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Imunidade do ITBI na incorporação de bens limitado ao valor do capital subscrito

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Imunidade do ITBI na incorporação de bens limitado ao valor do capital subscrito

CAPITAL SUBSCRITO

CONFERÊNCIA DE BENS

DIREITO TRIBUTÁRIO

INCORPORAÇÃO

ITBI

ITCMD

Kiyoshi Harada

Kiyoshi Harada

02/02/2021

Resumo: O presente artigo visa afastar, fundamentadamente, as críticas feitas ao voto majoritário, proferido no RE nº 796.376-RG sob a égide de repercussão geral, limitando a fruição da imunidade no caso de conferência de bens, ao valor do capital subscrito. Busca demonstrar que a suposta tese “prejudicial aos contribuintes”, na verdade, é o que mais favorece aos contribuintes em geral, sendo que a tese sustentada pelos seus opositores representa, na realidade, um verdadeiro tiro no pé, à medida que prejudica a imunidade pura e incondicional, mediante indevida aplicação de restrições que cabem apenas para as hipóteses de transmissões decorrentes de reorganizações societárias.

Palavras-chave: ITBI. ITCMD. Conferência de bens. Incorporação. Capital subscrito.

Sumário: 1 Introdução. 2 O voto do Ministro Alexandre de Morais. 3 Vozes contrárias. O texto publicado no JOTA. 5 Nossa manifestação. 5 Conclusão.

1 Introdução

Após décadas de indefinições, finalmente, o STF por intermédio de seu Plenário virtual, nos autos do RE nº 796.376 julgado sob a égide de repercussão geral, por maioria de votos, firmou duas importantes teses em relação à imunidade do ITBI prevista no inciso I, do § 2º, do art. 156 da CF, adiante mencionadas, desfazendo as interpretações equivocadas das instâncias administrativas  que vinham decidindo com base na antiga jurisprudência firmada na vigência da Constituição de 1946, que tributava a incorporação de bens em conferência de capital, ou, à luz da Emenda nº 18/65, que condicionava a imunidade à inexistência de atividade preponderante de venda ou locação da propriedade imobiliária ou a cessão de direitos relativos à sua aquisição. Algumas decisões judiciais, também, referendavam essas decisões firmadas no bojo de processos administrativos tributários. Durante décadas vínhamos pregando no deserto, até que finalmente a nossa doutrina encontrou eco no STF.

Eis o teor das duas teses firmadas pelo voto vencedor proferido pelo douto Ministro Alexandre de Morais, uma das mais acertadas que eu vi até hoje:

a) a imunidade do ITBI na incorporação mediante conferência de bens limita-se ao valor do capital integralizado;

b) as limitações previstas na parte final do § 2º só se aplicam nas transmissões decorrentes de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoas jurídicas.

Para melhor compreensão transcrevamos o dispositivo constitucional pertinente:

“Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre:

I – propriedade predial e territorial urbana;

II – transmissão “inter vivos”, a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza ou acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como cessão de direitos a sua aquisição;

[…]

§2ºO imposto previsto no inciso II:

I – não incide sobre a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital, nem sobre a transmissão de bens ou direitos decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, salvo se, nesses casos, a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil”.

2 O voto do Ministro Alexandre de Morais

O voto do Ministro Alexandre de Morais está fundamentado em interpretação sistemática, teleológica e  histórica examinando percucientemente a matéria, desde a Constituição de 1946, Emenda 18/65 e Constituição de 1967/69, cujos textos foram reproduzidos na Constituição de 1988.

De fato prescrevia:

a) Constituição de 1946:

“Art. 19 – Compete aos Estados decretar impostos sobre:

[…]

III – transmissão de propriedade imobiliária inter vivos e sua incorporação ao capital de sociedades”.

b) Emenda 18/65:

“Art. 9º Compete aos Estados o imposto sobre a transmissão, a qualquer título, de bens imóveis por natureza ou por acessão física, como definidos em lei, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os direitos reais de garantia.

[…]

§2º O imposto não incide sobre a transmissão de bens ou direitos referidos neste artigo, para sua incorporação ao capital de pessoas jurídicas, salvo o daquelas cuja atividade preponderante, como definida em lei complementar, seja venda ou a locação da propriedade imobiliária ou a cessão de direitos relativos à sua aquisição”.

c) A partir a Constituição de 1967 passou-se a distinguir duas hipóteses de imunidade tal qual se encontra no art. 156, § 2º, I da CF/88 acima transcrito.

