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Marcílio Toscano Franca Filho

Marcílio Toscano Franca Filho

20/01/2021

Marcílio Franca Filho & Marcelo Franca Filho

Armado com chicote, chapéu, jaqueta de couro e peculiar senso de humor, Henry Jones Jr., ou simplesmente Indiana Jones, acaba de descobrir uma espantosa ossada de pterossauro numa pedreira da Chapada do Araripe, no calor do Ceará profundo. Improvável? Nem tanto.

Esqueça o glamour hollywoodiano e substitua Mr. Jones, não por paleontólogos doutorados em Oxford ou Harvard, mas por empregados de uma pedreira de “pedra cariri”, rocha amarelada que, recortada em lâminas, é bastante utilizada como acabamento na construção civil. A cena plausível pode ter acontecido ontem e ficado na surdina.

Com alguma frequência, ao lavrar e laminar a pedra cariri no sertão cearense, funcionários deparam-se com fósseis de crustáceos, aracnídeos, borboletas, caranguejos, escorpiões, peixes, pterossauros, quelônios, crocodilianos, vegetais ou aves de cerca de 110 milhões de anos, quando a região formava um grande lago rodeado de florestas. A Constituição Federal e o Decreto-Lei nº 4.146, de 1942, determinam que os fósseis são propriedade da União. Todavia, em lugar de entregar o tesouro paleontológico às autoridades federais, gente ligada às pedreiras repassa-o criminosamente a atravessadores a fim de ganhar algum dinheiro extra.

Não é muito, mas é bem mais do que se recebe numa das pedreiras da região, cuja importância científica levou a UNESCO a declará-la integrante da Rede Mundial de Geoparques (Global Geoparks Network). Dinheiro mesmo, o fóssil vai render quando chegar no exterior.

Em novembro, a polícia alemã apreendeu cerca de 60 fósseis traficados do Cariri cearense, avaliados em 100 mil euros, que seriam comercializados pela empresa Fossils Worldwide. Ainda é pouco, se comparados aos 31.8 milhões de dólares que a Christie’s conseguiu ao bater o martelo, em outubro, para a ossada de Stan, tiranossauro rex que viveu em South Dakota, Estados Unidos.

Os primeiros fósseis de dinossauros foram descobertos na Inglaterra, entre as décadas de 1820 e 1830. Desde então, encontrá-los e negociá-los passou a ser uma atividade lucrativa[1]. Mas quem compra, por exemplo, um enorme pterossauro nordestino fossilizado? Desde museus, instituições culturais e colecionadores vorazes até investidores, lavadores de dinheiro e, não duvide, grã-finos querendo decorar o novo apartamento. O geógrafo alemão Karl Ganser já disse que arte e natureza são vizinhos: “Die Kunst ist der nächste Nachbar der Wildnis”.

Há pouco, a imprensa noticiou mais uma controvérsia em torno de um fóssil cearense. Artigo publicado na revista “Cretaceous Research”, em dezembro, afirmou que o esqueleto era uma nova espécie de dinossauro. A comunidade científica nacional acusou os autores do estudo de ter retirado ilegalmente o fóssil do Brasil, com base em um documento genérico e sem valor, pedindo ao Museu Estadual de História Natural de Karlsruhe, Alemanha, a repatriação da peça.

Esse fato trazia colorido recente a algo que já ocorrera em 2015: Depois que o fóssil cearense de uma cobra de patas fora descrito na Science, paleontólogos brasileiros questionaram a legalidade da obtenção do material pelo Museu Bürgermeister Müller, de Solnhofen, Alemanha. Num caso e no outro, havia a presença de um mesmo cientista.

Dias atrás, uma operação conjunta do IPHAN e da PF prendeu em Rio Branco, Acre, um auto-denominado “caçador de relíquias” acusado de escavar, remover e negociar ilicitamente na internet artefatos arqueológicos. Desta vez, os alvos dos criminosos não foram apenas fósseis pré-históricos, mas principalmente valiosos itens representativos do passado do povo acreano e de outras culturas humanas antigas. A retirada de material de qualquer sítio arqueológico, sem a devida autorização do IPHAN, configura crime ambiental e contra o Patrimônio Nacional.

A repercussão internacional desses episódios de paleopirataria e arqueopirataria nos dá a chance de fazer algumas reflexões. A primeira: Esqueça Indiana Jones! A figura do caçador de tesouros romântico e aventureiro que, sozinho, leva ossadas pré-históricas e artefatos indígenas para o gabinete de curiosidades em que se transformou o seu escritório só existe no cinema.

No Brasil, a exploração do patrimônio paleontológico, sempre para fins científico-acadêmicos, exige métodos rigorosos, transparência e cuidadosas autorizações estatais. Quem foge desse perfil pode ser um burocrata corrupto, um suposto pesquisador em busca de publicidade e financiamento fáceis ou um criminoso que se vale de expedientes logísticos semelhantes aos do tráfico de drogas para pilhar o país de um bem cultural cujo valor é reconhecido pelo art. 216, inc. V, da Constituição.

