à proteção”.[73]

Se considerarmos o regime constitucional ecológico consagrado pela CF/1988, a não atuação (quando lhe é imposto juridicamente agir) ou a atuação insuficiente (de modo a não proteger o direito fundamental de modo adequado e suficiente), no tocante a medidas legislativas e administrativas voltadas ao combate à degradação do meio ambiente, pode ensejar até mesmo a responsabilidade do Estado, inclusive no sentido de reparar os danos causados a indivíduos e grupos sociais afetados pelos efeitos negativos dos danos ambientais.[74] Cabe ao Estado, por força dos seus deveres de proteção para com os direitos fundamentais, assegurar uma tutela efetiva de tais direitos, especialmente no que tange – o que assume uma posição de destaque para a esfera dos direitos sociais e ambientais – à garantia do mínimo existencial ecológico, que, nesse contexto, atua como uma espécie de garantia do núcleo essencial do direito fundamental ao meio ambiente, aspecto que será retomado mais adiante. De acordo com os deveres de proteção, o Estado estará – no âmbito do que se designou da relação multipolar (Christian Calliess)[75] que se estabelece em função da proibição de excesso e da proibição de insuficiência – vinculado, simultaneamente, a respeitar (na perspectiva negativa ou defensiva) os direitos fundamentais e (na perspectiva positiva ou prestacional) atuar na proteção de tais direitos e outros bens constitucionais em relação aos quais incidem imperativos de tutela.

Vieira de Andrade aponta para a exigência do dever de proteção no plano da intervenção legislativa, o que, para além das “imposições de legislação específica” contidas nos preceitos constitucionais para proteção de direitos fundamentais, determina a formulação, em paralelo com o já tradicional princípio da proibição do excesso e inspirado nele, um princípio de proibição de déficit (Untermabverbot), nos termos do qual o Estado está obrigado a assegurar um nível mínimo adequado de proteção dos direitos fundamentais, sendo, inclusive, responsável pelas omissões legislativas que não assegurem o cumprimento dessa imposição genérica.76 Segundo Claus-Wilhelm Canaris, na aplicação da categoria da proibição de insuficiência de proteção, vinculada à função dos direitos fundamentais como imperativos de tutela ou deveres de proteção do Estado, não incidem exatamente os mesmos argumentos que são utilizados no âmbito da proibição de excesso, visto que vinculada à função defensiva dos direitos fundamentais, ou seja, naquilo que atuam como proibições de intervenção. Enquanto na esfera da proibição de intervenção está a secontrolar a legitimidade constitucional de uma intervenção no âmbito de proteção de um direito fundamental, no campo dos imperativos de tutela cuida-se de uma omissão (ou ação “insuficiente” ou “defeituosa”) por parte do Estado em assegurar a proteção de um bem fundamental ou mesmo de uma situação insuficiente para assegurar de modo minimamente eficaz essa proteção.[77]

A liberdade de conformação do legislador ordinário, ao transpor para o plano infraconstitucional os comandos constitucionais relativos aos direitos fundamentais, conforme já sinalizado anteriormente, situa-se entre a proibição de excesso e a proibição de insuficiência, exigindo que o direito infraconstitucional ofereça uma proteção eficiente no seu conjunto, o que deixa frequentemente diversas possibilidades de variação em aberto para o legislador, quanto ao modo como esse direito deve ser especificamente conformado.78 Ao traçar a relação entre o dever de proteção e a proibição de insuficiência, Canaris destaca que o primeiro tem em conta o “se” da proteção do direito fundamental, ao passo que o segundo diz respeito ao “como” o imperativo de tutela será efetivado, a ponto de resguardar as exigências mínimas em termos de sua eficiência e que são constitucionalmente exigidas, e se bens jurídicos e interesses contrapostos não estão sobreavaliados.79 Num primeiro passo, há que fundamentar a existência do dever de proteção como tal, e, num segundo momento, verificar se o direito ordinário satisfaz suficientemente esse dever de proteção, ou se, pelo contrário, apresenta insuficiências nesse aspecto.[80]

A insuficiência manifesta de proteção estatal – por exemplo, ausência ou insuficiência da legislação em dada matéria, conforme já se pronunciou o STF81 – caracteriza violação ao dever ou imperativo de tutela imputado ao Estado pela Constituição, e, consequentemente, a inconstitucionalidade da medida, tenha ela natureza omissiva ou comissiva. Isso, por certo, torna possível o controle judicial de tal déficit de agir do ente estatal, por força, inclusive, da própria vinculação do Poder Judiciário (no sentido de um poder-dever) aos deveres de proteção, de modo que se lhe impõe o dever de rechaço da legislação e dos atos administrativos inconstitucionais, ou, a depender das circunstâncias, o dever de correção de tais atos mediante uma interpretação conforme a Constituição e de acordo com as exigências dos deveres de proteção e da proporcionalidade.[82]

O Plenário do STF, nesse sentido, reconheceu recentemente a inconstitucionalidade de legislação estadual que teria conferido proteção deficitária às áreas de proteção permanente (APPs) em comparação ao regramento nacional estabelecido pelo Código Florestal (Lei 12.651/2012), extrapolando o ente federativo estadual, ao assim agir, os limites da sua competência suplementar decorrente da competência concorrente estabelecida no art. 24, caput, VI, § 2º, da CF/1988. O STF, na referida decisão, reconheceu expressamente a violação à proporcionalidade (e à razoabilidade) na atuação do legislador estadual ao expor bens jurídicos de máxima importância (no caso, a proteção ecológica), violando, em outras palavras, o princípio da proibição de proteção insuficiente ou deficiente. [83]

O mesmo tipo de violação, a nosso ver, ocorreria por meio da aplicação dos artigos 61-A e 61-B do Novo Código Florestal ao regime jurídico estabelecido pela Lei da Mata Atlântica, ne medida em que tal entendimento ensejaria um marco normativo insuficiente ou deficitário para assegurar a proteção do bioma continental brasileiro mais degradado de todos, como já referido em passagem anterior.

Ainda sobre o entendimento da nossa Corte Constitucional acerca do dever estatal de proteção ecológica, do princípio da proporcionalidade e da vedação de proteção insuficiente ou deficiente, registra-se passagem do voto do Ministro Celso de Mello no julgamento da ADI 4.901/DF, que versava sobre a constitucionalidade do Novo Código Florestal de 2012:

“Com efeito, emerge do próprio art. 225 de nossa Lei Fundamental o dever constitucional de proteção ao meio ambiente, que incide não apenas sobre a própria coletividade, mas, notadamente, sobre o Poder Público, a quem se impõe o gravíssimo encargo de impedir, de um lado, a degradação ambiental e, de outro, de não transgredir o postuladoque veda a proteção deficiente ou insuficiente, so.b pena de intervenção do Poder Judiciário, para fazer prevalecer o mandamento constitucional que assegura a incolumidade do meio ambiente e para neutralizar todas as ações ou omissões governamentais de que possa resultar a fragilização desse bem de uso comum do povo. Essencial, portanto, que o Estado, seja no exercício de suas funções legislativas, seja na realização de suas atividades administrativas, respeite o princípio da proporcionalidade, em cuja estrutura normativa compreende-se, além da proibição do excesso, o postulado que veda, em sua outra dimensão, a insuficiência da proteção estatal”.[84]

A vinculação do Poder Judiciário aos direitos fundamentais,85 e, portanto, aos deveres de proteção, guarda importância singular não só para a análise da categoria da proibição de proteção insuficiente, mas também para garantia da proibição de retrocesso, que constitui um dos eixos da resposta ao Quesito 3, posto que, também no que diz respeito a atos do poder público que tenham por escopo a supressão ou redução dos níveis de proteção ecológica (cujo controle igualmente implica consideração dos critérios da proporcionalidade na sua dupla perspectiva), caberá aos órgãos jurisdicionais a tarefa de identificar a ocorrência de prática inconstitucional e, quando for o caso, afastá-la ou corrigi-la, como o fez o STF na decisão referida anteriormente no âmbito da ADI 4.988/TO.

O que se deve enfatizar, é que o mesmo ocorreria em eventual entendimento que privilegiasse a aplicação dos artigos 61-A e 61-B da Lei 12.651/2012 ao Bioma Mata Atlântica, em detrimento da Lei da Mata Atlântica (Lei 11.428/2006), tal como pleiteada pela Presidência da República por meio da ADI 6446/DF, na medida em que caracterizaria situação inconstitucional de flagrante proteção insuficiente ou deficiente do bioma continental brasileiro mais degradado de todos, possuindo hoje, tão somente, 12,4% da sua cobertura vegetal original, bem como ser o bioma brasileiro que comporta o maior numero de espécies da fauna e da flora ameaçadas de extinção (mais de 50% do total de espécies), como destacado em passagem anterior.

3.   A função ecológica da propriedade (e da posse) e a sua dimensão econômica caracterizada pelos serviços ecológicos prestados pela Natureza (e, em particular, pelas áreas de preservação permanente – APP)

A alegação formulada pela Advocacia-Geral da União (AGU) na inicial da ADI 6446/DF no sentido de que o objetivo da ação seria afastar interpretações que esvaziam o conteúdo do direito de propriedade não encontra correspondência na ordem constitucional e infraconstitucional brasileira, notadamente em razão das funções social e ecológica que são inerentes ao regime jurídico da propriedade. Aliás, o conteúdo econômico da propriedade está relacionado não apenas ao seu uso clássico, normalmente relacionado à utilização desregrada (uso, gozo e fruição) e mesmo esgotamento dos recursos naturais, mas hoje, com base numa economia verde e no marco jurídico contemporâneo, o conteúdo econômico da propriedade deve necessariamente estar atrelado aos benefícios econômicos obtidos pelos serviços ecológicos86 prestados pela Natureza (em outras palavras, a manutenção da integridade ecológica) existente na propriedade, como habitualmente ocorre na propriedade rural.

Os benefícios econômicos para as atividades agrícolas e pecuárias dos serviços ecológicos são inúmeros, como ocorre por meio da conservação da biodiversidade, da conservação das águas e dos serviços hídricos, da regulação do clima, da conservação e melhoramento do solo, entre outros. Aliás, tais serviços são elementares para o desenvolvimento de tais práticas econômicas, não obstante, muitas vezes, não tenham a sua dimensão econômica devidamente reconhecida e valorada. O instituto jurídico do pagamento pelos serviços ecológicos foi consagrado expressamente no art. 41, II, do Novo Código Florestal, revelando essa faceta econômica da função ecológica da propriedade.

Art. 41. É o Poder Executivo federal autorizado a instituir, sem prejuízo do cumprimento da legislação ambiental, programa de apoio e incentivo à conservação do meio ambiente, bem como para adoção de tecnologias e boas práticas que conciliem a produtividade agropecuária e florestal, com redução dos impactos ambientais, como forma de promoção do desenvolvimento ecologicamente sustentável, observados sempre os critérios de progressividade, abrangendo as seguintes categorias e linhas de ação: (Redação dada pela Lei nº 12.727, de 2012).

I – pagamento ou incentivo a serviços ambientais como retribuição, monetária ou não, às atividades de conservação e melhoria dos ecossistemas e que gerem serviços ambientais, tais como, isolada ou cumulativamente:

a) o sequestro, a conservação, a manutenção e o aumento do estoque e a diminuição do fluxo de carbono;

b) a conservação da beleza cênica natural;

c) a conservação da biodiversidade;

d) a conservação das águas e dos serviços hídricos;

e) a regulação do clima;

f) a valorização cultural e do conhecimento tradicional ecossistêmico;

g) a conservação e o melhoramento do solo;

h) a manutenção de Áreas de Preservação Permanente, de Reserva Legal e de uso restrito;

A Nota Técnica do Observatório das Águas (anexo aos autos) sobre “Os Serviços Ambientais da Mata Atlântica: Segurança Hídrica, Regulação do Clima e Diversidade Biológica”, a respeito dos serviços ambientais prestados pelo bioma da Mata Atlântica, inclusive reforçando a importância crucial da restauração de áreas degradadas do bioma e o cumprimento (por parte do Estado brasileiro) da normativa internacional sobre proteção das florestas e mudanças climáticas, a contrário senso do regime jurídico permissivo dos artigos 61-A e 61- B do Novo Código Florestal, conforme se pode observar da passagem extraída do documento que segue:

Reflorestar as bacias hidrográficas da Mata Atlântica é estratégico para promover segurança hídrica e o desenvolvimento. O Brasil assumiu compromissos com metas bem definidas no Acordo de Paris, sob a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças do Clima (United Nation’s Climate Change Convention Paris 2015). Entre essas metas, estão a restauração e o reflorestamento de 12 milhões de hectares de florestas nativas até 2030.

