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Desafios à definição de contrato: a necessária contextualização histórica

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Desafios à definição de contrato: a necessária contextualização histórica

AUTORREGULAÇÃO DE INTERESSES

CONTEXTO HISTÓRICO

CONTRATO

DEFINIÇÃO DE CONTRATO

FUNDAMENTOS DE DIREITO CIVIL

Gustavo Tepedino

Gustavo Tepedino

07/12/2020

A adequada definição de contrato demanda advertência metodológica preliminar: todo conceito é plasmado pelos valores do contexto do qual se origina. Não existem institutos jurídicos válidos em todos os tempos e em todos os lugares: eles são construídos pelo jurista levando em conta a realidade que o cerca.[1]

Consequentemente, em lugar de se estabelecer longo histórico que relate a evolução do contrato – o que acaba por torná-lo entidade abstrata e autônoma frente à realidade social – a orientação metodológica mais adequada é contextualizá-lo em cada experiência social em que o contrato se insere.

Dessa forma, deve-se evitar a tradição de buscar no direito romano clássico ou nos povos da antiguidade algum “início” da trajetória histórica do contrato, como se o papel do historiador fosse buscar o embrião ou a origem de cada instituto.[2] O estudo do direito romano impõe a compreensão da rica complexidade social da qual se origina e na qual seus institutos jurídicos adquirem significado, como exercício metodologicamente adequado de direito comparado.[3]

Assim, são temerárias as referências à figura do contrato na Antiguidade como se similares ao que entendemos hoje por contrato, pois por trás da continuidade terminológica, pode haver rupturas semânticas.[4] Se o direito somente existe como direito aplicado e interpretado, tamanho intervalo temporal torna arriscado afirmar que, ainda que sob o mesmo nomen iuris “contrato”, se esteja a tratar do mesmo instituto, a desempenhar a mesma função em sociedades tão diversas.[5]

Ademais, ao se atribuir ao contrato trajetória que deita raízes tão distantes, arrisca-se adotar perspectiva evolutiva, como se a visão atual do instituto fosse evolução natural e necessária de sua visão primitiva, descurando-se de toda a complexidade e riqueza do passado, filtrada pelos valores do observador, e da necessária visão crítica – e não legitimadora – que a abordagem histórica deve propiciar.[6]

Dessa forma, deve-se reconhecer que, ao lado da propriedade e do direito subjetivo, o conceito que recebemos de contrato foi forjado por específico contexto histórico e econômico, no qual se constitui em um dos pilares da concepção clássica do direito civil, fundada na autonomia privada.

Por conta disso, as definições de contrato frequentemente se associam ao individualismo próprio do período de formação do substrato voluntarista que traduz a cultura jurídica dominante na Europa dos séculos XVIII e XIX. Nessa perspectiva, compreende-se a identificação do contrato como acordo de vontades, a sobressair a hegemonia da vontade como definição e fonte do principal mecanismo de regulação dos interesses privados.

Na experiência brasileira, ao contrário de outros ordenamentos, as codificações não definiram o contrato, o que, em certa medida, favorece a evolução conceitual a partir de constante releitura e reinterpretação histórica do conceito pela doutrina, adaptando-o aos valores fundantes do ordenamento. Nesse processo evolutivo, fala-se da passagem da visão subjetiva do contrato, concebido como acordo de vontades, para a visão objetiva, tomando-se o contrato como norma de comportamento. Nessa direção, a atividade contratual afasta-se gradualmente do apego à manifestação livre de vontade. Já que esta, ainda quando presente, não preserva a mesma relevância do passado para a definição das normas que lhe são aplicáveis. Na percepção de Orlando Gomes, “passa-se a dissociar a relação contratual do acordo de vontades”.[7]

Com as transformações pelas quais passou o direito civil ao longo do século XX, buscando conciliar a tutela individual da liberdade com o atendimento aos imperativos sociais de solidariedade, atenuaram a ênfase no papel da vontade na construção do conceito de contrato. Ao dar prioridade à perspectiva funcional do contrato (“para que serve”) sobre sua análise estrutural (“como é”), sobressai na concepção desse instituto sua função preceptiva ou normativa: o contrato como instrumento de autorregulação de interesses.

Assim, ainda que o contrato incorpore o acordo de vontades em sua estrutura, como seu fato gerador, é a função de autorregulação de interesses que se torna objeto de atenção prioritária do intérprete. Por outro lado, o contrato não é o único instrumento de autonomia negocial disponível no ordenamento, razão pela qual se torna necessário individuar seus caracteres distintivos, extremando-o de outras figuras.

A definição de contrato, tal como outras categorias jurídicas (próprias do contato social, como os negócios unilaterais e os atos jurídicos stricto sensu), destina-se à função normativa: determinar a quais suportes fáticos se aplica a disciplina legal prevista para a relação contratual, assim como excluir de seu âmbito de incidência os demais fenômenos, aos quais as normas em questão somente poderiam ser aplicáveis por interpretação analógica ou extensiva, devidamente fundamentada.

Busca-se delimitar o que é contrato para identificar sobre quais situações devem incidir as normas de direito contratual. Igualmente, a definição de contrato também serve, a contrario sensu, para determinar o que não pode ser compreendido como contrato e, dessa forma, indicar as situações que restam excluídas, a princípio, da incidência dessas normas.

Por conseguinte, a elaboração da noção de contrato não se destina à construção de categoria pura ou de conceito imutável, para fins de aperfeiçoamento da ciência do direito, mas sim à finalidade prático-social. Busca-se a definição que sirva para identificar a quais fenômenos se reputa adequada, a priori, a aplicação das normas de direito contratual.

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LEIA TAMBÉM


1 Pietro Perlingieri, Normas constitucionais nas relações privadas, Revista da faculdade de direito da UERJ, n. 6 e 7, 1998/1999, pp. 63-64

2 Marc Bloch refere-se ao “ídolo das origens” ou à “obsessão embriogênica” (Apologia da história ou o ofício do historiador, Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p. 56 e ss.).

3 Constantinesco alerta que, antes de comparar institutos jurídicos, é necessário conhecer o instituto em sua singularidade, conforme as fontes, os instrumentos e a perspectiva de seu ordenamento de origem, bem como compreender como o instituto é construído, apresentado e justificado no seu ordenamento de origem, reintegrando-o nas relações que mantêm com os outros elementos, jurídicos e extrajurídicos daquele sistema (Leontin-Jean Constantinesco, Il metodo comparativo, Torino: Giappichelli, 2000, 2ª ed., passim).

4 António Manuel Hespanha, Cultura jurídica europeia: síntese de um milênio, Florianópolis: Boiteux, 2005, pp. 26-27

5 Pietro Perlingieri, destacando a importância de o civilista ter atenção ao problema, exemplifica com permanência do mesmo Código Civil nos dois lados do muro de Berlim: “Em dois regimes politicamente heterogêneos foi mantido um Código inspirado em um regime diverso de ambos. O que leva a compreender que as técnicas adotadas nos códigos podem ser funcionalizadas, sob alguns aspectos, a objetivos diversos. As escolhas ideológicas de fundo eram diversas, e diversas eram as funções que os dois distintos ordenamentos atribuíam àquelas técnicas” (Pietro Perlingieri, O direito civil na legalidade constitucional, Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 141).

6 Ricardo Marcelo Fonseca, Introdução teórica à história do direito, Curitiba: Juruá, 2012, p. 23.

7 Orlando Gomes, Contratos, Rio de Janeiro: Forense, 2009 (1959), 26ª ed., p. 9, grifos no original.

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