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Eduardo C. B. Bittar

Eduardo C. B. Bittar

16/03/2021

1) Entre passagem e transição: o período da pré-pandemia e o período pós-pandemia

Antes da pandemia, veio o mal-estar. O diagnóstico sociológico e filosófico desse mal-estar foi mais conhecido pelo nome de pós-modernidade. Esse tema foi alvo da análise de uma grande parte das Ciências Humanas e Sociais, e teria quase passado despercebido no âmbito do Direito. A tarefa contida na obra “O Direito na Pós-Modernidade” (Bittar, 2014) [1] registra a migração dessa preocupação do campo das Ciências Humanas e Sociais à área do Direito. E isso porque os juristas elaboram o sentido jurídico com base no sentido social, de modo que o Zeitgeist lhes serve de pano de fundo (Hintergrund) de suas tarefas.

Hoje, o mal-estar se revela, vem à tona, se coloca por inteiro. De seu prenúncio à sua revelação, é retrospectivamente que podemos compreender a malaise. Da indefinição à definição, da ânsia ao vômito, da vertigem ao tombo, agora tomamos presença da “história das coisas”, e podemos compreender que estamos vivenciando a prolongada passagem do período pré-pandemia ao período pós-pandemia. Nesse iter, tudo parece se desfazer. Na liquefação dissolutória do presente — atribuída pelo sociólogo Zygmunt Bauman aos “poderes de derretimento da modernidade” (Bauman, 2001) — [2], que devasta o “conhecido”, nos entregando ao “ignoto”, inicia-se a história do futuro. Em meio a tantas dificuldades, temos de ser capazes de manifestar solidariedade às diversas vítimas da pandemia, mas, se quisermos avançar, o “desengate” do passado é uma obrigação das atuais e futuras gerações, caso contrário não haverá futuro possível.

2) A inteligência do tempo: transição e vertigem

Se levarmos a sério o que a força do presente abriga nas dinâmicas do sentido, fica claro que qualquer tentativa de construir o “pós” na base do “pré” será frustrada. Ainda nos encontramos na duratividade da pandemia, e de seus efeitos, mas uma coisa já é certa: o “pós” não precisa do “pré” para se afirmar, pois o “pré” causou a dura condição que hoje afeta a humanidade como um todo.

A “peste” é a revelação de que o mundo se encontrava “doente”. Por isso, a mudança urge, pelo chamar dos tempos. Assim, no lugar da atmosfera de “fim da história” — propagada por Francis Fukuyama, no final do século passado —, em sentido contrário, no estado presente das coisas, tudo aponta para um recomeço da história. Agora, evidentemente, em outros termos.

É certo que todo “estado de transição” é um “estado vertiginoso”. Nessa condição, a caricatura do passado já não cola mais sobre os espectros de coisas do presente. A tormenta da transição parece liquefazer o passado, levando à formação precoce de um “museu de coisas do presente”. As bruscas rupturas vivenciadas pela humanidade no passado histórico autorizam afirmar que os embaraços do presente ovulavam no interior dos desvios de rumo do projeto da modernidade.

3) Um repique de sinos: da liberdade à clausura

Numa pequena cidade do interior da França, os sons de um velho monastério medieval soam e um repique de sinos faz evocar o tempo. Os sinos soam e rememoram algo curioso. Na paisagem, sombria e fria, nada ao relento, a não ser o eco dos sinos. No vilarejo, a mensagem é lida apenas como a chamada para a missa católica dominical. Mas o ecos dos sinos faz rememorar que já houve outra forma de vida, por eles guiada. Do ponto de vista histórico, tout à coup, rememora-se que a clausura já foi um modo de vida, se tivermos presente o exemplo da vida monástica medieval. Para os membros das comunidades monásticas medievais, a renúncia à vida exterior significava uma imposição de busca interior. Do ponto de vista moral, essa memória apela ao que perdemos — na vida moderna — no sentido da experiência humanizadora. Essa memória ajuda a criar um contraste histórico, e nos faz perceber de forma estupefata o modo social que nos atravessa.

Durante a pandemia, ao nos voltarmos para nós mesmos, percebemos que nos tornamos estranhos a nós mesmos, habituados demais com o encantamento das coisas. Que o feitiço seja desfeito! Ao homem moderno pode parecer inabitual, contraprodutivo e antinatural o confinamento imposto pela pandemia de Covid-19. E isso porque todo(as) foram lançado(a)s a uma experiência de privação, restrição, confinamento. Da “liberdade” à “clausura” — ou, ao que seriam os termos do momento, ao “confinamento”, ao “distanciamento social”, à “restrição de circulação” —, é pela distância que agora nos damos conta, enquanto sociedade de coisas em circulação, que trabalhamos pelas coisas, ganhamos em função das coisas e circulamos em torno de coisas.