O país também é signatário do Plano Estratégico das Nações Unidas para as Florestas (United Nations Strategic Plan for Forests 20172030), que tem como objetivo aumentar a área coberta por florestas em 3% no mundo inteiro até 2030, além das Metas de Aichi, que visam uma redução de 50% na taxa de perdas de habitats naturais, incluindo as florestas, neste ano de 2020 (CDB, 2016).

Esses acordos internacionais reforçam normas do arcabouço legal brasileiro, especialmente a Lei da Mata Atlântica e da Política Nacional de Meio Ambiente que contemplam instrumentos voltados para a conservação, a proteção, os usos sustentáveis e a recuperação de áreas degradadas. O Plano Nacional de Recuperação da Vegetação Nativa – PLANAVEG (BRASIL, 2017) previa o reflorestamento de vastas áreas do território nacional com objetivos múltiplos, que incluem a conservação dos recursos hídricos e solos, a adaptação e mitigação das mudanças climáticas, além da conservação e da recuperação da biodiversidade e dos serviços ecossistêmicos.

Os compromissos de reflorestamento do Brasil encontram respaldo em políticas públicas e inúmeras iniciativas como o PACTO MATA ATLÂNTICA (2009), que articula instituições públicas e privadas, a área de negócios, a comunidade científica e os proprietários de terras em torno do objetivo comum de restaurar 15 milhões de hectares de florestas nativas até 2050.

Restaurar a Mata Atlântica, em suas bacias hidrográficas, contribuirá para promover a segurança hídrica e os serviços ecossistêmicos que dependem da água, sendo, portanto, essenciais à segurança alimentar, à saúde pública à proteção ambiental e ao saneamento. Além disso, o reflorestamento afeta positivamente muitos outros serviços ecossistêmicos como a biodiversidade, e também o clima (desde a microescala até a escala global), a qualidade do ar e os serviços culturais. (p. 17).

Descabida, portanto, a alegação de “esvaziamento” do conteúdo econômico decorrente de limitações legais ao uso da propriedade, como articulado pela AGU. O princípio da função ambiental ou ecológica da posse e da propriedade, nesse contexto, configura-se como um princípio geral do Direito Ambiental. Assim como outrora a função social foi consagrada para limitar e redefinir o conteúdo do direito de propriedade, hoje também os valores e direitos ecológicos passam a conformar o seu conteúdo, com uma nova carga de deveres e obrigações correlatas ao seu exercício, conforme destacado de forma exemplar em passagem do voto-relator do Ministro Luiz Fux no julgamento da ADI 4.903/DF (Caso do Novo Código Florestal):

“(…) o meio ambiente assume função dúplice no microssistema jurídico, na medida em que se consubstancia simultaneamente em direito e em dever dos cidadãos, os quais paralelamente se posicionam, também de forma simultânea, como credores e como devedores da obrigação de proteção respectiva.”[87]

A tutela ecológica, conforme lição clássica de Stefano Rodotá, aparece como um dos marcos mais importantes na caracterização dos interesses coletivos e difusos que sedimentam um conteúdo “não dominial” no seio do direito de propriedade.88 A propriedade revela-se como um direito-dever fundamental (art. 5.º, XXIII, da CF/1988), visto que, associados ou conexos ao direito de propriedade conjugam-se diversos deveres que incidem sobre a conduta do seu titular, limitando o seu exercício em termos sociais e ecológicos (como, por exemplo, dever de exploração racional da terra, dever de manutenção do equilíbrio ecológico, dever de recuperação de área degradada, dever de não exploração dos trabalhadores etc.).

No que tange à propriedade rural (mas tais diretrizes normativas também se aplicam em certo sentido à propriedade urbana89), conforme dispõe o texto constitucional, a sua função social é cumprida quando atendidos aos seguintes requisitos, conforme disposição expressa do art. 186 da CF/1988: I – aproveitamento racional e adequado; II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho; e IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores. O dever constitucional de recuperação de área degradada, em frontal desacordo com o regime jurídico permissivo dos artigos 61-A e 61-B do Novo Código Florestal, pode ser extraído de forma direta do comando normativo do art. 186, II, da CF/1988, amparando, assim, a resolução do conflito legislativo em questão em favor da prevalência da previsão legislativa mais protetiva da Lei da Mata Atlântica.

A consagração emergente do princípio (e valor constitucional) da solidariedade, como refere Miguel Reale90, ao comentar o “espírito” do Código Civil de 2002, alimenta a ideia de vinculação social do indivíduo-cidadão e, de certa forma, representa um resgate dos “deveres” (em face dos direitos subjetivos) diante do débito do pensamento jurídico liberal-clássico para com os mesmos.

A gradativa desconstrução da hipertrofia do patrimônio, que marcou a sua trajetória histórica desde a Revolução Francesa (1789) e o Código Civil Napoleônico (1804), mediante o fortalecimento de valores de natureza existencial, acabou por permitir que a proteção do ambiente viesse a ocupar espaço de forma definitiva no seio do “constitucionalizado” Direito Civil contemporâneo. Esta assim chamada “constitucionalização” do direito de propriedade, mediante a integração de outros valores e princípios fundamentais, juntamente com a consagração constitucional da sua função ecológica ou socioambiental (art. 186, II, da CF/1988), reforçou a noção de que existem deveres fundamentais de proteção ecológica os quais são impostos aos proprietários (e possuidores).

O Código Civil de 2002 reconhece expressamente a função ambiental ou ecológica da propriedade no seu art. 1.228, § 1º91, ao assinalar que “o direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas” . O Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001), no seu art. 1º, parágrafo único,[92] assinala expressamente que o diploma “estabelece normas de ordem econômica e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental”, revelando, assim, conteúdo similar ao dispositivo citado anteriormente do Código Civil de 2012 e transportando para o plano infraconstitucional a configuração deveres ecológicos do proprietário no exercício da sua titularidade.

De modo complementar, a Lei da Mata Atlântica (Lei 11.428/2006), consagrou, de forma expressa, no seu art. 6º, parágrafo único, o princípio da função socioambiental da propriedade. Mais recentemente, o Novo Código Florestal de 2012 (Lei 12.651/12), reforçando a funcionalidade da propriedade e posse florestal e os deveres atribuídos ao seu titular, de modo similar à previsão anterior do Código Florestal de 1965, estabeleceu no seu art. 2º, § 2º, que “as obrigações previstas nesta Lei têm natureza real e são transmitidas ao sucessor, de qualquer natureza, no caso de transferência de domínio ou posse do imóvel rural”. O mesmo conteúdo aparece reproduzido no art. 7º, § 1º e § 2º, do diploma florestal, designadamente em relação às áreas de preservação permanente (APPs). Com isso, verifica-se que a legislação acabou incorporando orientação jurisprudencial já consolidada na jurisprudência do STJ, no sentido de que o proprietário ou possuidor de imóvel sobre o qual, por exemplo, incida o regime da área de preservação permanente ou mesmo da reserva legal, estará obrigado (obrigação real ou propter rem) a repará-la mesmo que a degradação tenha tido origem em momento anterior e o seu antecessor tenha sido o responsável.[93]

Ainda no plano legislativo, é de se registrar que de acordo com o art. 3º, II, tem-se por área de preservação permanente (APP) a “área protegida, coberta ou não por vegetação nativa, com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica e a biodiversidade, facilitar o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas”. No tocante à reserva legal, conforme dispõe o art. 3º, III, do novo diploma florestal, a mesma seria a “área localizada no interior de uma propriedade ou posse rural, delimitada nos termos do art. 12, com a função de assegurar o uso econômico de modo sustentável dos recursos naturais do imóvel rural, auxiliar a conservação e a reabilitação dos processos ecológicos e promover a conservação da biodiversidade, bem como o abrigo e a proteção de fauna silvestre e da flora nativa”. Ambos os institutos (área de preservação permanente e reserva legal) concretizam o princípio da função ecológica da propriedade e da posse, vinculando inúmeros deveres de proteção ambiental ao exercício e fruição do direito pelo seu titular.

Os deveres fundamentais de proteção ambiental, além de conterem obrigações de cunho negativo, como, por exemplo, a abstenção de práticas degradadoras da qualidade ambiental, impõem também comportamentos positivos dos atores privados (pessoas físicas e jurídicas), impondo a adoção de condutas específicas no sentido de prevenir, precaver e reparar qualquer forma de degradação do ambiente que esteja relacionada ao exercício do direito de propriedade (e da posse), cabendo, inclusive, o controle externo (extrajudicial e judicial) pela coletividade e pelo Estado a respeito do cumprimento das finalidades socioambientais por parte do proprietário (ou possuidor).[94]

Nessa perspectiva, Bruno Miragem acentua que os deveres extraídos do novo regime “constitucionalizado” do direito de propriedade tomam a forma tanto de deveres relativos à disposição dos bens móveis e imóveis de modo a não permitir lesão ao ambiente, quanto de deveres vinculados a prerrogativas de uso e gozo dos bens. Como assevera o civilista, tais deveres poderão consistir tanto na “abstenção” de uma determinada prática em que o exercício da propriedade possa gerar alguma espécie de degradação ou dano ao ambiente, quanto na forma de um “comportamento positivo”, através do qual seja exigida do proprietário a realização de um “dever positivo”, ou seja, um típico “dever de prestação”.[95] Trabalhando com o conceito genérico de função ambiental, Antonio Herman Benjamin aponta para a existência de uma “trindade de deveres” inerente ao conceito de função, o que encontra expressão na imposição de condutas positivas (e não mais apenas negativas) ou múnus que vai além do mero “não poluir”, mas também toma forma de missão constitucional no dever de defender, no dever de reparar e no dever de preservar, sendo que este último estabelece para o cidadão tanto uma proibição (não poluir) quanto uma obrigação positiva (impedir também terceiros de poluírem).[96] De igual modo, como assevera o autor, não há que falar em um direito adquirido de poluir,[97] mas sim, onde a poluição se fizer presente, há o dever do proprietário ou possuidor da área degrada de tomar as medidas – negativas ou positivas – necessárias ao restabelecimento do equilíbrio ecológico no local.

A função ambiental da propriedade e os correspondentes deveres fundamentais atribuídos ao seu titular tem encontrado – como já adiantado – encontram guarida na jurisprudência do STJ, que consolidou entendimento no sentido ser incabível o pagamento de indenização ao proprietário de imóvel que tem o seu exercício limitado em razão do enquadramento da sua área em algum regime de proteção ambiental (notadamente, no caso de área de preservação permanente e reserva legal). Em outras palavras, o STJ compreende que as limitações sofridas pelo titular do direito de propriedade (e possuidor) em relação a não utilização econômica e manutenção da reserva legal e da área de preservação permanente estão amparadas pela obrigação que o mesmo tem de manter o equilíbrio ecológico da área sobre seu domínio, de modo que não lhe cabe reivindicar qualquer indenização decorrente da limitação sofrida no exercício do seu direito.

“PROCESSUAL CIVIL. DESAPROPRIAÇÃO. INDENIZAÇÃO. COBERTURA FLORÍSTICA. RESERVA LEGAL OU PRESERVAÇÃO PERMANENTE. OBSCURIDADE QUANTO À CLASSIFICAÇÃO DA

ÁREA INDENIZADA. (…) 4. É firme a jurisprudência do STJ sobre a inindenizabilidade, como regra, das Áreas de Preservação Permanente, já que não passíveis de exploração econômica direta. Por sua vez, a Reserva Legal, onde se encontra vedado o corte raso da vegetação nativa, não pode ser indenizada como se fosse terra de livre exploração econômica. Cabe, nesse caso, ao proprietário provar o uso lícito. (…) (STJ, REsp 146.356/SP, 2.ª T., Rel. Min. Herman Benjamin, j. 28.08.2009)”.

