GENJURÍDICO
Crowd Manipulation: o caso GameStop

32

Ínicio

>

Artigos

>

Atualidades

>

Empresarial

ARTIGOS

ATUALIDADES

EMPRESARIAL

Crowd Manipulation: o caso GameStop

COMPRAR AÇÕES

CROWD MANIPULATION

CVM

GAMESTOP

HEDGE FUNDS

INVESTIDORES

PLAYERS

REDDIT

05/02/2021

Gustavo Tavares Borba[1]

Luiza Coelho da Rocha[2]

Verificou-se, nas últimas semanas, movimentação (sem precedentes) de pequenos investidores pessoas físicas que, por meio de fóruns virtuais, alinharam-se para adquirir em massa determinado ativo em que grandes investidores (hedge funds, em geral) estivessem posicionados de forma alavancada para a “venda”, com o que houve uma forte pressão para alta da cotação do ativo, em razão não apenas da aquisição maciça pelos pequenos investidores, mas também, e principalmente, porque essa contundente estratégia de short selling dos grandes investidores demandou a aquisição de quantidades gigantescas de ações pelo preço inflado, para viabilizar o adimplemento da devolução das ações obtidas por empréstimo. Esse cenário gerou prejuízos colossais aos grandes investidores que estavam alavancados para venda (fenômeno conhecido como short squeeze).

O caso mais emblemático aconteceu com as ações da GameStop, companhia americana de jogos eletrônicos que, nos últimos anos, vinha tendo sua cotação desvalorizada[3] pela perspectiva de mudança no mercado de games em direção a um ambiente 100% virtual. Nesse contexto, a análise dos grandes hedge funds era a de que as ações da GameStop tinham tendência de queda, o que fez com que adotassem uma posição vendida alavancada em relação ao ativo (short selling).

Explicando da forma mais simples possível, a estratégia de short selling consiste no seguinte: operadores alugam as ações e as vendem, acreditando que o preço do ativo cairá (viés de baixa), para então, ao final de determinado prazo, comprar de volta o mesmo número de ações por um preço inferior para fins de devolução dos títulos (natureza fungível) aos mutuantes, lucrando com diferença de preços.

No caso da GameStop, percebendo a posição “short” dos grandes investidores, milhares de integrantes de um subgrupo da rede social Reddit organizaram-se para comprar as ações da companhia em massa, com isso gerando rápida elevação da cotação dos ativos, pelas razões já explicadas no início do texto[4].

No Brasil, um fenômeno parecido chegou a se esboçar por meio da criação de grupos organizados pelo aplicativo Telegram que se alinharam para comprar ações da resseguradora IRB em massa para com isso produzir a elevação do preço do ativo em que grandes investidores estavam na posição vendida. Logo depois que o grupo foi criado, a CVM lançou um comunicado[5], no qual alertou que “a atuação com o objetivo deliberado de influir no regular funcionamento do mercado pode caracterizar ilícitos administrativos e penais”.

À primeira vista, pode parecer que a reação de uma multidão de pequenos investidores contrariando as posições de grandes players seria apenas uma espécie de legítima defesa, isto é, uma forma de proteger suas carteiras individuais contra movimentos especulativos de grandes investidores que usualmente “ganham” no mercado de valores mobiliários (cunhou-se até a expressão “revolta das sardinhas” para exemplificar a reação dos pequenos contra os “tubarões”). No entanto, conforme bem apontou o comunicado da CVM, é necessário ter cuidado para que a prática não seja enquadrada no ilícito de manipulação de preços, conduta ilícita tipificada pela Instrução CVM 08/1979.

Ademais, a manipulação em massa pode até ser uma resposta a posições alavancadas de grandes investidores, mas, independentemente de quais sejam as principais contrapartes, gera uma forte distorção no mercado de capitais que poderá ferir muitos outros investidores, uma vez que cria uma bolha de artificialidade que, inevitavelmente, estourará logo adiante, quando a cotação voltar aos indicativos reais ou percebidos. Esse cenário não é, certamente, salutar para um mercado de capitais que pretenda ter funcionamento regular.

