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Abertura legislativa e função do DIPr

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Abertura legislativa e função do DIPr

CURSO DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

DIPR

DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

FUNÇÃO DO DIPR

FUNÇÃO LEGISLATIVA

INTERAÇÃO LEGISLATIVA GLOBAL

Valerio Mazzuoli

Valerio Mazzuoli

04/02/2021

Toda vez que uma relação jurídica se perfaz entre ordens jurídicas distintas, pode nascer (e, via de regra, nasce) o problema relativo aos conflitos de leis no espaço. Isso se dá pelo fato de terem todos os Estados (em razão de fatores históricos, econômicos, sociais, políticos e culturais) suas próprias legislações domésticas, em tudo dessemelhantes umas das outras. Ao passo, porém, que as leis internas dos Estados se mantêm distintas e autônomas, as pessoas, movidas por vários impulsos, extrapolam fronteiras, despreocupadas com o que está a disciplinar cada qual dessas leis.[5] Assim, não há dúvida que é imensa a probabilidade de existir conflito normativo entre as diversas ordens estatais, quando em jogo uma relação jurídica concluída nesse contexto.

Se os Estados, porém, não estivessem dispostos a “abrir” suas legislações à aceitação da eficácia de uma norma estrangeira em sua ordem jurídica, tais conflitos espaciais de leis estrangeiras não existiriam, eis que, nesses casos, apenas a lei do foro, a lex fori, seria unilateralmente aplicada (sabendo-se já da insuficiência do critério unilateral para resolver todas as questões jurídicas interconectadas que a pós-modernidade apresenta).

Se assim procedessem os Estados, as soluções para os casos concretos sub judice (presentes “elementos de estraneidade” em tais relações jurídicas) poderiam ser extremamente injustas,[6] dada a impossibilidade de se localizar o real “centro de gravidade” (ou “ponto de atração”) da questão em causa,[7] notadamente no momento atual, em que se busca cada vez mais garantir a diversidade cultural e os direitos das pessoas em geral.[8]

A propósito, já dizia Beviláqua que “se os Estados em suas leis procuram realizar o direito, e no caso questionado as suas leis são insuficientes ou inadequadas e é a lei estrangeira que revela o direito, ela é que deve ser aplicada”.[9] Daí a razão, em suma, de os Estados aceitarem “abrir” o seu direito interno ao ingresso de normas estrangeiras potencialmente aplicáveis em sua ordem jurídica.

Ao tempo que os Estados consentiram em abrir suas legislações ao ingresso e à eficácia de normas estrangeiras perante o foro doméstico, nasceu, contudo, o problema em estabelecer qual a mais apropriada ordem atrativa da relação sub judice, presente um elemento de estraneidade na relação jurídica. Em outras palavras, a multiplicidade de relações jurídicas envolvendo ordens estatais diversas – que contam, sabe-se, com uma pluralidade imensa de fontes normativas – fez nascer o problema decisivo das opções a serem tomadas para resolver a questão da aplicação de mais de uma lei a um mesmo caso concreto.

Daí terem as Ciências Jurídicas criado, para a sua resolução, um conjunto de regras capazes de coordenar as relações estabelecidas entre essas ordens contradizentes no espaço, denominado Direito Internacional Privado.[10] Sua missão é escolher, dentre as ordens jurídicas em jogo, a que mais se aproxima da questão sub judice, a que com ela mantém contato mais forte e mais estreito.[11]

Interação legislativa global

O DIPr – cuja função precípua é determinar em que condições jurídicas pode ser resolvido o problema antinômico entre ordenamentos diversos, para o que busca a conexão mais próxima com a questão sub judice – é disciplina agregadora das legislações dos distintos Estados, vez que permite aos juízes de todo o mundo conhecer e aplicar (sem qualquer necessidade de “incorporação” ou “transformação”) normas estrangeiras vigorantes em contextos dos mais variados, quer sob a ótica política, social, cultural ou econômica.

Sem o DIPr, as legislações internas seriam (como são) incompletas para reger as situações jurídicas interconectadas no espaço, bem assim aos operadores do direito não seria dada a oportunidade casual de conhecer a normativa (produto da cultura) de diversos países do mundo.