“DESAPROPRIAÇÃO DIRETA. IMÓVEL SITUADO NA ESTAÇÃO ECOLÓGICA JUREIA-ITATINS. INDENIZAÇÃO PELA COBERTURA FLORÍSTICA. IMPOSSIBILIDADE. ÁREA DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE. IMPOSSIBILIDADE DE EXPLORAÇÃO ECONÔMICA ANTERIOR AO DECRETO EXPROPRIATÓRIO. (…).

1.A indenização pela cobertura vegetal de imóvel desapropriadorevela- se indevida quando, anteriormente à mencionada desapropriação, sua exploração econômica já se encontrava impossibilitada, salvo comprovação pelo proprietário, mediante o ajuizamento de ação própria, no sentido de que o mencionado decreto acarretou limitação administrativa mais extensa do que aquelas já existentes à época da sua edição. 2. A criação da ‘Estação Ecológica Jureia-Itatins’, por intermédio de decreto estadual, segundo orientação firmada por esta e. Corte, não acrescentou qualquer limitação àquelas preexistentes, engendradas em outros atos normativos (Código Florestal, Lei do Parcelamento do Solo Urbano), que já vedavam a utilização indiscriminada da propriedade. Precedentes jurisprudenciais do STJ: (REsp 784.106/SP, Rel. Min. Francisco Falcão, DJ 03.2007; REsp 503.418/SP, Rel. p/ Acórdão Min. João Otávio de Noronha, DJ 07.03.2007; REsp 595.748/SP, Rel. Min. Denise Arruda, DJ 17.08.2006) 3. Restou assentado no v. aresto hostilizado que: Mesmo antes da implantação da Estação Ecológica de Jureia-Itatins, os expropriados, por força do Código Florestal, já não podiam usufruir em sua integralidade da área objeto da ação, posto que considerada de preservação permanente. De fato, as florestas e demais formas de vegetação natural, localizadas ao longo dos cursos e reservatórios de água, nas elevações, nas encostas, nas restingas, nas bordas de tabuleiros ou chapadas, nas altitudes acima de 1.800 metros, encontram-se protegidas e não podem ser utilizadas, porque submetidas a regime de preservação, conforme art. 2.º, do Código Florestal (Lei 4.771/65). (…). (STJ, AgRg no REsp 873.179/SP, 1.ª T., rel. Min. Luiz Lux, j. 21.05.2009).

“ADMINISTRATIVO. AMBIENTAL. RECURSO ESPECIAL. SUPRESSÃO DE VEGETAÇÃO. NECESSIDADE DE AUTORIZAÇÃO. PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE AMBIENTAL. INEXISTÊNCIA DE DIREITO ADQUIRIDO À MENOR PATAMAR PROTETIVO. FATO CONSUMADO. INVIÁVEL EM MATÉRIA AMBIENTAL. 1. Na origem,

trata-se de ação declaratória ajuizada pelo recorrido contra a Fazenda Pública do Estado de São Paulo, na qual, o requerente sustentou que, sendo legítimo proprietário dos imóveis descritos na inicial, diligenciou perante o órgão competente visando autorização para a supressão da vegetação da área, recebendo orientação de que tais procedimentos estão submetidos à Resolução SMA-14, de 13 de março de 2008, que estabeleceu fatores condicionantes para tal fim. Diante da situação, na exordial, arguiu a inaplicabilidade das normas suscitadas, tendo em vista a superveniência da legislação ambiental ante a aquisição da propriedade e a aplicabilidade mitigada do Código Florestal às áreas urbanas. 2. Inicialmente, é importante elucidar que o princípio da solidariedade intergeracional estabelece responsabilidades morais e jurídicas para as gerações humanas presentes em vista da ideia de justiça intergeracional, ou seja, justiça e equidade entre gerações humanas distintas. Dessa forma, a propriedade privada deve observar sua função ambiental em exegese teleológica da função social da propriedade, respeitando os valores ambientais e  direitos  ecológicos. 3. Noutro ponto, destaco a firme orientação jurisprudencial desta Corte de que “a proteção ao meio ambiente não difere área urbana de rural, porquanto ambas merecem a atenção em favor da garantia da qualidade de vida proporcionada pelo texto constitucional, pelo Código Florestal e pelas demais normas legais sobre o tema” (REsp 1.667.087/RS, de minha relatoria, Segunda Turma, julgado em 7/8/2018, DJe 13/8/2018). 4. Na espécie, não há um fato ocorrido antes da vigência do novo Código Florestal, a pretensão de realizar supressão da vegetação e, consequentemente, a referida supressão vieram a se materializar na égide do novo Código Florestal. Independentemente da área ter sido objeto de loteamento em 1979 e incluída no perímetro urbano em 1978, a mera declaração de propriedade não perfaz direito adquirido a menor patamar protetivo. Com efeito, o fato da aquisição e registro da propriedade ser anterior à vigência da norma ambiental não permite o exercício das faculdades da propriedade (usar, gozar, dispor, reaver) em descompasso com a legislação vigente. 5. Não há que falar em um direito adquirido a menor patamar protetivo, mas sim no dever do proprietário ou possuidor de área degrada de tomar as medidas negativas ou positivas necessárias ao restabelecimento do equilíbrio ecológico local. 6. Recurso especial provido”. (STJ, REsp 1.775.867/SP, 2ª T., Rel. Min. Og Fernandes, j. 16.05.2019)

No campo fático, o argumento da AGU relativo ao esvaziamento do conteúdo do direito de propriedade não se mostra correto de acordo com os dados levantados pela Nota Técnica sobre os reflexos do Despacho MMA nº 4.410/2020 nas atividades agrícolas e na restauração de áreas de preservação permanente na Mata Atlântica, elaborada pelo Biólogo João de Deus Medeiros, Doutor em Botânica e Professor do Centro de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Santa Catarina, especialmente diante da constatação de que “99,8% dessa área correspondendo a APP hídrica”, demonstrando, assim, a essencialidade dos serviços ecológicos prestados por tais APPs para as atividades econômicas agrícolas e pecuárias, como já referido anteriormente, notadamente num contexto de sustentabilidade de tais práticas.

“VII – Conclusões

– Considerando o período entre 1990-2008, a totalidade de APP convertida para usos agrícolas na Mata Atlântica perfaz uma área de 329,7 mil hectares; 99,8% dessa área correspondendo a APP hídrica.

– A totalidade de APP ocupada no período representa 0,1% da área hoje ocupada por atividades agrícolas na Mata Atlântica.

– O déficit total de vegetação nativa em APP no território da Mata Atlântica, segundo dados do IMAFLORA, é de 4.129.832,72 hectares;

– 81% deste déficit total de vegetação nativa em APP no território da Mata Atlântica está em médias e grandes propriedades rurais.

– O déficit de vegetação nativa em APP no território da Mata Atlântica no período compreendido entre 1990 e 2008 representa cerca de 8% do déficit total.

O impacto econômico decorrente da restauração destas áreas é pequeno e, considerando o valor estratégico destas áreas para a produção agropecuária, devem ser vistos como positivos.

99,9% da área hoje ocupada por atividades agrícolas na Mata Atlântica não seria afetada com a restauração das APP que sofreram supressão irregular da vegetação nativa no período 1990-2008.”

Ademais, a nota técnica em questão afasta de forma contundente o entendimento posto pela AGU na inicial da ADI, ao citar nota da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária), segundo a qual uma hipotética restrição da produção agropecuária nas áreas consolidadas no bioma atingiria diretamente mais de 200 mil agricultores, dos quais “mais de 180 mil são pequenos”. A realidade descrita na Nota técnica, por outro lado, ao assinalar que “81% deste déficit total de vegetação nativa em APP no território da Mata Atlântica está em médias e grandes propriedades rurais”, bem como que “o impacto econômico decorrente da restauração destas áreas é pequeno e, considerando o valor estratégico destas áreas para a produção agropecuária, devem ser vistos como positivos”, reforçando, assim, inclusive a importância em termos econômicos dos serviços ecológicos prestados por tais áreas a serem recuperadas.

4.     A inaplicabilidade teoria do fato consumado em matéria ambiental e a incompatibilidade entre a Súmula 613 do Superior Tribunal de Justiça e os artigos 61-A e 61-B do Novo Código Florestal

A aplicação dos artigos 61-A e 61-B do Novo Código Florestal ao bioma da Mata Atlântica, em detrimento do regime jurídico especial de proteção estabelecido pela Lei da Mata Atlântica, representa, na prática, a aplicação da teoria do fato consumado em matéria ambiental, na medida em que os dispositivos em questão estabelecem a consolidação de degradação em área de preservação permanente, o que não é admitido, tanto em termos doutrinários quanto jurisprudencial, conforme expresso na Súmula 613 do STJ:

Súmula 613 – “Não se admite a aplicação da teoria do fato consumado em tema de Direito Ambiental”. [98]

A “teoria do fato consumado” sempre foi articulada na defesa dos poluidores para justificar a manutenção de uma situação de dano ecológico já concretizada e consolidada ao longo do tempo. Na doutrina, Ana Maria Moreira Marchesan conceitua o fato consumado em matéria ambiental como o

“argumento tendente a perpetuar situações ilícitas que se consolidaram diante da morosidade ou inércia da Administração ou do Judiciário, esse último nem sempre logrando cumprir a razoável duração do processo ou ainda diante de inovação legislativa menos protetiva ao meio ambiente. (…) a aceitação do fato consumado em matéria ambiental fragiliza a autoridade do Juiz, desmoraliza o Estado de Direto e pode implicar e enriquecimento ilícito para aquele que dele se beneficia em detrimento do bem ambiental”.[99]

Admitir a tese do fato consumado no Direito Ambiental representa, como dito por Marchesan, a negação do Estado (Democrático e Ecológico) de Direito – bem como o Sistema de Justiça -, aceitando o seu fracasso e omissão no cumprimento dos deveres de proteção ecológica que lhe são impostos pela CF/1988 (art. 225). Um exemplo clássico de situação que envolve fato consumado em matéria ambiental é a edificação – por exemplo, de uma casa de veraneio – em área de preservação permanente, como é o caso de área de dunas e restinga (art. 4º, VI, da Lei 12.651/2012). A casa já foi construída e, em alguns casos, pode estar lá há décadas, inclusive com o aval omissivo da autoridade administrativa ambiental responsável pela fiscalização da área. Para alguns, haveria até mesmo a caracterização de um suposto “direto adquirido de poluir”, na medida em que se trata de uma situação consolidada no campo fático.

Ocorre que, no âmbito do Direito Ambiental, tal situação é inadmissível. Para continuar no exemplo referido, a presença da casa de veraneio na área de restinga não é somente situação consolidada pela ótica ecológica, mas sim uma situação que renova constantemente um dano ecológico, impedindo a regeneração da área. É, e outras palavras, um dano ao meio ambiente que se renova continuamente, agravando-se em perspectiva futura. A devida compreensão do caso em termos ecológicos revela o quão descabida é a alegação de um suposto direito adquirido a manter e perpetuar a situação de agressão ao meio ambiente, impedindo a recuperação da área impactada pela edificação. É imprescindível a restauração in natura da área, como forma de integralizar a sua função ecológica no contexto do ecossistema em que está inserida, assegurando o equilíbrio ecológico necessário para salvaguardar as espécies da fauna e da flora que ali habitam.