Acrescente-se que, superada a novidade, os próprios hedge funds tenderão a acompanhar esses fóruns virtuais, que são públicos, com isso permitindo que os grandes investidores também adiram ao esquema, aumentando, com isso, a insegurança no mercado.

Observe-se que a tipicidade dos ilícitos[6] previstos pela ICVM08 é propositadamente “aberta” para que a atuação de fiscalização da Autarquia possa acompanhar o desenvolvimento das práticas de mercado que, por sua vez, se aperfeiçoam de maneira muito mais rápida do que seria possível atualizar a regulação. Com a utilização de normas abertas, busca-se uma resposta mais eficiente da regulação diante da evolução de realidades dinâmicas, viabilizando, com isso, a punição às novas “roupagens” de antigos ilícitos, por mais sofisticadas que essas novas “roupagens” possam vir a ser[7].

Nesse contexto, a manipulação pela massa de pequenos investidores, embora nunca tenha sido analisada nem até então constatada em nível mundial, poderia vir a ser caracterizada como “nova” modalidade de manipulação de preços, modalidade essa que podemos chamar de “crowd manipulation”, uma vez que demandaria a atuação orquestrada de uma multidão de pequenos investidores, diferentemente do que normalmente acontece, em que o ilícito é promovido por uma pessoa ou grupo pequeno em prejuízo no mercado como um todo[8].

Não nos parece, contudo, que resposta sancionadora seja a mais adequada para as situações de crowd manipulation, por diversas razões, entre as quais a inviabilidade de conduzir um processo sancionador contra milhares de investidores (a maioria anônima nos fóruns de discussão), bem como a extrema dificuldade de se definir quem efetivamente manipulou e quem apenas aproveitou o viés de alta do ativo para nele investir. Gerar-se-ia, com isso, um nível de insegurança que não é desejável ao mercado de capitais, em especial para pequenos investidores.

É preciso ter em perspectiva que a resposta sancionadora não é a única resposta diante de um quadro que possa engendrar irregularidade. O processo sancionador, em conjunto com as atividades de fiscalização, enforcement e orientação, faz parte da regulação lato sensu, cujo principal objetivo é conformar a conduta dos participantes às diretrizes legais e regulatórias.

Desta forma, afigura-se necessário, mais do que investir na perspectiva sancionadora, construir mecanismos que sejam aptos a dificultar ou impedir a manipulação em massa. As regras da B3 que limitam a concentração de posições em aberto para contratos de empréstimo (usados no short selling) de ações é um bom exemplo de mecanismo que seria adequado para minimizar o problema[9].

Outros mecanismos podem e devem ser pensados para minimizar o problema na origem, sem que se passe necessariamente pela atividade sancionadora, que, salvo em situações muito excecionais, não seria a resposta adequada para os casos de crowd manipulation.

Ainda é cedo para interpretar de forma abrangente o fenômeno em tela e apresentar respostas definitivas para a questão, mas já se pode perceber que a resposta sancionadora não parecer ser a mais adequada para equacionar o problema.

Créditos da imagem: Grossmont Center

Veja aqui os livros do autor!

LEIA TAMBÉM


[1] Ex-Diretor da CVM, Mestre e Doutorando na PUC/SP, Sócio do Escritório Tavares Borba Advogados e  Coorganizador do livro “Comissão de Valores Mobiliários – Precedentes Comentados”, publicado em 2020 pelo Grupo GEN.

[2] Bacharel em Relações Internacionais pela PUC/RJ. Estudante de Direito da PUC/RJ. Estagiária do Escritório Tavares Borba Advogados Associados.

