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O ‘caso Carrefour’ e a ineficácia deliberada dos programas de compliance

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Víctor Gabriel Rodríguez

Víctor Gabriel Rodríguez

27/11/2020

O espancamento até a morte de um homem pelos seguranças de um supermercado, noticiado no recente Dia da Consciência Negra, é mais uma triste confirmação de o que já afirmamos: que os programas de compliance das empresas, em lugar de ajudarem as big companies a cumprir com seus deveres normativos, são uma forma muito calibrada para protegê-las de qualquer sanção, a partir da simples reprodução, nos momentos-chave, de um discurso ético pré-formatado.

Em outras palavras, os programas de compliance são uma muralha que protege a grande empresa da ação do Estado, através da difusão de um palavreado que, se a nós soa infantil, é tremendamente eficaz diante da opinião pública e do enforcement legal. Aqui comprovamos que, de modo análogo à delação premiada, o discurso do “arrependido”, que anos atrás não despertaria comoção na opinião pública, hoje é o instrumento eficaz e gratuito das empresas para fugir a qualquer responsabilidade, inclusive diante dos agentes da lei.

O funcionamento das engrenagens do discurso ético

Para alcançar nosso percurso, há de se fixar duas premissas: 1) a primeira delas, a de que as grandes empresas multinacionais já implementaram seus programas de compliance, pois estamos em estágio avançado da arte da governança e do cumprimento normativo.

Portanto, no caso do referido homicídio-espancamento dentro do hipermercado, já era vigente o risk assessment, ou seja, o cálculo de risco de que o evento ocorresse, ainda mais por uma empresa que se repete [1] em experiências semelhantes. Difícil entender que um dos maiores grupos de comércio de todo o globo [2] possa ter falha na implementação de seu cálculo de risco, que no caso da possível violência de seus seguranças parece até intuitivo;

2) segundo, que o sistema de compliance está ancorado em uma promessa de novos padrões éticos pelas empresas. A filosofia do compliance se alicerça na crença difusa de que as companhias não querem satisfazer apenas os shareholders, seus sócios, mas também observar seus stakeholders, o coletivo de indivíduos afetados por sua atividade. Algo como uma função social, inscrita no código de valores e ética que cada entidade deve redigir, como parte imprescindível dos programas de cumprimento normativo que se lança a público.

Pelas ocorrências que se tem visto dentro da América Latina, em que as big companies seguem tratando a periferia do mundo como território em que a observância dos direitos humanos é dispensável, fica simples entender como se tem inserido, entre as duas premissas, uma malévola engrenagem: a prevenção de riscos adrede é mínima, mas, com a ocorrência do dano, o discurso ético logo entra em ação para anular qualquer responsabilidade.

O surpreendente é que esse mero discurso ético de reafirmação ética funcione, substituindo-se a todo o mecanismo de providências e comprimindo qualquer resposta da sociedade, da opinião pública e do próprio Estado à quase insignificância.

Os fatos e o pedido de desculpas

Nosso suporte fático é bastante breve: o conteúdo do vídeo que está na internet e alcançou todo o mundo, inclusive a França. Um homem negro é espancado até a morte por dois seguranças do hipermercado. João Alberto Silveira Freitas é imobilizado por um dos seguranças, enquanto o outro bate em sua cabeça, e há sangue jorrando.

Ouve-se o diálogo com algum funcionário do hipermercado, que diz algo como “nós só queremos imobilizá-lo”, mas nesse momento a vítima já está sem vida. Apurou-se que João Alberto havia ido com usa esposa ao hipermercado para compras corriqueiras e, por mais que possa ter existido alguma altercação, o vídeo demonstra, ao menos ao penalista, que qualquer hipótese de legítima defesa está totalmente descartada. Causar a morte de um homem que está imobilizado é homicídio.