Em linhas gerais, esse foi o entendimento consolidado pelo STJ na matéria, ao editar a Súmula 613, conforme referido anteriormente.100 De acordo com decisão do STJ sobre o tema,

“é firme o entendimento desta Corte de que a ocupação de área pública, feita de maneira irregular, não gera os efeitos garantidos ao possuidor de boa-fé pelo Código Civil, configurando-se mera detenção. 6. Não prospera também a alegação de aplicação da teoria do fato consumado, em razão de os moradores já ocuparem a área, com tolerância do Estado por anos, uma vez que tratando-se de construção irregular em Área de Proteção Ambiental- APA, a situação não se consolida no tempo. Isso porque, a aceitação da teoria equivaleria a perpetuar o suposto direito de poluir, de degradar, indo de encontro ao postulado do meio ambiente equilibrado, bem de uso comum do povo essencial à qualidade sadia de vida”.[101]

Em outro julgado do STJ precursor na matéria, de lavra do Ministro Herman Benjamin, resultou assinalado de forma paradigmática que

“(…) Inexiste direito adquirido a poluir ou degradar o meio ambiente. O tempo é incapaz de curar ilegalidades ambientais de natureza permanente, pois parte dos sujeitos tutelados – as gerações futuras – carece de voz e de representantes que falem ou se omitam em seu nome. 3. Décadas de uso ilícito da propriedade rural não dão salvo-conduto ao proprietário ou posseiro para a continuidade de atos proibidos ou tornam legais práticas vedadas pelo legislador, sobretudo no âmbito de direitos indisponíveis, que a todos aproveita, inclusive às gerações futuras, como é o caso da proteção do meio ambiente. 4. As APPs e a Reserva Legal justificam-se onde há vegetação nativa remanescente, mas com maior razão onde, em consequência de desmatamento ilegal, a flora local já não existe, embora devesse existir. 5. Os deveres associados às APPs e à Reserva Legal têm natureza de obrigação propter rem, isto é, aderem ao título de domínio ou posse. Precedentes do STJ. 6. Descabe falar em culpa ou nexo causal, como fatores determinantes do dever de recuperar a vegetação nativa e averbar a Reserva Legal por parte do proprietário ou possuidor, antigo ou novo, mesmo se o imóvel já estava desmatado quando de sua aquisição. Sendo a hipótese de obrigação propter  rem,  desarrazoado  perquirir quem causou o dano ambiental in casu, se o atual proprietário ou os anteriores, ou a culpabilidade de quem o fez ou deixou de fazer. (…)”.102

A imprescritibilidade do dever de reparação do dano ecológico (dada a sua natureza difusa), conforme também assentado de forma pacífica na jurisprudência do STJ e, mais recentemente, também do STF (RE 654.833/AC)103, reforça tal entendimento, ao assentar a seguinte tese: “É imprescritível a pretensão de reparação civil de dano ambiental” (Tema 999). Para ilustrar tal a discussão, registra-se passagem do voto da Ministra Rosa Weber no julgamento da RE 654.833/AC:

“Entendo, pois, que a essencialidade, a indisponibilidade, a transindividualidade e a solidariedade que caracterizam o direito ao meio ambiente coadunam-se com a imprescritibilidade da pretensão destinada à reparação do dano. Os interesses envolvidos são coletivos, ultrapassam gerações e fronteiras – o direito ao meio ambiente está no centro da agenda e das preocupações internacionais inauguradas formalmente com a Declaração de Estocolmo – e, como tais, não merecem sofrer limites temporais à sua proteção. Assume especial relevo conferir uma leitura ilimitada à proteção ao meio ambiente a fim de possibilitar a repressão ao dano ambiental que espraia efeitos em toda a sociedade.”

A fundamentação e os exemplos jurisprudenciais citados revelam justamente a ilegalidade e mesmo inconstitucionalidade inerente à pretensão articulada na inicial da ADI 6.446/DF, na medida em que a incidência dos artigos 61-A e 61-B do Novo Código Florestal ao bioma da Mata Atlântica, em detrimento do regime jurídico especial de proteção estabelecido pela Lei da Mata Atlântica, representa justamente a aplicação da teoria do fato consumado em matéria ambiental, justamente por pretender a consolidação de degradação em área de preservação permanente, em desacordo com o disposto na Lei 11.428/2006. Os dispositivos tratam de questão que envolveu forte polêmica ao longo da tramitação do projeto de lei que resultou na Lei 12.651/2012, justamente por representar anistia aos desmatadores. Há, nos dispositivos em análise, a tentativa de estabilizar o “fato consumado” em matéria ambiental, na medida em que o legislador autoriza, de forma excepcional, que, na área de preservação permanente do imóvel rural, se perpetue a ocupação antrópica preexistente a 22 de julho de 2008 (em razão do Decreto 6.514/2008, com edificações, benfeitorias ou atividades agrossilvipastoris, estabelecendo metragens inferiores (art. 61-A) em relação àquelas fixadas no art. 4º do diploma florestal.

5.     Considerações finais: a importância da Governança Judicial Ecológica exercida pelas Cortes Constitucionais (e, em particular, do STF) diante Estado de Emergência Ambiental Planetário e do Estado de Coisas Inconstitucional e Anticonvencional em Matéria Ambiental no Brasil

O ser humano e a humanidade como um todo parecem não aceitar ou lidar muito bem com a ideia de “limites” para as suas ações. O animal mais inteligente que já habitou o globo terrestre ao longo dos mais de 4 bilhões e meio de anos de história natural do Planeta Terra confia cegamente na sua “supremacia biológica” e capacidade sem fim de evoluir e progredir, negando a existência de limites (de ordem ecológica) para a sua intervenção na Natureza e, ao mesmo tempo, fazendo pouco caso dos riscos correlatos para a sua própria existência e perpetuação como espécie natural.

A “força de magnitude geofísica global”104 das suas ações, potencializada pelo desenvolvimento tecnológico progressivo, chegou ao ponto de um novo período ou era geológica denominada de Antropoceno105 (“Era dos Homens”) ter sido inaugurada recentemente em virtude das alterações provocadas pelo ser humano no Sistema do Planeta Terra (Earth System), afetando, para além da sua capacidade  de carga  e resiliência,  diversos dos subsistemas  e  os correlatos limites ou fronteiras planetárias que asseguram de forma interdependente o seu equilíbrio e, no limite extremo, as condições indispensáveis para a manutenção e perpetuação da própria vida humana.

Os cientistas têm utilizado hoje a expressão “fronteiras ou limites planetários” (Planetary Boundaries), identificando os principais processos biofísicos do Sistema do Planeta Terra (Earth System) e que determinam a sua capacidade de auto-regulacão. São nove categorias de fronteiras planetárias identificadas, as quais, como se pode observar, estão diretamente relacionadas com a proteção das florestas, como é caso envolvendo o bioma da Mata Atlântica:

  1. Mudanças climáticas;
  2. Acidificação dos oceanos;
  3. Diminuição ou depleção da camada de ozônio estratosférico;
  4. Carga atmosférica de aerossóis;
  5. Interferência nos ciclos globais de fósforo e nitrogênio;
  6. Taxa ou índice de perda de biodiversidade;
  7. Uso global de água doce;
  8. Mudança no Sistema do Solo (Land-System Change);
  9. Poluição química. [106]

A crença utópica do ser humano no “progresso sem fim” dassociedades, no aumento progressivo dos padrões de consumo e na inesgotabilidade dos recursos naturais, não obstante a reiterada negativa científica de tal entendimento pelo menos desde o início da Década de 1970, como ilustra de forma emblemática o Relatório do Clube de Roma (1972)[107], coloca-se, muitas vezes, como um dogma, alimentado pela fé de que o desenvolvimento sem fim da técnica nos salvará e redimirá no final das contas108 do mal que causamos à Natureza e às outras formas de vida não humanas. Ocorre que, como diz o slogan ecológico nos cartazes dos estudantes do movimento Fridays for Future: “não há Planeta B”!

O princípio da proibição de retrocesso ecológico[109] (e o seu correlato dever de progressividade), por sua vez, deve ser contextualizado em tal cenário de crise ecológica e de urgência na imposição de limites à intervenção do ser humano na Natureza. Os limites normativos (e deveres do Estado e de particulares) colocados pelo Direito à ação humana – por exemplo, ao estabelecer o regime jurídico de proteção ecológica – devem dialogar necessariamente com os limites naturais ou ecológicos, reconhecendo-se, como comprovado cientificamente, que muitos dos denominados “limites ou fronteiras planetárias” já foram ultrapassados e não há mais margem para um ponto de recuo no seu patamar de proteção jurídica, como, por exemplo, no regime climático, na perda de biodiversidade, na poluição dos mares e oceanos, etc.

Como se pode apreender da leitura da CF/1988, tal paradigma científico relacionado ao princípio da integridade ecológica encontra-se consagrado expressamente por meio de expressões como “processos ecológicos essenciais“110 e “função ecológica“111, neste último caso com vedação de práticas que provoquem a extinção de espécies da biodiversidade (fauna e flora). As expressões referidas pela CF/1988 possuem equivalência em termos de significado, para o campo jurídico, com o conceito de ” limites ou fronteiras planetárias”, “juridicizando” o conceito de “subsistemas” interdependentes que devem ser necessariamente protegidos para assegurar o equilíbrio e integridade do(s) ecossistema(s) não apenas nas esferas local, regional e nacional, mas também global ou planetária (Gaia112).

A Lei Fundamental alemã, no seu art. 20a, ao dispor sobre a tutela ecológica como dever e tarefa estatal, ao determinar a proteção dos “fundamentos naturais da vida” (die natürlichen Lebensgrundlagen), consagra expressão constitucional que também carrega conteúdo conceitual e normativo semelhante às encontradas na norma constitucional brasileira para determinar a salvaguarda do equilíbrio ecológico numa perspectiva ecossistêmica. As “leis dos homens” devem necessariamente ajustar-se às imutáveis e universais “leis da Natureza”. Não há mais “margem” segura para exploração dos recursos naturais em diversas áreas ou subsistemas ecológicos. Pelo contrário, o momento é de recuo na intervenção humana na Natureza. Menos poluição e produção de resíduos, recuperação de áreas degradadas, despoluição dos rios e mares (por exemplo, em relação aos plásticos), ampliação de áreas especialmente protegidas (por exemplo, com a redução do desmatamento da Amazônia, do Pantanal-Mato-grossense, da Mata Atlântica, entre outros biomas continentais brasileiros), recuperação de populações de espécies da fauna e da flora ameaçadas de extinção, uso apenas sustentável e seguro de recursos naturais, valorização e proteção dos “serviços ecológicos”, etc.

Em linhas gerais, é tempo de maior rigor jurídico protetivo em matéria ambiental, como ilustra bem a discussão em torno do aquecimento global e do Acordo de Paris (2015), com o propósito, inclusive, de evitar e reverter a configuração de “estado de coisas inconstitucional” em material ambiental, como suscitado recentemente pelo Ministro Luis Roberto Barroso ao convocar audiência pública no âmbito da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 708/DF em trâmite perante o STF, que, entre outros temas, trata da questão do desmatamento da Floresta Amazônica e a omissão de a negligencia do Poder Executivo Federal na matéria.

Nunca antes na história da humanidade, pela perspectiva da relação “sociedade-Natureza”, os limites e a autocontenção da ação humana colocaram-se de forma tão imperativa, inclusive como uma questão existencial de sobrevivência da própria espécie humana. Como colocado expressamente no Preâmbulo do Acordo de Paris (2015), a comunidade internacional reconhece “a necessidade de uma resposta eficaz e progressiva à ameaça urgente da mudança do clima com base no melhor conhecimento científico disponível”.[113] O urgente e necessário ajuste de contas entre ser humano e Natureza imposto pela crise ecológica exige do Direito um regime jurídico ecológico fortificado progressivamente, e não fragilizado ou flexibilizado, inadmitindo-se recuos e retrocessos no horizonte futuro.

No livro Half-Earth: Our Planet’s Fight for Life[114] (em português, o título principal seria algo como “Metade da Terra”), publicado em 2015, Edward O. Wilson, biólogo, Prêmio Pulitzer e Professor da Universidade de Harvard (e quem se atribui a “paternidade” da expressão “biodiversidade”), destaca a necessária e urgente preservação por meio do estabelecimento de áreas protegidas (na linguagem do Direito Ambiental brasileiro, a criação de “Unidades de Conservação”, como estabelecido na Lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação – SNUC (Lei 9.985/2000) de pelo menos 50% da superfície do Planeta Terra, considerando tanto a sua área continental quanto marinha ou oceânica. O mapeamento em escala planetária de tais áreas deveria necessária e especialmente contemplar os denominados Hot Spots da biodiversidade, ou seja, as regiões estratégicas em razão da sua relevância para a proteção da biodiversidade planetária, como é o caso, por exemplo, da Floresta Amazônica e da Mata Atlântica, a fim de conter a sexta extinção em massa de espécies em pleno curso no Antropoceno.[115]

No início do mês de maio de 2019, foi divulgado o “Relatório de Avaliação Global sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos” (Global Assessment Report on Biodiversity and Ecosystem Services)[116], produzido e aprovado na sua 7ª sessão plenária, realizada em Paris, pela Plataforma Intergovernamental Científico-Política sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES) da ONU, instituição com papel equivalente ao desempenhado na área das mudanças climáticas pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) da ONU. Segundo o documento, constatou-se a “aceleração” das taxas de extinção de espécies, a tal ponto em que “1.000.000 (um milhão) de espécies encontram-se hoje ameaçadas de extinção no Planeta”.