Em certa medida, as coisas têm governado as dinâmicas da vida. E, aos poucos, nos esquecemos de que o sentido é um fenômeno social, e que as dinâmicas da vida dependem das pessoas, devem circular em torno das pessoas e devem estar voltadas para a proteção e o cuidado das pessoas. Trata-se de reinverter o sentido. De forma brusca, os tempos presentes premem a humanidade a um ascetismo — forçado, involuntário e repentino — que, ao menos, pode ser convertido em oportunidade de redescoberta dos labirintos das subjetividades perdidas.

4) A casca da noz: civilização anticivilizatória

Se os sinos ressoam, a casca esconde. Este envoltório duro obscurece o interior para guardá-lo do acesso de intrusos. A “civilização” prometida, hoje, se desvanece no incivilizado da vida contemporânea. E isso porque a “civilização” — tomando o termo civilização na sua acepção mais bem acabada, pela elaboração de Sigmund Freud (Freud, 1997)  [3] —, enquanto termo distorcido na história, e, exatamente por isso, deturpado, não pode conduzir a humanidade à derrocada de sua própria espécie.

Assim, a “civilização” não é aquilo que produz a morte — nem do meio ambiente e nem da humanidade —, mas, sim, aquilo que protege a vida (em todas as suas formas); “civilização” é compromisso [4]. A ação civilizatória, assim, é condizente com os avanços dos conhecimentos e da moralidade, e não se governa apenas pela lógica do avanço tecnológico ou econômico. Assim como o termo “progresso”, conduzido com exclusividade para o terreno econômico, o termo “civilização” tornou-se sinônimo da expansão global do consumismo. Agora, após a ampliação global da lógica das mercadorias, alcançamos a possibilidade da “civilização” nos lançar no domínio da barbárie. Se a barbárie foi expulsa pela porta dos fundos, a “civilização” a reabilitou — no interior da casca de noz, inacessível a tudo e a todos — para reemergir reclamando um retorno inesperado.

5) Não somos dignos do outro: uma ressignificação ética do convívio social

O último ciclo político vivido pelo mundo lançou o planeta no vácuo da ignorância, no lodaçal da divisão política, na espiral de intolerâncias, no encapsulamento do nacionalismo, e, sobretudo, na miopia do ódio político. Daí, o desdobramento dos fenômenos conhecidos por todos(as): a toxicidade das redes sociais, a divisão política do planeta, o abandono dos acordos multilaterais, a polarização política.

As fraturas são tantas, que até o mais antigo espaço de construção dos ideais modernos de liberdade e democracia — o Congresso dos EUA — foi alvo dos ataques ocorridos em 6 de janeiro de 2021. Não se trata de um ataque banal, mas de um ataque a um símbolo, de escala nacional e mundial. É a democracia moderna que é o alvo do ataque, enquanto gesto fúnebre de exaltação do obscurantismo e do autoritarismo. A negação da política democrática é uma negação do diálogo; a negação da política democrática é uma forma de cimentar a discórdia. Mais ainda, é uma forma de afirmar a impossibilidade do consenso, da vida comum, do contato mediado pelas instituições e construído de forma madura. O que se poderia colocar em seu lugar: o monocórdio de uma voz única?

Num certo sentido, a trágica erupção da pandemia de Covid-19, e seus terríveis efeitos em todo mundo, traz algo para a compreensão do modo assustadoramente antissocial de socialização que se vinha adotando. Ao desfigurar o rosto do outro, na construção de estereótipos sociais que financiavam a construção do “outro-inimigo”, surge a repentina interrupção. Ela tem a força de estagnar as pretensões do presente. Mais forte do que o presente, ela interrompe a marcha em curso. Nisso, a pandemia de Covid-19 nos fez descobrir algo da mensagem encriptada — tal como já se pôde assinalar no artigo intitulado “Coronavírus: uma pandemia para rever as patologias sociais do cotidiano” (Bittar, 2020)  [5] —, que começa a se desvelar aos nossos olhos, já transcorridos 12 meses de sua persistente e impiedosa presença: nos termos atuais, não somos dignos do convívio com o outro!

6) Miséria moral, opacidade do outro e desorientação política

Os modelos tóxicos de socialização que acabamos por construir sepultam a possibilidade de formas de socialização saudáveis. A esfera pública, de repente, converteu-se de um lugar de trocas racionais e enfeixadas em debates públicos sobre o interesse comum — adotando-se aqui o sentido do termo öffentlichkeit empregado pelo filósofo alemão Jürgen Habermas (Habermas, 1984)  [6] —, num charco pantanoso de projeção de mentalidades distorcidas, num lugar de depósito de imagens rudimentares da vida comum e, com isso, de celebrização do obscurantismo.

O modelo de socialização imperante nos arrasta para uma forma de socialização tal que o outro é alvo de: ódio; dissídio; desavença; descrédito; desprezo; intolerância. Mas, quem é o outro? “Não sei quem é o outro, mas já não gosto!”. Nesse padrão de socialização, erguemos muros onde podiam estar sendo construídas pontes. Na impossibilidade do estar-com, formou-se o estar-sem. Se não merecemos o outro — o contato com o outro, o convívio com o outro, a troca com o outro, a construção com o outro, o aprendizado com o outro, e, inclusive, a aceitação da diferença do outro — então, sobra-nos uma única alternativa: a privação do outro.