Numa leitura rápida, para nosso tema, é de notar-se que a conduta era mais que tolerada pela empresa, pois ambos os funcionários — terceirizados ou não — agiam em cumprimento de suas funções ali, o que significaria a defesa de seu emprego. Uma funcionária não terceirizada justifica o homicídio àquele que filma, o que dá uma ideia muito mais concreta sobre os valores vigentes no hipermercado, que em nada coincidem com os enunciados pela empresa posteriormente.

Ineficaz a prevenção, a contenção de danos foi de invejável agilidade. Num primeiro momento, a imprensa toda evitou nominar o hipermercado, e somente com a repercussão nas redes sociais é que a marca envolvida, grande anunciante de toda a mídia, constou das manchetes. As chamadas “notas de pesar” da companhia também vieram a público, e seu conteúdo tem de ser parte de nossa análise.

Em rede nacional, a empresa, no Dia da Consciência Negra, solta uma nota de esclarecimento [3]. Trata-se de o que interpretamos como padronizado discurso de arrependimento, ali enunciado como “palavras não expressarão nossa angústia com a brutalidade”.

Uma empresa angustiada, ainda que a nós pareça uma antropomorfização indevida, aos reais destinatários da mensagem, como se demonstrará, funcionou muito bem. Mas, como medidas concretas, a nota de esclarecimento prevê apenas que: 1) em respeito à família do vitimado, unicamente a loja que foi sede do assassinato fica fechada por também um único dia; 2) o “resultado” das vendas desse dia “será doado a entidades ligadas à lutas pela consciência negra”; 3) é prometido algo como um curso de algumas horas a todos os funcionários, porque “amanhã abriremos mais tarde para reforçarmos o treinamento antirracistas”; 4) asseguram “transparência” ao mesmo tempo em que garantem reverter o “pesar” em “ações concretas”, sem que, no entanto, estas sejam enumeradas, num paradoxo bastante difícil de solucionar. E nada mais que isso.

No exterior, o CEO do Carrefour, desde a Europa, solta uma nota no Twitter dizendo que “os valores do Carrefour não compactuam com racismo e violência”. Oportunidade de ouro para anunciar seu compliance program para a opinião pública mundial.

Resultado financeiro do alarde dos valores éticos

O resultado econômico do pedido de desculpas é, para leigos que somos em Administração e Economia, surpreendente: as escusas bastaram para reverter a tendência de queda das ações da marca no mercado financeiro.

De fato, as shares da empresa, a partir da “nota de pesar” começaram a subir nas bolsas de valores [4]. Compliance e cotação de mercado estão indissociavelmente atrelados, independentemente da efetividade de qualquer programa de prevenção de riscos. Basta ter um canal de difusão de seus alegados valores éticos, e o preço da marca se incrementa, porque se acopla ao moralismo de mercado.

Nesse sentido, não há como evitar a afirmação de que a vida de João Alberto foi instrumentalizada para reverter a tendência de queda bursátil, com expressivo êxito. Se em dias posteriores as ações voltarem à tendência de queda, foi por outros fatores, entre eles a hostilização que pode haver à marca por ações das redes sociais.

A banalização do perdão e o discurso do arrependido

Os efeitos jurídicos do discurso de desculpas, dor e arrependimento são objeto de nosso estudo há algum tempo [5]. Em termos muito coloquiais, fomos todos transformados em millenials que cremos em conversões imediatas ao bem, como ocorre com a delação premiada: ocultamos de nós mesmos a ética utilitarista para crer no mito do “arrependido”.

Isso não significa que o perdão seja uma instituição juridicamente dispensável, bem ao contrário. Entretanto, ela jamais deve se vincular à volátil subjetividade do arrependimento, mas às iniciativas de efetiva reparação, justiça e garantia de não repetição. “Garantia”, não sobra dizer, é diferente de “promessa”, especialmente em caso de empresas reincidentes. A nós não cabe, para o caso concreto, indicar quais seriam as medidas de reparação e justiça, que deveriam vir espontaneamente da empresa. Porém, realizar doações de valores irrisórios diante do faturamento anual do conglomerado [6] ou fechar as portas de uma das centenas de lojas do conglomerado por um dia está muito longe de alcançar o que os postulados técnicos da justiça reparatória entendam como mínimo suficiente.