Em 2015, segundo dados do World Database on Protected Area elaborado pela IUCN, apenas 15% da área continental e (ínfimos) 2,8 da área oceânica encontravam-se sob o regime especial de áreas protegidas. Quando falamos tanto de um princípio da proibição de retrocesso quanto de um princípio de progressividade em termos ecológico, ambos consagrados expressamente no art. 3º do Acordo Regional de Escazú (2018) e na jurisprudência das nossas Cortes Superiores (STJ e STF), é com base nesse cenário, tanto do ponto de vista científico quanto fático, que devemos amparar as nossas decisões políticas e jurídicas.

Isso impõe-se também por força do princípio de justiça intergeracional, ou seja, a proteção jurídica dos interesses e direitos das futuras gerações humanas, como enuncia expressamente o caput do art. 225 da CF/1988, inclusive como forma de prevenir e evitar a ocorrência de um dano ecológico geracional. A discussão em torno da “justiça entre gerações” tem sido colocada no contexto político contemporâneo de forma emblemática, por meio de amplos e progressivos protestos de jovens mundo afora sobre a questão climática, como bem simbolizam a estudante sueca Greta Thunberg117, à frente do movimento estudantil Fridays for Future. É o direito ao futuro[118] que está em jogo, podendo-se até mesmo falar de uma certa sub-representação político-democrática dos interesses e direitos das gerações mais jovens (crianças e adolescentes) no Estado Constitucional contemporâneo, assim como das futuras gerações que ainda estão por nascer, o que, inclusive, reforça e evidencia a importância do papel contramajoritário das Cortes Constitucionais, como desenvolvido em artigo doutrinário pelo Ministro Luis Roberto Barroso.[119]

Isso sem falar da atual tendência hoje – conforme reconhecido expressamente pela Corte IDH na Opinião Consultiva 23/2017 – de se atribuir personalidade jurídica e direitos próprios aos animais e à Natureza, conforme passagem que segue:

“Esta Corte considera importante resaltar que el derecho al medio ambiente sano como derecho autónomo, a diferencia de otros derechos, protege los componentes del medio ambiente, tales como bosques, ríos, mares y otros, como intereses jurídicos en sí mismos, aún en ausencia de certeza o evidencia sobre el riesgo a las personas individuales. Se trata de proteger la Naturaleza y el medio ambiente no solamente por su conexidad con una utilidad para el ser humano o por los efectos que su degradación podría causar en otros derechos de las personas, como la salud, la vida o la integridad personal, sino por su importancia para los demás organismos vivos con quienes se comparte el planeta, también merecedores de protección en sí mismos. En este sentido, la Corte advierte una tendencia a reconocer personería jurídica y, por ende, derechos a la Naturaleza no solo en sentencias judiciales sino incluso en ordenamientos constitucionales”. [120]

O referido entendimento foi inclusive consignado expressamente na decisão recente do Ministro Luis Roberto Barroso que convocou audiência pública perante o STF não âmbito da ADPF 708/DF para discutir e estabelecer relato oficial acerta de um suposto “estado de coisas inconstitucional em material ambiental” decorrente da omissão e atuação insuficiente do Governo Federal, entre outras politicas públicas ambientais sensíveis, no enfrentamento do desmatamento da Amazônia. De acordo com o Ministro Barroso,

“(…) no âmbito do Direito Internacional dos direitos humanos tem-se caminhado para reconhecer a interdependência entre o direito humano ao meio ambiente saudável e uma multiplicidade de outros direitos humanos, bem como para afirmá-lo como um direito autônomo titulado pela própria Natureza (e não apenas pelos seres humanos). Há, nesse sentido, duas importantes decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Na Opinião Consultiva no 23/2017, estabeleceu que o direito a um meio ambiente saudável é “um interesse universale “um direito fundamental para a existência da humanidade. E no caso Comunidades Indígenas Miembros de La Associación Lhaka Honhat (Nuestra Tierra) vs. Argentina, primeiro caso contencioso sobre a matéria, afirmou que os Estados têm o dever de “respeito”, “garantia” e “prevenção” de danos ao meio ambiente, bem como que lhes compete assegurar os direitos de todos à segurança alimentar e ao acesso à água”.

Se não formos capazes de impor limites a nós mesmos, os limites nos serão impostos pela própria Natureza, como, aliás, ilustra bem o título de um dos últimos livros de Bruno Latour, podendo ser traduzido como “Encarando Gaia” ou “Face à Gaia” (Facing Gaia). O Planeta Terra, como dito pelo autor, está reagindo às nossas ações predatórias121 e, caso não recuarmos com as nossas ações predatórias, encararemos inevitavelmente fúria reativa de Gaia contra o Homo sapiens. A pandemia do COVID-19 está aí para nos mostrar e ensinar isso, da forma mais trágica e dolorosa possível. É tudo isso que está em jogo no julgamento da ADI 6.446/DF, de sorte que é mais do que nunca urgente – dado o cenário de emergência ambiental nacional e planetária , como aliás reconhecido recentemente pela Corte Suprema de Justiça da Argentina, por meio da criação de um Comitê de Emergência Ambiental[122] – o efetivo exercício do papel de “guardião” e “salvaguarda” que a nossa Corte Constitucional deve levar a efeito por meio de uma governança judicial ecológica, estabelecendo, no âmbito da sua jurisprudência, entre outras medidas, uma interpretação protetiva da norma ambiental alinhada com o regime constitucional estabelecido no art. 225 da CF/1988.

CONCLUSÃO – RESPOSTAS AO QUESITO 3

1) A aplicação dos artigos 61-A e 61-B da Lei 12.651/2012 ao Bioma Mata Atlântica (em detrimento da Lei da Mata Atlântica – Lei 11.428/2006) pleiteada pela Presidência da República por meio da ADI 6446/DF, implica violação flagrante ao princípio da proibição do retrocesso ecológico (e ao dever de progressividade e direitos ambientais adquiridos) e, portanto, configura redução inconstitucional do patamar legislativo de proteção do Bioma Mata Atlântica hoje em vigor.

2) O entendimento que privilegie a interpretação e aplicação dos artigos 61- A e 61-B da Lei 12.651/2012 ao regime jurídico do bioma da Mata Atlântica, em detrimento da Lei da Mata Atlântica (Lei 11.428/2006), tal como pleiteada pela Presidência da República por meio da ADI 6446/DF caracterizaria situação inconstitucional de flagrante proteção insuficiente ou deficiente do bioma continental brasileiro mais degradado de todos, o qual possui hoje, tão somente, 12,4% da sua cobertura vegetal original, bem como aquele que, conforme dados oficiais, possui hoje o maior número de espécies da fauna e da flora ameaçadas de extinção, representando mais de 50% do total de espécies ameaças de extinção no Brasil.

3) A alegação formulada pela Advocacia-Geral da União (AGU) na inicial da ADI 6446/DF no sentido de que o objetivo da ação seria afastar interpretações que esvaziam o conteúdo do direito de propriedade não encontra correspondência na ordem constitucional e infraconstitucional brasileira, notadamente em razão das funções social e ecológica que são inerentes ao regime jurídico da propriedade. Como “faceta econômica” da função ecológica da propriedade, o seu conteúdo está relacionado não apenas à sua função clássica, normalmente relacionado à utilização desregrada (uso, gozo e fruição) e mesmo esgotamento dos recursos naturais, mas hoje, com base numa economia verde e no marco jurídico civil-constitucional contemporâneo, o conteúdo da propriedade deve necessariamente estar atrelado aos benefícios econômicos obtidos pelos serviços ecológicos prestados pela Natureza (conservação da biodiversidade, da conservação das águas e dos serviços hídricos, da regulação do clima, da conservação e melhoramento do solo, entre outros), como consagrado expressamente no art. 41, II, do Novo Código Florestal.

4) A pretensão articulada na inicial da ADI 6.446/DF, na medida em que postula a incidência dos artigos 61-A e 61-B do Novo Código Florestal ao bioma da Mata Atlântica, em detrimento do regime jurídico especial de proteção estabelecido pela Lei da Mata Atlântica, representa igualmente a aplicação da teoria do fato consumado em matéria ambiental, justamente por pretender a consolidação de degradação em área de preservação permanente, em desacordo com o disposto na Lei 11.428/2006 e a Súmula 613 do Superior Tribunal de Justiça (“Não se admite a aplicação da teoria do fato consumado em tema de Direito Ambiental”).

III – SÍNTESE GERAL DOS ARGUMENTOS APRESENTADOS

Na esteira das respostas aos quesitos formulados e à guisa de conclusão geral do parecer, fica evidenciada que, em sede preliminar, impõe-se reconhecimento da prejudicialidade e o não conhecimento da ação pelo STF, na medida em que a ADI 6446/DF não possui objeto adequado à propositura da ação direta de inconstitucionalidade, na medida em que não há a caracterização de violação direta e imediata à Constituição por ato normativo primário em vigor, bem como, no plano material, a substancial inconstitucionalidade de eventual interpretação que faça prevalecer a incidência dos artigos 61-A e 61-B da Lei 12.651/2012 em detrimento do regime jurídico especial estabelecido pela Lei da Mata Atlântica (Lei 11.428/2006), estabelecida nos seus artigos 2º, parágrafo único, 5º e 17, estaria ensejando a violação aos seguintes preceitos de ordem constitucional:

  1. Princípio ou critério hermenêutico da especialidade (e da interpretação sistemática) para a resolução de conflitos legislativos entre normas infraconstitucionais;
  2. Princípio “in dubio pro natura” e da prevalência da norma “mais protetiva” para a resolução de conflitos em matéria ambiental;
  3. Princípio da dignidade da pessoa humana, inclusive por meio do reconhecimento da sua dimensão ecológica e designadamente no concernente à sua vinculação ao direito-garantia ao mínimo existencial ecológico;
  4. Núcleo essencial do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, inclusive pela ótica dos interesses e diretos das crianças e adolescentes e das futuras gerações;
  5. Princípio da proibição de retrocesso ecológico e princípio da progressividade, inclusive no tocante à sua adoção como regra ou imperativo absoluto no caso em análise em vista da irreversibilidade decorrente do risco concreto da extinção de espécies da fauna e da flora hoje ameaçadas de extinção – protegidas em sede constitucional pelo art. 225, § 1º, I, da CF/198 – existentes no bioma da Mata Atlântica;
  6. Princípio da proporcionalidade (e da razoabilidade), notadamente em vista dos imperativos de proteção e do princípio da proibição de proteção insuficiente ou deficiente;
  7. Direitos ambientais adquiridos, como limite constitucional intocável e intransponível da “incumbência” do Estado de garantir a preservação e a restauração dos processos ecológicos essenciais (art. 225, § 1º, I, da CF/1988), tomando em conta, nesse contexto, a função ecológica vital das áreas remanescentes de Mata Atlântica situados em áreas de preservação permanente (APP);
  8. Princípio da função ecológica da propriedade e da posse, tomando por premissa a sua faceta econômica decorrente dos serviços ecológicos essenciais (art. 41, II, do Novo Código Florestal) prestados pelas áreas remanescentes de Mata Atlântica situados em áreas de preservação permanente (APP);
  9. Inaplicabilidade da teoria do fato consumado em matéria ambiental (Súmula 613 do Superior Tribunal de Justiça).

Como adiantado na parte introdutória, a justificativa das inconstitucionalidades apontadas é diferenciada, embora, em vários casos, a ilegitimidade constitucional encontra respaldo em mais de um argumento. Assim, à vista do que já foi igualmente referido, é possível verificar a existência de uma relevância comum (concorrente) ou exclusiva das causas colacionadas e, por sua vez, aderentes aos diversos quesitos e respectivas respostas, de tal sorte que aqui desnecessário adentrar novamente o seu exame.