Houve, pois, uma evolução legislativa gradual do ITBI como demonstrado no minucioso voto do Ministro Alexandre de Morais.

A Constituição de 1946 tributava em cheio a incorporação de bens; a Emenda 18/65 livrou da tributação do ITBI a incorporação de bens, porém, com ressalvas aí previstas. A Constituição de 1967/69, bem como a de 1988 instituiu duas hipóteses distintas  de imunidade: a primeira, pura ou incondicional; e a segunda, condicionada à inexistência de atividades preponderantes nas hipóteses de reorganização societária (incorporação, fusão, cisão e extinção de pessoas jurídicas), adotando a redação da Emenda nº 18/65..

Sem o exame aprofundado da matéria, como fez o Ministro Alexandre de Morais, logo vozes se levantaram contra o escorreito voto proferido.

Os Ministros, humanos que são, como homem comum, também, cometem erros, embora alguns pensem que estão acima. No caso sob comento, porém, a decisão majoritária reflete o bom direito, sendo certo que o voto vencedor, a nosso ver, foi proferido com rara felicidade.

3 Vozes contrárias

Mas, logo vozes se levantaram.

O primeiro grito de guerra foi lançado pelo meu eminente amigo, o conhecido tributarista, Omar Augusto Leite Melo, autor da obra ITBI Imposto sobre transmissão de bens imóveis escrita em coautoria com Francisco Ramos Mangieri. Esse valoroso tributarista vem prestando relevantíssimos serviços à classe jurídica, não só pela difusão de sua preciosa doutrina especializada, como também, pelos inúmeros simpósios de direito tributário que organiza e coordena com maestria, sendo certo que eu tive o privilégio de proferir algumas palestras em profícuos encontros de especialistas de direito tributário que ele organizava.

Mas, esse fato não nos impede de criticar a sua posição em nome da verdade científica. Dizia o grande mestre Sampaio Dória, meu professor e orientador na tese de especialização em Direito Tributário  na Faculdade de Direito da USP: ciência se constrói com a verdade, e não com a vaidade”. Na época, não existia o mestrado, nem o doutorado, obra do Ministro Passarinho. Especialização, que hoje prolifera em todas as instituições de ensino, era o único curso de pós graduação existente na tradicional Faculdade de Direito do Largo de São Francisco.

Criticando o escorreito voto do insigne Ministro Alexandre de Morais, que cita a nossa obra nas  duas  passagens, o renomado Omar Augusto Leite Melo ponderou que a tese do voto vencedor é prejudicial ao contribuinte à medida que limita a imunidade ao valor do capital integralizado. No seu entender a norma imuniza a incorporação de bens por conferência de capital E acrescentou que a única restrição  prevista na regra de imunidade é aquela consignada na parte final do  § 2º, do inciso I, do art. 156 da CF concernente à incorporação decorrente de fusão, cisão, incorporação e extinção de pessoa jurídica. É a posição  sustentada pelo fisco municipal de todos os municípios brasileiros que, por si só, é um sinal indicativo de que não consulta aos interesses dos contribuintes.

Estava lançada, data vênia, a semente da terrível e perigosa confusão que se espalhou com a força de uma pandemia.

Outros autores bateram na mesma tecla, reproduzindo o texto de Omar Augusto em uma sucessão interminável de artigos idênticos ou semelhantes, como uma aula inaugural proferida por um  renomado professor, multiplicada por meio de vídeo tapes.

Assisti impassível ao desfile desses deslumbrantes e fantásticos textos na esperança de que um dia tudo iria passar. Mas, não. A peteca nunca iria cair. Novos personagens se revezavam ingressando  na área para manter pairando a peteca no ar que um dia poderá despencar e explodir na cabeça do contribuinte.

4 O texto publicado no JOTA

Hoje, dia 22-1-2021, deparei-me com um texto de autoria de Ana Carolina Monguilo e Marcos Saber, muito bem escrito, em linguagem límpida, clara e objetiva, divulgado no renomado JOTA, valioso veículo de difusão de artigos jurídicos de primeiríssima qualidade e que tanto vem contribuindo para os debates, discussões e aprimoramento de nossos conhecimentos jurídicos.

Pois bem, na edição de 20-1-2021, esse importantíssimo veículo de informações jurídicas publicou o artigo desses dois ilustres articulistas citados com o seguinte título:

“STF: ano atípico, Plenário virtual e decisão negativa sobre imunidade do ITBI.”

Logo abaixo do título  está escrita a seguinte frase: “uma oportunidade para restituição do ITBI”.

Não tenho como saber se esse chamativo é dos autores ou  do site.