Players importantes do mercado, museus têm um papel destacado no combate à pilhagem. A proteção do patrimônio cultural contra o esbulho passa, necessariamente, pelo aperfeiçoamento das cautelas museológicas no momento de novas aquisições e, quando não adotadas, pela responsabilização e penalização das instituições e gestores omissos.

O Código de Ética do Conselho Internacional de Museus (ICOM), em vias de ser alterado, estabelece uma “obrigação imperativa” de que, antes da aquisição de qualquer novo item, todos os esforços devem ser feitos para assegurar que o bem não tenha proveniência ilegal. Dispositivos semelhantes são encontrados nos códigos de ética da American Association of Museum (AAM), da Association of Art Museum Directors (AAMD) ou Conselho Federal de Museologia (COFEM).

É preciso, contudo, que se dê um passo adiante e a obrigação ética se converta em clara e efetiva obrigação jurídica de “due diligence” e “compliance” para as instituições culturais, nas legislações nacionais e internacional. A Convenção UNIDROIT de 1995 é um mecanismo importante, mas ainda não é tudo.

Barrar toda a saída ilícita dos bens culturais do país é uma quimera. Assim, é necessário pensar na repatriação. Um Indiana Jones tupiniquim a quebrar a vitrine de um museu alemão e repatriar um fóssil a fórceps não teria chances.

A repatriação de um bem cultural envolve um processo jurídico e diplomático lento e complexo, que demanda um conhecimento especializado. A literatura jurídica brasileira e estrangeira dão conta de muitos casos de êxitos espetaculares (como a Cratera de Eufrônio), mas também de insucessos retumbantes (como o manto de penas vermelhas que pertenceu aos Tupinambá).

De modo a aperfeiçoar esses processos, o mítico promotor italiano Paolo Giorgio Ferri, falecido em junho, defendia a necessidade de se ter, em cada país, uma unidade nacional do Ministério Público ou, pelo menos, um grupo de procuradores e promotores especializados, dedicados aos crimes contra o patrimônio cultural, como uma forma de aprimorar a luta global contra o tráfico de bens culturais. A PF já tem as suas delegacias especializadas em patrimônio cultural (as DELEMAPH’s).

No plano internacional, o juiz neozelandês Arthur Tompkins levantou a pergunta: Diante da exitosa experiência de tantas cortes internacionais gerais e especializadas, por que não criar um tribunal internacional permanente para cuidar das questões relativas ao patrimônio cultural? A sugestão é legítima.

Enquanto isso não se torna realidade, a Organização Mundial de Propriedade Intelectual põe em prática alternativas jurídicas voluntárias mais céleres e menos custosas, como a arbitragem e a mediação envolvendo museus e bens culturais.

Todas essas iniciativas, porém, exigem um consenso prévio: Fósseis são uma valiosa commodity cultural. A compra, venda e comércio de fósseis fizeram parte da ciência paleontológica por séculos e, hoje, a coleção comercial de fósseis ressurgiu como uma lucrativa e difundida indústria global.[2]

Como qualquer colecionável raro, fósseis também podem servir a graves fins ilícitos, como a lavagem de dinheiro e o financimento do terrorismo e do crime organizado. Isso explica o empenho do Conselho de Segurança da ONU, da Organização Mundial de Aduanas (WCO) e da INTERPOL em combater o tráfico de bens culturais. Isso justifica – para além do inegável plexo de valores culturais (científicos, históricos, educacionais e turísticos) do patrimônio fossilífero – uma ação dura contra as redes locais e internacionais que atuam nesse rentável circuito, através de autoridades executivas, legislativas, judiciais e científicas. Foi-se o tempo que ossadas de dinossauros eram um assunto para crianças ou Indiana Jones.

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Marcílio Franca tem pós-doutorado em Direito no Instituto Universitário Europeu de Florença, é Procurador-Chefe da Força-Tarefa do Patrimônio Cultural do Ministério Público de Contas da Paraíba, Professor de Direito da Arte da Universidade Federal da Paraíba e árbitro da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (Genebra), na área de arte e patrimônio cultural.

Marcelo Franca é Delegado da Polícia Federal, aprovado em primeiro lugar no último concurso,  autor do livro “Aprovados – Delegado de Polícia Federal” (Ed. Juspodivm).


[1] RIEPPEL, Lukas. Assembling the Dinosaur: Fossil Hunters, Tycoons, and the Making of a Spectacle. Cambridge: Harvard University Press, 2019, p. 5.

[2] JONES, Elizabeth D. Assumptions of authority: the story of Sue the T-rex and controversy over access to fossils. History and Philosophy of the Life Sciences. v. 42, n. 2, 2020, p. 2.

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