É o nosso parecer!

De Porto Alegre/Campinas para Brasília, 14 de setembro de 2020.

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1 Ressalta-se, que, posteriormente à propositura da ação, a AGU emendou a inicial para excluir o pedido de validação do Despacho nº 4.410/2020, mantendo apenas o pedido de declaração de inconstitucionalidade da interpretação e demonstrando, assim, o reconhecimento pelo próprio autor da inadequação de tal pedido em sede de ação direta de inconstitucionalidade.

2 “AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – DERROGAÇÃO DO ART. 2º DA LEI N.

9.783/2000, RESULTANTE DA SUPERVENIENTE EDIÇÃO DA LEI 9.988/200 – EXTINÇÃO ANÔMALA, NESSE PONTO, DO PROCESSO DE CONTROLE NORMATIVO ABSTRATO – QUESTAO DE ORDEM QUE SE REOLVE NO SENTIDO DA PREJUDICIALIDADE PARCIAL DA

AÇÃO DIRETA. – A superveniente revogação – total (ab-rogação) ou parcial (derrogação) – do ato estatal impugnado em sede de fiscalização normativa abstrata faz instaurar, ante a decorrente perda de objeto, situação de prejudicialidade, total ou parcial, da ação direta de inconstitucionalidade, independentemente da existência, ou não, de efeitos residuais concretos que possam ter sido gerados pela aplicação do diploma legislativo questionado. Precedentes.” (STF, QO na ADI 2.010/DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, j. 13.06.2002).

3 DEAN, Warren. A ferro e fogo: a história e a devastação da Mata Atlântica brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

4 Disponível em: https://cnae.ibge.gov.br/en/component/content/article.html?catid=0&id=1465.

5 Disponível em: https://www.sosma.org.br/conheca/mata-atlantica/.

6 “Art. 1º A conservação, a proteção, a regeneração e a utilização do Bioma Mata Atlântica, patrimônio nacional, observarão o que estabelece esta Lei, bem como a legislação ambiental vigente, em especial a Lei nº 4.771, de 15 de setembro de 1965”.

7 “Art. 35. A conservação, em imóvel rural ou urbano, da vegetação primária ou da vegetação secundária em qualquer estágio de regeneração do Bioma Mata Atlântica cumpre função social e é de interesse público, podendo, a critério do proprietário, as áreas sujeitas à restrição de que trata esta Lei ser computadas para efeito da Reserva Legal e seu excedente utilizado para fins de compensação ambiental ou instituição de Cota de Reserva Ambiental – CRA. (Redação dada pela Lei nº 12.651, de 2012). Parágrafo único. Ressalvadas as hipóteses previstas em lei, as áreas de preservação permanente não integrarão a reserva legal.”

8 SARLET, Ingo W.; FENSTRSEIFER, Tiago. Curso de direto ambiental. Rio de Janeiro: GEN/Forense, 2020, p. 141 e ss.

9 Aqui, por todos, v. ALEXY, Robert. Theorie der Grundrechte. 8.ed. Baden-Baden: Suhrkamp, 2018; e, em português, ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008.

10 Em sede doutrinária, a respeito das funções exercidas pelos princípios constitucionais, v. BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas. 5. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001; e BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais : o princípio da dignidade da pessoa humana. 2. ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Renovar, 2008.

11 Na doutrina, sobre os princípios do Direito Ambiental, v. SARLET, Ingo W.; FENSTERSEIFER, Tiago. Princípios do direito ambiental. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2017.

12 FREITAS, Juarez. A interpretação sistemática do direito. 4.ed. São Paulo: Malheiros, 2004.

13 Na doutrina, defendendo uma hermenêutica jurídica ecológica, com o reconhecimento do princípio in dubio pro ambiente, v. BELCHIOR, Germana Parente Neiva. Hermenêutica jurídica ambiental. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 265.

14 V. MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de direito internacional público. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 869.

15 Disponível em: https://repositorio.cepal.org/bitstream/handle/11362/43611/S1800493_pt.pdf.

16 Disponível em: https://repositorio.cepal.org/bitstream/handle/11362/43611/S1800493_pt.pdf.

17 STF, ADI 2030/SC, Tribunal Pleno Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 09.08.2017.

18 SARLET, Ingo W.; FENSTERSEIFER, Tiago. Direito constitucional ecológico: Constituição, direitos fundamentais e proteção da Natureza. 6.ed. São Paulo_ Revista dos Tribunais, 2019, p. 122-198.

19 STF, ADI 4.903/DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Luiz Fux, j. 28.02.2018.

20 SARLET, A eficácia dos direitos fundamentais…, p. 154.

21 SILVA, José Afonso da. “Fundamentos constitucionais da proteção do meio ambiente”. In: Revista de Direito Ambiental, n. 27, Jul-Set, 2002, p. 55.

22 “Art. 60 (…) § 4º – Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I – a forma21 SILVA, José Afonso da. “Fundamentos constitucionais da proteção do meio ambiente”. In: Revista de Direito Ambiental, n. 27, Jul-Set, 2002, p. 55. federativa de Estado; II – o voto direto, secreto, universal e periódico; III – a separação dos Poderes; IV – os direitos e garantias individuais”.

23 BENJAMIN, Constitucionalização do ambiente…, p. 79.

24 MORATO LEITE, José Rubens. Sociedade de Risco e Estado. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; e MORATO LEITE, José Rubens (Orgs.). Direito constitucional ambiental brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 198.

25 SARLET, Eficácia dos direitos fundamentais…, p. 427.

26 Na doutrina brasileira, v. MARQUES, Cláudia Lima (Coord.). Diálogo das fontes: do conflito à coordenação de normas do direito brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012.

27 RAMOS, André de Carvalho. O diálogo das cortes: O Supremo Tribunal Federal e a Corte Interamericana de Direitos Humanos. In: AMARAL JUNIOR, Alberto do; JUBILUT, Liliana Lyra (Orgs.) O STF e o direito internacional dos direitos humanos. São Paulo: Quartier Latin, 2009, v. 1, p. 805-850.

28 Na doutrina, v. TEIXEIRA, Gustavo de Faria Moreira. Greening no Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Curitiba: Juruá, 2011.

29 No sentido de fortalecer ainda mais a tutela ecológica no Sistema Regional Interamericano, inclusive por meio dos direitos ambientais procedimentais, registra-se a proposta de emenda ao Protocolo de San Salvador com o objetivo de tornar oponível a defesa do direito humano ao ambiente perante a Comissão e a Corte Interamericana de Direitos Humanos. A proposta em questão, que deve ser apresentada futuramente perante a Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), seria implementada por meio da inserção de referência expressa ao art. 11 no parágrafo 6º do art. 19, seguindo, assim, o procedimento do art. 22 do Protocolo de San Salvador.

30 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Opinião Consultiva n. 23/2017 sobre Meio Ambiente e Direitos Humanos, p. 21-22. Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_23_esp.pdf.

31  Idem, p. 22.

32  Idem, p. 25.

33 STF, ADI 4.066/DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Rosa Weber, j. 24.08.2017.

34 A expressão Stewardship, como sinônimo de gestão, governança ou administração, tem sido utilizada no âmbito cientifico – mais precisamente, por autores no âmbito das ciências naturais – para ilustrar a necessidade de uma governança em escala planetária para conter as mudanças (por exemplo, no regime climático e na perda da biodiversidade) resultantes da intervenção humana no Sistema do Planeta Terra. STEFFEN, Will et all. The Anthropocene: from Global Change to Planetary Stewardship. In: Ambio (Royal Swedish Academy of Sciences), Vol. 40, n. 7, 2011, nov., p. 739-761.

35 Na doutrina, a respeito da integridade ecológica como Grundnorm do Direito Ambiental, v. BRIDGEWATER, Peter; KIM, Rakhyun E.; BOSSELMANN, Klaus. Ecological Integrity: A Relevant Concept for International Environmental Law in the Anthropocene?. In: Yearbook of international Environmental Law, Vol. 25, No. 1 (2015), p. 61–78.

36 PEREZ LUÑO, Antonio E. Los derechos fundamentales. 8. ed. Madrid: Editorial Tecnos, 2005, p. 214

37 Também no sentido de conferir ao dispositivo do art. 225, § 1.º, natureza meramente exemplificativa, e não numerus clausus, v. BARROSO, Luis Roberto. Proteção do meio ambiente na Constituição brasileira. Revista Trimestral de Direito Público. n. 2. São Paulo, Malheiros, 1993, p. 68.

38 GROß, Thomas. Welche Klimaschutzpflichten ergeben sich aus Art. 20a GG. In: ZUR, Heft 7-8, 2009,

367 (p. 364-368). Ainda sobre o tema dos deveres estatais de proteção climática dos Estados, v. a Declaração de Oslo sobre os Princípios de Oslo sobre as Obrigações relativas às Mudanças Climáticas Globais de 2015 (Oslo Principles on Global Climate Change Obligations). Disponível em: https://law.yale.edu/system/files/area/center/schell/oslo_principles.pdf.

39 GARCIA, Maria da Glória F. P. D. O lugar do direito na proteção do ambiente. Coimbra: Almedina, 2007, p. 481.

40 Sobre a ideia de dever discricionário (e não poder discricionário!) como “eixo metodológico” do Direito Público, é lapidar a lição de Bandeira de Mello: “é o dever que comanda toda a lógica do Direito Público. Assim, o dever assinalado pela lei, a finalidade nela estampada, propõe-se, para qualquer agente público, como um imã, como uma força atrativa inexorável do ponto de vista jurídico”. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Discricionariedade e controle jurisdicional. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 15.

41 BENJAMIN, Antonio Herman. Constitucionalização do ambiente e ecologização da Constituição brasileira. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; MORATO LEITE, José Rubens (orgs.). Direito constitucional ambiental brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 75.

42 “Los Estados Partes se comprometen a adoptar providencias, tanto a nivel interno como mediante la cooperación internacional, especialmente económica y técnica, para lograr progresivamente la plena efectividad de los derechos que se derivan de las normas económicas, sociales y sobre educación, ciencia y cultura, contenidas en la Carta de la Organización de los Estados Americanos, reformada por el Protocolo de Buenos Aires, en la medida de los recursos disponibles, por vía legislativa u otros medios apropiados”. 43 Entre nós, v. PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 178. Para uma análise pormenorizada, remetemos aqui ao conjunto de contribuições contidas na coletânea coordenada por COURTIS, Christian (Comp.). Ni um paso atrás: la prohibición de regresividad en matéria de derechos sociales. Buenos Aires: Editores Del Puerto, 2006.

44 O Princípio 25 da Declaração do Rio de 1992 assinalou, no mesmo sentido, que “a paz, o desenvolvimento e a proteção ambiental são interdependentes e indivisíveis”.

45 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Opinião Consultiva n. 23/2017 sobre Meio Ambiente e Direitos Humanos, p. 25-26. Na doutrina, v. MARKUS, Till; SILVA-SÁNCHEZ, Pedro Pablo. Zum Schutz der Umwelt durch die Amerikanische Menschenrechtskonvention: Das Gutachten des IAGMR OC-23/2017. In: ZUR (Zeitschrift für Umweltrecht), Heft 3, 2019, p. 150-157.

46 Idem, p. 26. Mais recentemente, no âmbito da jurisdição contenciosa da Corte IDH, tal entendimento foi adotado no Caso Comunidades Indígenas Miembros de La Associación Lhaka Honhat (Nuestra Tierra) vs. Argentina (2020).

47 V., por todos, SARLET, Ingo W. A eficácia dos direitos fundamentais : uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 12. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015, p. 455.

48 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos fundamentais: trunfos contra a maioria. Coimbra: Coimbra, 2006, p. 196 e ss.

49 No âmbito doutrinário, adota-se também a expressão princípio da proibição de retrogradação socioambiental, difundida, entre nós, por Carlos A. Molinaro (MOLINARO, Carlos Alberto, Direito ambiental: proibição de retrocesso. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007).

50 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional ambiental português e da União Europeia. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; MORATO LEITE, José Rubens (Orgs.). Direito constitucional ambiental brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 5.

51 COMISSÃO MUNDIAL SOBRE MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO. Relatório Nosso

Futuro Comum. 2.ed. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1991, p. 43.