A questão se agrava em termos locais. As big companies sabem que a América Latina é muito mais tolerante com a injustiça, e nisso temos todos nossa parcela de culpa, por não cessarmos de produzir dados empíricos dessa nossa condição de subserviência. Um paralelo entre reação norte-americana à morte de George Floyd e a passividade de todos diante do assassinato de João Alberto demonstra que aqui as providências reparatórias de qualquer malfeito podem ser muito brandas. Como esse desagravo é financeiramente calibrado [7] — porque, novamente, para isso o compliance funciona de imediato — não é demais dizer que a vida dos nosso irmão do Hemisfério Norte vale muito mais do que as nossas.

As mudanças do compliance

Está muito distante dos objetivos deste texto a crítica a uma empresa específica, até porque o mesmo mecanismo se reproduz em outras big companies de setores diversos, como as mineradoras, as empreiteiras ou as petrolíferas. Apenas buscamos demonstrar que a efetividade dos programas de compliance, tal qual a delação premiada, está longe de ser o que a teoria nos vende: já há muito não cumprem sua função de prevenção de riscos ou reparação efetiva e espontânea; ao revés, são perfeitos para colocar em marcha mecanismos de alarde de um discurso de arrependimento e pesar, adjuntos à reafirmação de valores éticos jamais postos em prática, mas extremamente palatável ao mercado financeiro.

Com esse desvirtuamento, corroemos os pilares da tão desejada justiça restaurativa e reafirmamos o já enunciado gatopardismo [8]: mudar os paradigmas para que tudo continue igual.

FONTE: CONJUR

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[1] É verdade que o cálculo de riscos se pode modificar a cada momento, porque há riscos novos. No caso concreto, não há novidade no comportamento agressivo dos seguranças terceirizados pela empresa. Em 2009, seguranças do hipermercado em Osasco agrediram a socos um homem negro, que entrava em seu próprio carro, ao pensarem que ele estaria tentando furtar o veículo. Veja-se: http://g1.globo.com/Noticias/SaoPaulo/0,,MUL1273485-5605,00-PELO+AMOR+DE+DEUS+O+CARRO+E+MEU+DISSE+HOMEM+CONFUNDIDO+COM+CRIMINOSO.html, acesso em 23 de novembro de 2020.

[2] No ranking da Forbes, 2020, a empresa aparece como 374ª maior do mundo, com 83 bilhões de dólares em venda, 1,3 bilhão de dólares em lucros, 57 bilhões em ativos e 11,8 bilhões em valor de mercado. Veja-se: https://www.forbes.com/global2000/#6d2079ec335d, acesso em 22 de novembro de 2020.

[3] O conteúdo da nota está na íntegra, por exemplo, em https://vejasp.abril.com.br/cidades/carrefour-racismo-nota-televisao/.

[4] https://www.cnnbrasil.com.br/business/2020/11/20/acao-do-carrefour-investidores-reagiram-a-morte-do-homem-negro-no-supermercado.

[5] Veja-se nosso RODRÍGUEZ, Víctor Gabriel, Delação Premiada: limites éticos ao Estado, RJ: Gen Forense, 2019, pp. 117 e ss.

[6] Conforme noticiou a ConJur na segunda-feira, dia 23 de novembro, o grupo anunciou a doação de 25 milhões de reais a fundos que lutam contra o racismo. Trata-se de um valor menor que 5 milhões de dólares, para uma empresa que tem faturamento anual, como dá conta nossa nota anterior, de 1,3 bilhão de dólares. https://www.conjur.com.br/2020-nov-23/carrefour-anuncia-aporte-25-milhoes-fundo-racismo.

[7] Sobre o tema, SAAD DINIZ, Eduardo, Vitimologia Corporativa, SP: Tirant lo Blanch, 2019, p. 183.

[8] Veja-se texto de nossa autoria em: https://blog.grupogen.com.br/juridico/2020/08/10/compliance-e-analise-de-risco/.

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