Transcrevamos  trechos desse artigo no que pertine às nossas considerações:

“Imunidade em questão alcança apenas o valor do bem imóvel registrado em conta de capital. O resultado foi negativo para o contribuinte”

[…]

Lamentamos o decidido pois, dentre outras críticas, entendemos que a norma imunizante abarca a transmissão do bem imóvel como um todo, contanto que feita com o propósito de pagar o capital subscrito, sem a possibilidade de se fatiar o valor do bem imóvel transmitido”.

[…]

“O ministro buscou com isso afastar o argumento daqueles que defendem que a única exceção à imunidade do ITBI seria aquela vinculada à atividade preponderante de pessoa jurídica receptora do bem imóvel, explanando que essa exceção cabia tão somente à parte final do dispositivo, que trata da transmissão de bens por reorganização societária”.

Penso que é chegada a hora de me manifestar em nome da verdade científica, correndo o risco da antipatia, da aversão, da repulsa ou coisa que o valha, mesmo porque o voto do culto e laborioso Ministro Alexandre de Morais, tão criticado, espelha a nossa doutrina, aliás, abundantemente citada na decisão criticada. Há um velho ditado popular: água mole em pedra dura tanto bate até que fura. Não podemos, pois, permitir que a pedra angular do direito seja danificada.

Em meus 55 anos de exercício da advocacia, sendo 20 anos de advocacia pública, jamais patrocinei ou defendi teses contrárias aos textos constitucionais, abrindo mão de propostas tentadores. Para mim, não existe esse negócio de tese favorável ao contribuinte ou contrário a ele. Como dizia o saudoso e inesquecível prof. Ruy Barbosa Nogueira, a norma tributária não deve ser interpretada pró-fisco, nem pró-contribuinte, mas tão somente pró-lege.

Escrevo este artigo, não pelo desejo subalterno de contrariar a maioria, mas com objetivo de restabelecer a verdade científica e contribuir para o aprimoramento do direito.

Por isso, a minha discordância é feita em termos doutrinários, sem paixão e sem ofensas, e com o maior respeito à majoritária posição antagônica.

Contudo, quem ler este artigo até o final chegará à conclusão que  a tese que mais favorece os contribuintes em geral é exatamente a posição que eu defendo. A chamada tese pró-contribuinte, na verdade, favorece apenas uma pequenina parte dos contribuintes, prejudicando todos os demais, como demonstrado restará. Ela favorece tão somente aqueles contribuintes que elegeram a incorporação de bens como forma usual de planejamento tributário, fim não visado pelo legislador constituinte.

Os críticos do voto majoritário fizeram a interpretação do inciso I, do § 2º, do art. 156 da CF com ostensiva violação das regras gramaticais vigentes, enxergando uma única oração, quando está claro como água que existem no aludido texto duas orações separadas uma da outra pela palavra “nem”, que é um advérbio de negação. Não se deve confundir a expressão “bens ou direitos incorporados” constante da primeira parte do inciso I, com incorporação decorrente de incorporação, fusão, cisão ou extinção de pessoa jurídica referida na parte final daquele inciso I. Palavras semelhantes costumam confundir os menos atentos.

A imunidade prevista na primeira parte do texto constitucional é a pura e incondicional, autoaplicável. Não cabe tentar impor nessa imunidade pura, as restrições enumeradas na segunda parte do texto que se refere às transmissões decorrentes de figuras societárias previstas na Lei de Sociedade Anônima.

Do contrário seria alargar o campo de incidência do ITBI para os casos de imunidade por incorporação de imóveis decorrentes de conferência de capital. Bastará a pessoa jurídica  dedicar-se à atividade preponderante de compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil, para afastar, de imediato, a imunidade tributária proclamada com solar clareza de forma pura e incondicional.

Por esse ângulo, a tese oposta é bem mais danosa que a tese do voto majoritário que prejudica apenas uma pequenina  parte dos contribuintes que buscam no instituto da incorporação mediante conferência de bens uma vantagem fiscal que a Lei Maior não abriga.

De fato, os opositores da tese vencedora no RE nº 796.376  reconhecem, como não poderia deixar de ser,  que os imóveis são dados em pagamento do capital subscrito. O capital subscrito pode ser pago em dinheiro ou em espécie, como no caso sob exame. Forma usual de extinção de obrigação líquida e certa é pelo pagamento em dinheiro. Se devo R$50,00 e dou ao credor uma nota de R$100 faço jus ao troco de R$50,00 sob pena de alterar o conceito de pagamento que é forma usual de solver uma obrigação pecuniária.