52 Sobre o desenvolvimento sustentável, v. BOSSELMANN, Klaus. The principle of sustainability. Reino Unido: Ashgate, 2008.

53 A cláusula (e dever) de melhoria progressiva da qualidade de vida, no tocante à proteção do ambiente, pode ser encontrada também na Lei de Bases do Ambiente Portuguesa (Lei 11/1987), ao dispor, no seu art. 40.º, 1, que “é dever dos cidadãos, em geral, e dos sectores público, privado e cooperativo, em particular, colaborar na criação de um ambiente sadio e ecologicamente equilibrado e na melhoria progressiva e acelerada da qualidade de vida ”.

54 Disponível em:https://www.undp.org/content/dam/brazil/docs/ODS/undp-br-ods-ParisAgreement.pdf.

55 SCHLACKE, Sabine. Umweltrecht. 7.ed. Baden-Baden: Nomos, 2019, pp. 285 e 303. O imperativo de progressividade ou melhoria da qualidade das águas está consagrado expressamente nos objetivos da Diretiva 2000/60/CE, ao prever, no seu art. 1: “(…) c) Tenha por objetivo reforçar a proteção e a melhoria do ambiente aquático, nomeadamente através de medidas específicas para a redução progressiva das descargas, emissões e perdas de substâncias prioritárias e da cessação ou eliminação progressiva das descargas, emissões e perdas das substâncias perigosas prioritárias; d) Assegure a redução progressiva da poluição das águas subterrâneas e evite o aumento poluição (…)”.

56 HASELHAUS, Verfassungsrechtliche Grundlagen des Umweltschutzes…, p. 20. No mesmo sentido, v. decisão do Tribunal Federal Administrativo alemão: BVerwGE 71, 163 (165). A Lei de Proteção da Natureza alemã de 1976 (Bundesnaturschutzgesetz – BnatSchG), substituída por nova legislação equivalente no ano 2009, trazia dispositivo com o mesmo conteúdo no seu § 2, (1), 1, ao estabelecer, no Capítulo sobre os Princípios de Conservação da Natureza e Gestão da Paisagem (Grundsätze des Naturschutzes und der Landschaftspflege), que “a eficiência do ecossistema deve ser mantida e melhorada; os danos devem ser evitados ou compensados” (“Die Leistungsfähigkeit des Naturhaushalts ist zu erhalten und zu verbessern, Beeinträchtigungen sind zu unterlassen oder auszugleichen”).

57 Também no âmbito jurisprudencial, mais precisamente no STJ, verifica-se a consagração do princípio da melhoria progressiva da qualidade ambiental:“(…) Ante o princípio da melhoria da qualidade ambiental, adotado no Direito brasileiro (art. 2.º, caput, da Lei 6.938/1981), inconcebível a proposição de que, se um imóvel, rural ou urbano, encontra-se em região já ecologicamente deteriorada ou comprometida por ação ou omissão de terceiros, dispensável ficaria sua preservação e conservação futuras (e, com maior ênfase, eventual restauração ou recuperação). Tal tese equivaleria, indiretamente, a criar um absurdo cânone de isonomia aplicável a pretenso direito de poluir e degradar: se outros, impunemente, contaminaram, destruíram, ou desmataram o meio ambiente protegido, que a prerrogativa valha para todos e a todos beneficie” (STJ, REsp 769.753/SC, 2.ª T., rel. Min. Herman Benjamin, j. 08.09.2009).

58 De modo complementar, o art. 4.º, VI, da Lei 6.938/1981, entre os objetivos da Política Nacional do Meio Ambiente, destaca “a preservação e restauração dos recursos ambientais com vistas à sua utilização racional e disponibilidade permanente, concorrendo para a manutenção do equilíbrio ecológico propício à vida”.

59 Na doutrina brasileira, v. FABBRI, Amália Botter; SETZER, Joana; CUNHA, Kamyla (Orgs.). Litigância climática: novas fronteiras para o direito ambiental no Brasil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019; e WEDY, Gabriel. Litígios climáticos: de acordo com o direito brasileiro, norte-americano e alemão. São Paulo: Juspodivum, 2019.

60 WEDY, Gabriel. Desenvolvimento sustentável na era das mudanças climáticas: um direito fundamental. São Paulo: Saraiva (Série IDP), 2018.

61 MOLINARO, Carlos Alberto. Direito ambiental: proibição de retrocesso. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 99-100.

62 A respeito do “despertar” da doutrina para o princípio da proibição de retrocesso ecológico ou ambiental, tivemos a oportunidade de participar, juntamente com autores renomados do Direito Ambiental brasileiro e internacional – Michel Prieur, Antonio Herman Benjamin, Carlos Alberto Molinaro, Patryck de Araújo Ayala e Walter Claudius Rothenburg –, do Colóquio Internacional sobre o Princípio da Proibição de Retrocesso Ambiental, realizado pela Comissão de Meio Ambiente, Defesa do Consumidor e Fiscalização e Controle (CMA) do Senado Federal, sob a presidência do Senador Rodrigo Rollemberg, em 29 de março de 2012. As palestras do evento foram reunidas sob o formato de livro editado pelo Senado Federal: COMISSÃO DE MEIO AMBIENTE, DEFESA DO CONSUMIDOR E FISCALIZAÇÃO E CONTROLE

DO SENADO FEDERAL (Org.). O princípio da proibição de retrocesso ambiental. Brasília: Senado Federal/CMA, 2012. No âmbito do direito comparado, v. CHACON, Mario Peña (Edit.). El Principio de no regresión ambiental en Iberoamérica. Gland (Suiça): UICN – Unión Internacional para la Conservación de la Naturaleza/Programa de Derecho Ambiental, 2015. Disponível em: [https://portals.iucn.org/library/sites/library/files/documents/EPLP-084.pdf].

63 BENJAMIN, Antonio Herman. Princípio da proibição de retrocesso ambiental. In: COMISSÃO DE MEIO AMBIENTE, DEFESA DO CONSUMIDOR E FISCALIZAÇÃO E CONTROLE DO SENADO

FEDERAL (Org.). O princípio da proibição de retrocesso ambiental. Brasília: Senado Federal/CMA, 2012, p. 62.

64 CANOTILHO, J. J. Gomes. O direito ao ambiente como direito subjetivo. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estudos sobre Direitos Fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 182. De acordo com Romeu Thomé, na caracterização do princípio da proibição de retrocesso socioambiental, “o Poder Público encontra-se impedido de adotar qualquer espécie de medida contrária ao equilíbrio ambiental, pesando sobre ele a obrigação de abstenção decorrente das determinações constitucionais. Pretende-se que o legislador e/ou o administrador público, no exercício de suas atribuições, seja sempre conduzido pelo objetivo de não suprimir ou reduzir o grau de intensidade normativa que os direitos socioambientais já tenham alcançado”. THOMÉ, Romeu. O princípio da vedação de retrocesso socioambiental: no contexto da sociedade de risco. Salvador: Juspodivm, 2014, p. 206.

65 TEIXEIRA, Orci Paulino Bretanha. O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado como direito fundamental. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 124.

66 “Artigo 3 – Princípios – Na implementação do presente Acordo, cada Parte será? guiada pelos seguintes princípios: (…) c) princípio de vedação do retrocesso e princípio de progressividade (…)”. A Suprema Corte de Justiça do México, proferiu decisão, em sessão do dia 14.11.2018, no julgamento do Recurso de Amparo de Revisão n. 307/2016, em caso envolvendo danos ecológicos irreversíveis a ecossistemas de zonas húmidas costeiras e manguezais e a espécies terrestres e aquáticas de tais biomas, verificados na região da Cidade de Tampico, em razão de projeto de construção de parque temático (“Parque Temático Ecológico Laguna del Carpintero”). A decisão da Corte mexicana, de forma pioneira, serviu-se, na sua fundamentação, tanto da Opinião Consultiva n. 23/2017 da CIDH quanto do Acordo Regional de Escazú (2018), para reconhecer a aplicação do princípio da proibição da não-regressão ou de retrocesso ecológico ao caso, pontuando que o mesmo ”está relacionado com a inclusão das gerações futuras na noção de desenvolvimento ou progresso, uma vez que qualquer diminuição injustificada e significativa do nível de proteção ambiental alcançado afetará o patrimônio que será transmitido à próxima geração”. Outro aspecto importante pontuado sobre o tema na decisão diz respeito à sua aplicação no âmbito do regime jurídico das “áreas especialmente protegidas” (ex. unidades de conservação), ao assinalar que “ princípio da não regressão está intimamente relacionado com os espaços ou áreas naturais protegidas, na medida em que limita as possibilidades de diminuir ou modificar injustificadamente qualquer nível de proteção assegurada pela declaração especial de proteção.”

67 Disponível em: https://repositorio.cepal.org/bitstream/handle/11362/43611/S1800493_pt.pdf.

68 Sobre dupla face da proibição de retrocesso social, notadamente em relação às obrigações de “progresso” e “não regressividade”, v. ABRAMOVICH; COURTIS, Los derechos sociales…, p. 93-94.

69 ARAGAO, Alexandra. A proibição de retrocesso como garantia da evolução sustentável do direito ambiental. In: CHACON, Mario Pena (Edit.). El principio de no regresion ambiental en Iberoamérica. Gland (Suíça): IUCN/Programa de Derecho Ambiental, 2015, p. 31.

70 MINISTÉRIO DO MEIO AMBIETE. Livro Vermelho da Fauna Brasileira Ameaçada de Extinção: Volume      I              /                    1.   ed.  –      Brasília/DF:                        ICMBio/MMA,     2018,     p.     43.     Disponível      em: https://www.icmbio.gov.br/portal/images/stories/comunicacao/publicacoes/publicacoes- diversas/livro_vermelho_2018_vol1.pdf.

71 Idem, p. 66.

72 Sobre a dupla face do princípio da proporcionalidade, simultaneamente como proibição de insuficiência e proibição de excesso, v. SARLET, Ingo Wolfgang. Constituição e proporcionalidade: o direito penal e os direitos fundamentais entre proibição de excesso e proibição de insuficiência. Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 47, Mar-Abr, 2004, p. 60-122; STRECK, Lenio Luiz. A dupla face do princípio da proporcionalidade e o cabimento de mandado de segurança em matéria criminal: superando o ideário liberal-individualista-clássico. Revista do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul, n. 53, maio- set, 2004, p. 223-251; FELDENS, Luciano. Direitos fundamentais e direito penal. Porto Alegre: Livraria do  Advogado,  2008; e,  por  último,  SARLET, A eficácia dos direitos fundamentais…, p. 413 e ss. Com enfoque voltado para a matéria ambiental, v. FREITAS, Juarez. Princípio da precaução: vedação de excesso e de inoperância. In: Separata Especial de Direito Ambiental da Revista Interesse Público, n. 35, 2006, p. 33-48.

73 STF, ADI 3112/DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 02.05.2007.

74 Sobre a possibilidade de responsabilização do Estado por danos causados às vítimas de desastres ambientais associados às mudanças climáticas, v. FENSTERSEIFER, Tiago. A responsabilidade do Estado pelos danos causados às pessoas atingidas pelos desastres ambientais associados às mudanças climáticas: uma análise à luz dos deveres de proteção ambiental do Estado e da correspondente proibição de insuficiência na tutela do direito fundamental ao ambiente. In: LAVRATTI, Paula; PRESTES, Vanêsca Buzelato (Orgs.) Direito e mudanças climáticas (n. 2): responsabilidade civil e mudanças climáticas (Instituto O Direito por um Planeta Verde). Disponível em: www.planetaverde.org/mudancasclimaticas/index.php?ling=por&cont=publicacoes.

75           V. CALLIESS, Christian. Die grundrechliche Schutzpflicht im mehrpoligen Verfassungsrechtsverhältnis. In: Juristen Zeitung (JZ), 2006, p. 330.