Essa característica do DIPr autoriza falar na existência de uma verdadeira “interação legislativa” em nível global, hoje cada vez mais crescente, cuja consequência marcante é fazer conhecer aos rincões mais distantes do planeta a cultura jurídica de um povo em dado momento histórico. Como consequência, quanto mais “circulam” ao redor do mundo essas legislações, também se propagam – como ensina Jacob Dolinger – a compreensão da diversidade, o respeito pelo desconhecido e a tolerância para com o estranho, possibilitando maior aproximação entre todos os povos.[12] Como já dizia Beviláqua, o DIPr permite, assim, que o direito se despoje “das prevenções mesquinhas que ainda o maculam, para colher, nas suas malhas, os interesses da humanidade”.[13]

Por outro lado, essa interação normativa tem também permitido aos legisladores nacionais adaptarem o seu direito interno em razão da uniformização extraconvencional do DIPr. De fato, à medida que se vão comparando as legislações de todo o mundo, por meio da aplicação de normas estrangeiras em contextos extraestatais, os Estados também passam a incorporar, de certa maneira, o conhecimento do conteúdo da norma estranha (com o apoio decisivo da doutrina, é certo) para, pouco a pouco, adaptar o seu sistema jurídico ao da maioria, o que faz nascer, de forma salutar, a uniformização extraconvencional das principais regras de DIPr. Essa é, inclusive, a meta sempre perseguida pelo DIPr: coordenar as diferentes legislações para o fim de harmonizar, tanto quanto possível, a sua aplicação nos Estados.

Ademais, destaque-se ser o DIPr a única disciplina jurídica que permite ter uma norma interna expressão transfronteira, atribuindo ao direito estatal índole nitidamente exterior. Em razão das normas do DIPr, a legislação de um dado Estado, que, a priori, é promulgada para ter efeitos eminentemente internos, tem a potencialidade de ultrapassar as fronteiras nacionais para ver-se aplicada em ordem jurídica em tudo distinta, graças aos elementos de conexão existentes nesse ramo do Direito. Trata-se daquilo que Machado Villela chamou de “direito interno internacionalmente relevante”,[14] e que, por seu turno, Rodrigo Octavio nominou “transbordamento” da eficiência da lei para além das fronteiras naturais do Estado.

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LEIA TAMBÉM

[5] Cf. Beviláqua, Clovis. Princípios elementares de direito internacional privado. Salvador: Livraria Magalhães, 1906, p. 12.

[6] Cf. Diaz Labrano, Roberto Ruiz. Derecho internacional privado: la aplicación de las leyes extranjeras y su efecto frente al derecho. Asunción: Intercontinental, 1992, p. 195-196.

[7] Sobre o tema, cf. especialmente Lagarde, Paul. Le principe de proximité dans le droit international privé contemporain: cours général de droit international privé. Recueil des Cours, vol. 196 (1986), p. 9-238; e Dolinger, Jacob. Evolution of principles for resolving conflicts in the field of contracts and torts. Recueil des Cours, vol. 283 (2000), p. 187-512.

[8] Para um exemplo de injustiça na aplicação “fria” da lex fori, que não caberia reproduzir neste momento, v. Cap. VIII, item 3.1, infra.

[9] Beviláqua, Clovis. Princípios elementares de direito internacional privado, cit., p. 71.

[10] O termo foi utilizado, pela primeira vez, na obra de Story, Joseph. Commentaries on the conflict of laws: foreign and domestic. Boston: Hilliard, Gray & Company, 1834, p. 9, no seguinte trecho: “This branch of public law may be fitly denominated private international law, since it is chiefly seen and felt in its application to the common business of private persons, and rarely rises to the dignity of national negotiations, or national controversies” [grifo nosso]. Na França, a expressão foi pioneiramente empregada, nove anos depois, na obra de Foelix, M. Traité du droit international privé ou du conflit des lois de différentes nations en matière de droit privé. t. 1. Paris: Joubert, 1843. Deve-se, porém, ao jurista alemão Friedrich Carl von Savigny (1779-1861) a fundação do moderno DIPr, a partir da publicação do 8º volume do seu Tratado de Direito Romano, texto reconhecido como o marco na sistematização da disciplina, quando então se compreenderam o seu objeto e finalidade (cf. Traité de droit romain, t. 8. Trad. Charles Guenoux. Paris: Firmin Didot Frères, 1851, 532p).

[11] V. Ferrer Correia, A. Lições de direito internacional privado, vol. I. 8. reimp. Coimbra: Almedina, 2015, p. 12.

[12] Dolinger, Jacob. Direito e amor. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 135-136.

[13] Beviláqua, Clovis. Princípios elementares de direito internacional privado, cit., p. 8.

[14] Machado Villela, Álvaro da Costa. Tratado elementar (teórico e prático) de direito internacional privado, t. I (Princípios Gerais). Coimbra: Coimbra Editora, 1921, p. 38.

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