[3] Segundo o site Bloomberg, nos últimos 12 meses, a Game Stop teve prejuízo líquido de US $ 275 milhões sobre receita de US $ 5,2 bilhões. Disponível em: https://www.bloomberg.com/opinion/articles/2021-01-25/the-game-never-stops

[4] Mais recentemente, notou-se um aumento no preço da prata depois de um movimento online organizado por investidores associados ao mesmo grupo que deu início à alta da GameStop. Apesar de o mercado de metais estar menos sujeito aos perigos do short selling, a movimentação em massa desses pequenos investidores pressionaram o preço do ativo para contrapor as posições vendidas adotadas pelos grandes fundos de hedge. Segundo a reportagem do Valor Econômico, o preço da prata atingiu a maior cotação em oito anos em 01/02/2020. Disponível em: https://valor.globo.com/financas/noticia/2021/02/02/preco-da-prata-dispara-com-pressao-de-investidor-de-varejo.ghtml

[5] Disponível em: https://www.gov.br/cvm/pt-br/assuntos/noticias/cvm-alerta-possivel-atuacao-irregular-de-pessoas-em-midias-sociais-com-vistas-a-influenciar-o-comportamento-de-investidores

[6] As condutas vedadas pelo inciso I e especificadas no inciso II, da Instrução CVM 08/79, são a criação de condições artificiais de demanda, oferta ou preço de valores mobiliários; a manipulação de preços; a realização de operações fraudulentas; e o uso de práticas não equitativas.

[7] A CVM já decidiu que práticas como o spoofying e o layering, que são “estratégias” de pressão artificial sobre os preços potencializadas pela high frequency trading, apesar de não estarem expressamente previstas na regulação, deveriam ser enquadradas como manipulação de preços (Processo Administrativo Sancionador CVM SEI nº 19957.005977/2016-18, julgado em 13.03.2018 e Processo Administrativo Sancionador CVM SEI nº 19957.006019/2018-26, julgado em 01.10.2019). Ambos os casos foram analisados, por Marcos Proença, no livro “Comissão de Valores Mobiliários – Precedentes Comentados”, publicado pelo Grupo GEN.

[8] Dentre eles, destacam-se: Inquérito Administrativo CVM 26/00; Inquérito Administrativo CVM TA-RJ 2001/6226; Processo Administrativo Sancionador 2001/0236; Processo Administrativo Sancionador 06/01; Processo Administrativo Sancionador 05/01; Processo Administrativo Sancionador 14/00; Processo Administrativo Sancionador 2004/2131; Processo Administrativo Sancionador 06/95; Processo Administrativo Sancionador 2005/7389; Processo Administrativo Sancionador 16/03.

[9] Nesse sentido, ver o item 5.1.2 do Manual de Administração de Risco da Câmara B3. Disponível em: http://www.b3.com.br/pt_br/regulacao/estrutura-normativa/pos-negociacao/. De acordo com o Ofício-Circular 005/2020-VOP de 07 de abril de 2020, o modelo atual da B3 permite estabelecer limites às operações de empréstimo que viabilizam o short selling, de modo que o total de posições em aberto com ações emprestadas não pode superar 20% das ações em circulação da companhia. Disponível em: http://www.b3.com.br/pt_br/regulacao/oficios-e-comunicados/oficios-e-comunicados/#panel5a.

Assine nossa Newsletter

Li e aceito a Política de privacidade

GENJURÍDICO

De maneira independente, os autores e colaboradores do GEN Jurídico, renomados juristas e doutrinadores nacionais, se posicionam diante de questões relevantes do cotidiano e universo jurídico.

Áreas de Interesse

ÁREAS DE INTERESSE

Administrativo

Agronegócio

Ambiental

Biodireito

Civil

Constitucional

Consumidor

Direito Comparado

Direito Digital

Direitos Humanos e Fundamentais

ECA

Eleitoral

Empreendedorismo Jurídico

Empresarial

Ética

Filosofia do Direito

Financeiro e Econômico

História do Direito

Imobiliário

Internacional

Mediação e Arbitragem

Notarial e Registral

Penal

Português Jurídico

Previdenciário

Processo Civil

Segurança e Saúde no Trabalho

Trabalho

Tributário

SAIBA MAIS

    SAIBA MAIS
  • Autores
  • Contato
  • Quem Somos
  • Regulamento Geral
    • SIGA