A mesma regra aplica-se à integralização do capital mediante conferência de bens imóveis. Às quotas do capital é atribuído um valor líquido e certo, assim como aos bens imóveis dados em pagamento. Não faz sentido algum que para integralizar um capital de R$10.000,00  se promova a incorporação de bens imóveis avaliados em R$100.000.000,00, ou R$1 bilhão de reais; o valor pouco importa, sendo relevante apenas o critério jurídico.

Ora, isso não configura pagamento do capital subscrito. Em direito civil isso tem outro nome. A diferença representará, sem sombra de dúvida, uma doação sujeita à tributação pelo ITCMD, que é bem mais gravosa do que a do ITBI.

Por isso, consignamos em nossa obra no trecho citado pelo Ministro Alexandre de Morais:

“O que a norma imuniza não é qualquer incorporação de bens ou direitos ao patrimônio da pessoa jurídica, como acontece normalmente com a operação de compra e venda, por exemplo. A imunidade diz respeito exclusivamente ao pagamento em bens ou direitos que o sócio faz para integralização do capital subscrito”[1].

Aliás, essa circunstância está bem definida no art. 36 do CTN:

“Art. 36 Ressalvado o disposto no artigo seguinte, o imposto não incide sobre a transmissão dos bens ou direitos referidos no artigo anterior:

I – quando efetuada sua incorporação ao patrimônio de pessoa jurídica em pagamento de capital nela subscrito”.

Insustentável, permissa vênia, a tese de que a imunidade objetiva a incorporação do bem imóvel, qualquer que seja o seu valor em confronto com o capital subscrito.

Assim, para integralizar um capital de R$20.000,00 o contribuinte poderia sob o manto da imunidade conferir um imóvel que vale R$100.000,00, R$100.000.000,00 ou R$1.000.000.000,00, segundo a oportunidade e conveniência do  contribuinte. Isso não seria pagamento do capital subscrito, a menos que o conceito de pagamento tenha mudado. A diferença representa claramente uma doação.

Ora, a Constituição não pode ter abrigado semelhante critério, pois ofenderia o princípio da razoabilidade que é um limite imposto à ação do próprio legislador.

Dir-se-á que o exemplo dado é exagerado, e que não tem respaldo na realidade. Pode ser, mas, é  exatamente por meio de um exemplo exagerado como este  que estamos chamando a atenção quanto ao desacerto da tese de que a imunidade é objetiva, impedindo a incidência do ITBI sobre o bem conferido à pessoa jurídica para integralização do capital subscrito, independentemente do seu valor.

5 Conclusão

A tese  que se opõe à decisão majoritária da Corte Suprema, na verdade, impõe um gravame infinitamente maior à generalidade dos contribuintes que perdem a imunidade pura e incondicional prevista na primeira oração do inciso I, do § 2º, do art. 156 da CF, mediante indevida aplicação das restrições previstas na parte final do inciso I, do § 2º, do art. 156 da CF.

A tese oposicionista, mediante inexplicável fusão das duas nítidas e inconfundíveis  orações, contidas no inciso I, do § 2º, do art. 156 da CF, aplica à generalidade da imunidade do ITBI as restrições cabentes única e exclusivamente para as incorporações de bens e direitos decorrentes de reorganizações societárias (incorporação, fusão, cisão e extinção de pessoas jurídicas) que absolutamente nada têm a ver com a incorporação decorrente de conferência de bens para integralização do capital subscrito, salvo a semelhança de denominação que, por si só, é irrelevante para definir o conteúdo da norma.

Em outras palavras, busca economizar o ITBI incidente sobre a diferença, e sujeita-se à incidência do ITBI em sua totalidade. Não é, certamente, um bom negócio!

A tese “favorável ao contribuinte” representa, dessa forma, um verdadeiro tiro no pé. Daí a alusão que fizemos quanto à explosão da peteca na cabeça do contribuinte.

Logo, eventual repetição de indébito sugerido abaixo do título do artigo de início mencionado só pode ser para recuperar o ITBI pago por ocasião da incorporação de bens por conferência de capital mediante o indevido condicionamento próprio das transmissões imobiliárias decorrentes de organizações societárias previstas na Lei de Sociedade Anônima.

Nesse sentido já exaramos parecer jurídico, logo após o advento do Acórdão do STF proferido em sede de repercussão geral.

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[1] Cf. nosso ITBI doutrina e prática, 2ª Ed.. São Paulo: Atlas, 2016, p. 91.

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