76 VIEIRA DE ANDRADE, Os direitos fundamentais…, p. 144.

77 SARLET, Constituição e proporcionalidade…, p. 103-104.

78 CANARIS, Claus-Wilhelm. Direitos fundamentais e direito privado. Coimbra: Almedina, 2003, p. 119.

79 Idem, pp. 122-123.

80 Idem, p. 123.

81 “Direito constitucional. Recurso extraordinário. Repercussão geral. Equiparação do prazo da licença- adotante ao prazo de licença-gestante. (…) 2. As crianças adotadas constituem grupo vulnerável e fragilizado. Demandam esforço adicional da família para sua adaptação, para a criação de laços de afeto e para a superação de traumas. Impossibilidade de se lhes conferir proteção inferior àquela dispensada aos filhos biológicos, que se encontram em condição menos gravosa. Violação do princípio da proporcionalidade como vedação à proteção deficiente. (…) (grifos nossos)”. (STF, RE 778.889/PE, Pleno, rel. Min. Barroso, j. 10.03.2016).

82 SARLET, A eficácia dos direitos fundamentais…, p. 389 e ss.

83 “O Plenário julgou procedente pedido formulado em ação direta para declarar a inconstitucionalidade do art. 3º, III, l (1), da Lei 1.939/2008 do Estado do Tocantins, que permite construções destinadas exclusivamente ao lazer em Áreas de Preservação Permanente (APP), com área máxima de 190 metros quadrados. O Tribunal entendeu configurada a inconstitucionalidade formal do dispositivo. O legislador tocantinense, ao conferir às Áreas de Proteção Ambiental (APP’s) proteção deficitária em comparação ao regramento nacional (Código Florestal), extrapolou os limites da competência suplementar, decorrente da competência concorrente entre União e Estados (CF, art. 24, caput, VI, § 2º). O colegiado reconheceu, ainda, a inconstitucionalidade material. Não há proporcionalidade e razoabilidade em expor bens jurídicos de máxima importância sem justificativa plausível, especialmente na construção de área de 190 metros quadrados dentro de APP com a mera finalidade de lazer, sem se importar com o tamanho do terreno do condomínio ou com os efeitos nefastos que podem ser gerados. Em áreas de preservações iguais ou menores a 190 metros quadrados, por exemplo, a construção acabará com a preservação. Além disso, embora a norma estabeleça que a construção não deva conter fossas sépticas ou outras fontes poluidoras, o simples fato de haver tubulações implica alteração do meio ambiente, fato que gera verdadeira lesão ambiental às APP’s”. (STF, ADI 4.988/TO, Tribunal Pleno, rel. Min. Alexandre de Moraes, j. 19.9.2018, Informativo n. 918, de 17 a 21 de setembro de 2018).

84 STF, ADI 4.901/DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Luiz Fux, j. 28.02.2018.

85 Sobre o papel do Poder Judiciário na implementação da legislação ambiental, inclusive por força dos deveres de proteção a que se encontra vinculado, v. a emblemática decisão do STJ, de lavra do Min. Herman Benjamin: “Processual civil. Natureza jurídica dos manguezais e marismas. Terrenos de Marinha. Área de preservação permanente. Aterro ilegal de lixo. Dano ambiental. Responsabilidade civil objetiva. Obrigação propter rem. Nexo de causalidade. Ausência de prequestionamento. Papel do Juiz na implementação da legislação ambiental. Ativismo judicial. Mudanças climáticas. (…)” (STJ, REsp 650.728/SC, 2.ª T., rel. Min. Herman Benjamin, j. 23.10.2007).

86 Na doutrina, sobre o pagamento por serviços ambientais, v. NUSDEO, Ana Maria de Oliveira. Pagamento por serviços ambientais. São Paulo, Atlas, 2012. Mais recentemente, v. GONÇALVES, Ana Paulo Rengel. Agroecologia e pagamento por serviços ambientais: lições e perspectivas. São Paulo: Instituto O Direito por um Planeta Verde, 2017.

87 STF, ADI 4.903/DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Luiz Fux, j. 28.02.2018.

88 RODOTÀ, Stefano. El terrible derecho: estudios sobre la propiedad privada. Madrid: Editorial Civitas, 1986, p. 41.

89 Art. 1.º, parágrafo único, do Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001).

90 Nesse enfoque, Miguel Reale comenta o princípio da socialidade como uma das características mais marcantes do novo Código Civil (2002), na medida em que o “espírito social” do novo diploma civilista faz prevalecer valores coletivos sobre os individuais (em oposição à matriz liberal-individualista do antigo diploma), sem nunca perder de vista o valor fundante da pessoa humana. REALE, Miguel. “Visão geral do projeto de Código Civil”. In: Revista dos Tribunais, v. 752, jun. 1998, p. 23.

91 Há outros dispositivos do Código Civil de 2002 que também determinam deveres positivos e negativos conferidos pela legislação civil ao titular e ao possuidor de determinada propriedade. Entre eles: “Art.

1.277. O proprietário ou possuidor de um prédio tem o direito de fazer cessar as interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde dos que o habitam, provocadas pela utilização da propriedade vizinha”;

“Art. 1.291. O possuidor do imóvel superior não poderá poluir as águas indispensáveis às primeiras necessidades da vida dos possuidores dos imóveis inferiores; as demais, que poluir, deverá recuperar, ressarcindo os danos que estes sofrerem, se não for possível a recuperação ou o desvio do curso artificial das águas”; “Art. 1.309. São proibidas construções capazes de poluir, ou inutilizar, para uso ordinário, a água do poço, ou nascente alheia, a elas preexistentes”.

92 “Art. 1.º (…) Parágrafo único. Para todos os efeitos, esta Lei, denominada Estatuto da Cidade, estabelece normas de ordem econômica e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental”.

93 STJ, REsp 650.728/SC, 2.ª T., Rel. Min. Herman Benjamin, j. 23.10.2007. Mais recentemente, v. REsp 1.237.071/PR, 2.ª T., rel. Min. Humberto Martins, j. 03.05.2011.

94 Com o mesmo entendimento, v. GAVIÃO FILHO, Anízio Pires. Direito fundamental ao ambiente. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 66.

95 MIRAGEM, Bruno. “O artigo 1.228 do Código Civil e os deveres do proprietário em matéria de preservação do meio ambiente”. In: Cadernos do Programa de Pós-Gradação em Direito – PPGDir./UFRGS, Reflexões Jurídicas sobre Meio Ambiente/Edição Especial, Vol. III, n. VI, Maio/2005, p. 31.

96 BENJAMIN, Antonio Herman. Função ambiental. In: BENJAMIN, Antonio Herman (coord.). Dano ambiental: prevenção, reparação e repressão. São Paulo: Ed. RT, 1993, p. 56.

97 BENJAMIN, Antônio Herman. “Constitucionalização do ambiente e ecologização da Constituição brasileira”. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; MORATO LEITE, José Rubens (Orgs.). Direito constitucional ambiental brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 124-126. Em conformidade com a rejeição a um suposto “direito adquirido de poluir”, v. STJ, REsp 948.921/SP, 2.ª T., rel. Min Herman Benjamin, j. 23.02.2007.

98 STJ, Súmula 613, Primeira Seção, j. 09.05.2018, DJe 14.05.2018.

99 MARCHESAN, Ana Maria Moreira. O fato consumado em matéria ambiental. Salvador: Editora Juspodivm, 2019, p. 404.

100 STJ, Súmula 613, Primeira Seção, j. 09.05.2018, DJe 14.05.2018.

101 STJ, AgRg no RMS 28.220/DF, 1ª Turma, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 18.04.2017.

102 STJ, REsp 948.921/SP, 2ª Turma, Rel. Min. Herman Benjamin, j. 23.10.2007.

103 O STF, no julgamento do RE 654.833, em 18.04.2020, por maioria, apreciando o Tema 999 da repercussão geral, extinguiu o processo, com julgamento de mérito, fixando a seguinte tese: “É imprescritível a pretensão de reparação civil de dano ambiental”.

104  STEFFEN, Will et all. The  Anthropocene:  from Global Change to Planetary Stewardship. In: Ambio

(Royal Swedish Academy of Sciences), Vol. 40, n. 7, 2011, nov., p. 741.

105 STEFFEN, Will; CRUTZEN, Paul J.; McNeill, John R. The Anthropocene: Are Humans Now Overwhelming the Great Forces of Nature?. In: Ambio (Royal Swedish Academy of Sciences), Vol. 36, n. 8, 2007, nov., p. 614-621.

106 ROCKSTRÖM, Johan et all. Planetary Boundaries: Exploring the Safe Operating Space for Humanity. Ecology and Society, Vol. 14, N. 2, 2009, Dezembro, pp. 1-32. Disponível em: https://www.ecologyandsociety.org/vol14/iss2/art32/. O artigo foi publicado também, na forma de uma breve introdução, na Revista Nature: ROCKSTROM, Johan et all. Planetary Boundaries: Exploring the Safe Operating Space for Humanity. Nature, Vol. 461, 2009, set., p. 472–475. Disponível https://www.nature.com/articles/461472a.

107 MEADOWS, Donell H.; MEADOWS, Dennis L.; RANDERS, Jorgen; BEHRENS III, William W. Limites do crescimento: um relatório para o Projeto do Clube de Roma sobre o Dilema da Humanidade. 2.ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 1978 (1ª edição brasileira de 1973).

108 A título de exemplo, discute-se sobre o uso da “geoengenharia” em escala planetária para enfrentar o aquecimento global. Para uma visão crítica sobre o tema, v. SCHELLNHUBER, Hans J. Geoengineering: the good, the MAD, and the sensible. In: Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America (PNAS), Vol. 108, N. 51, 2011, dez., pp. 20277-20278.

109 Na França, conforme assinala Michel Prieur, utiliza-se “o conceito do efeito Cliquet (catraca) ou regra Cliquet antirretorno” para designar o princípio da proibição de retrocesso ou de não regressão ecológica. PRIEUR, Michel. O princípio da “não regressão” no coração do direito do homem e do meio ambiente. In: Revista Novos Estudos Jurídicos, v. 17, n. 1 (Edição Especial Rio +20), 2012, jan.-abr., p. 8. Disponível em: https://siaiap32.univali.br/seer/index.php/nej/article/view/3634/2177.

110 “Art. 225 (…) § 1º Para assegurar a efetividade desse direito (ou seja, o direito fundamental ao ambiente), incumbe ao Poder Público: I – preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas”.

111 “Art. 225, § 1º, (…) VII – proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.

112 LOVELOCK, James. A vingança de Gaia. Rio de Janeiro: Editora Intrínseca, 2006.

113 Disponível em:https://www.undp.org/content/dam/brazil/docs/ODS/undp-br-ods-ParisAgreement.pdf.

114 WILSON, Edward O. Half-Earth: our Planet’s Fight for Life. New York: Liveright, 2016.

115 KOLBERT, Elizabeth. A sexta extinção: uma história não natural. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2015; CEBALLOS, Gerardo et all. Accelerated modern human–induced species losses: entering the sixth mass extinction. In: Science Advances, Vol. 1, no. 5, Jun., 2015. Disponível em: http://advances.sciencemag.org/content/1/5/e1400253.full; e PICQ, Pascal. A diversidade em perigo: de Darwin a Lévi-Strauss. Rio de Janeiro: Valentina, 2016, especialmente p. 95 e ss

116 Disponível em: https://www.ipbes.net.

117 O memorável discurso proferido por Greta Thunberg na COP 24 da Convenção-Quadro sobre Mudança do Clima da ONU, em Katowice, na Polônia, ocorrida no mês de dezembro de 2018, pode ser acessado em: https://www.youtube.com/watch?v=EpvuS0EbywI.

118 FREITAS, Juarez. Sustentabilidade : o direito ao futuro. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2011.

119 BARROSO, Luís Roberto. Contramajoritário, Representativo e Iluminista: os papeis dos tribunais constitucionais nas democracias contemporâneas. In: Revista Direito e Praxis, v. 9, n. 4, 2018, p. 2171- 2228.

120 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Opinião Consultiva n. 23/2017 sobre “Meio Ambiente e Direitos Humanos”, p. 28- 29. Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_23_esp.pdf.

121 LATOUR, Bruno. Facing Gaia: Eight Lectures on the New Climate Regime. Cambridge: Polity Press, 2017, p. 3.

122  Disponível   em: http://www2.stf.jus.br/portalStfInternacional/cms/destaquesNewsletter.php?sigla=newsletterPortalInterna cionalJurisprudencia&idConteudo=450502.

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