A dura experiência do presente mostra que é pela privação do outro que iremos ­revalorizar o sentido da experiência com o outro. Assim, o lockdown, o confinamento, o distanciamento social, a restrição de circulação, o toque de recolher são os “nomes próprios” das coisas, em tempos de reaprender a conviver com o outro. Somente nos tornaremos dignos do outro quando novamente voltar a surgir entre nós a capacidade de ver que no outro (visage) resplandece a própria responsabilidade para com a intersubjetividade da vida. Nesse ponto, é de decisiva importância retomar e fazer eco às palavras do filósofo Emmanuel Lévinas: “O Eu diante do Outro é infinitamente responsável” (Lévinas, 1993) [7].

7) A retomada verde: uma rota de convergência com o futuro

Se o “discurso preservacionista” não serve mais, é porque agora temos um dever ainda mais amplo e maior: regenerar o solo, a água, o ar. A tarefa é clara: rewild the world. Em face da mortificação dos habitats, devemos reflorestar. Somente após essa tarefa ser cumprida, a natureza se ocupará do resto, ou seja, a sua recomposição. Ao dar lugar à biodiversidade, abandonaremos o especismo que nos confinou nesse “beco sem saída”. Uma ética de meios tem de se aliar a uma ética de fins, para que se obtenha uma reversão histórica na forma como nos relacionamos com o mundo natural. E isso não por outro motivo, senão pelo fato de que a vida forma um ciclo.

Assim é que o “discurso da restauração” deve ocupar o lugar do “discurso da preservação”, se não for pela razão mais imediatista que decorre do simples egoísmo de querermos proteger as nossas vidas, que seja por uma razão moral que nos impõe um dever voltado ao futuro de nossa própria espécie. A continuação virá se conseguirmos re-fundar os conceitos e as práticas que embasam economia, indústria e consumo, numa cadeia cíclica, para colocá-los numa rota de convergência com o futuro do planeta.

8) Em defesa da humanidade: respeito, dignidade e justiça

A “civilização do ter” criou o vazio, quando nada parece fazer sentido; a pobreza, quando o desperdício rodeia; a desigualdade extrema, quando o acúmulo nunca tem fim; a fome, quando as safras são incineradas. Tudo isso deixa profundas cicatrizes. A cura destas cicatrizes implicará um trabalho de reconstrução de laços do sentido social e das promessas da “civilização”, a exemplo do liberté, égalitéfraternité.

O presente pandêmico impôs o auxílio emergencial, mas o futuro planejado reclama pela renda mínima universal. E isso porque a dignidade humana não é um princípio abstrato, ou uma lisonjeira concessão da “civilização”, em seu movimento trôpego e disfuncional. Não é, muito menos, um adereço da lógica dos direitos. A dignidade humana é “…princípio jurídico por onde passa um rosto humano…”  [8]. Por isso, liberdade, igualdade e fraternidade podem sobreviver como valores importantes; também respeito, dignidade e justiça têm a chance histórica se encontrar, anelando esforços por uma sociedade mais livre, igualitária, diversa, justa, pacífica e solidária.

FONTE: CONJUR

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[1] Consulte-se Bittar, O direito na pós-modernidade, 3.ed., 2014.

[2] Cf. Bauman, Modernidade líquida, 2001, p. 13.

[3] “…A palavra civilização descreve a soma integral das realizações e regulamentos que distinguem nossa vidas das de nossos antepassados animais, e que sevem a dois intuitos, a saber, o de proteger os homens contra a natureza e o de ajustar os seus relacionamentos mútuos” (Freud, O mal-estar na civilização, 1997, p. 42).

[4] O sociólogo Zygmunt Bauman, comentando Sigmund Freud, afirma: “A civilização – a ordem imposta a uma humanidade naturalmente desordenada – é um compromisso, uma troca continuamente reclamada e para sempre instigada a se renegociar” (Bauman, O mal-estar da pós-modernidade, 1998, p. 08).

[5] Bittar, Coronavírus: uma pandemia para rever as patologias sociais do cotidiano, in CONJUR, 08 de abril de 2020, https://www.conjur.com.br/2020-abr-08/.

[6] Habermas, Mudança estrutural da esfera pública: investigação quanto a uma categoria da sociedade burguesa, 1984, p. 15.

[7] Lévinas, Humanismo do outro homem, 1993, p. 53.

[8] Carvalho, Dignidade humana e ordem jurídica do desejo, in Amor e justiça em Lévinas (Amor e justiça em Lévinas, Junior, Nilo Ribeiro; Aguiar, Diogo Villas; RIAL, Gregory; CARVALHO, Felipe Rodolfo de, orgs.), 2018, p. 36.

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