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Bruno Miragem

Bruno Miragem

18/03/2021

Pode soar estranho cogitar sobre um cenário pós-pandemia no instante em que ela atinge seu auge em termos de perdas humanas e sacrifícios de diversas ordens. O Brasil aproxima-se, em ritmo acelerado, dos trezentos mil mortos; o empobrecimento da população – motivado pela Covid-19 e outros tantos desacertos, dá conta, neste início de 2021, de cerca de 27 milhões de brasileiros na miséria;[1] a disparada da inflação reduz sensivelmente o poder de compra dos consumidores, avivando recordações de momentos da economia brasileira que se imaginava terem sido superados há décadas; as crianças e jovens estão fora da escola, dentro da estratégia para conter o ritmo de contaminação pelo vírus, mas cujo custo para o seu desenvolvimento intelectual e afetivo ainda está para ser dimensionado; os laços de solidariedade social, inerentes a qualquer nação, estão desgastados como nunca, reféns de ódios e paixões; e para além de tudo, mais grave,  a falta de perspectivas de superação deste estado de coisas. Há uma tragédia sanitária sem precedentes, mas ela revela, igualmente, uma tragédia ética e social.

Qual o sentido, então, de falar-do direito do consumidor em um horizonte futuro, de quando for superada a pandemia (espera-se que com vacina de qualidade para todos)? Justifica-se o propósito do texto. No último dia 15 registrou-se o dia mundial do consumidor; quatro dias antes, os 30 anos de vigência do Código de Defesa do Consumidor. No direito brasileiro, não é o marco apenas de uma nova lei, mas de uma disciplina jurídica nova e, porque não dizer, de uma significativa transformação dos usos e costumes negociais – promoveu uma renovação e evolução cultural nas relações de consumo no Brasil. Como já se afirmou inúmeras vezes, é um marco civilizatório do mercado de consumo e da sociedade brasileira.

Também a realidade mudou. Nestes intensos 30 anos conquistou-se a estabilidade da moeda, privatizaram-se amplos setores da prestação de serviços públicos, desenvolveu-se a internet e outras tantas novidades tecnológicas, criou-se novas formas de executar e uma série de tarefas, o mundo se tornou mais próximo e, de repente, passamos a enfrentar a pandemia. Em termos históricos, será um divisor de águas. Ela demonstrou o melhor e o pior das pessoas, escancarou deficiências das instituições e a fragilidade do nosso sistema econômico. Deve expor mais brasileiros empobrecidos às agruras do subconsumo (reforçando o valor de assegurar, pelo direito, padrões mínimos de qualidade). Seguramente, transforma o mercado de consumo e, por consequência, o direito do consumidor e seus desafios.[2] Tudo isso é que anima fazer um breve inventário daquilo que já se permite perceber sobre este futuro.

O apogeu do consumo digital

O que parecia uma consequência inafastável do avanço da tecnologia da informação, acelerou-se com a pandemia: o consumo pela internet – o comércio eletrônico – passou a contemplar uma série de produtos e serviços tradicionalmente oferecidos no mundo físico. O distanciamento social fez com que a aquisição de produto mais diversos, consultas médicas e com uma série de outros profissionais, serviços de educação, encontros e congressos profissionais, dentre outros, passassem a ser realizar pela internet. Há tele-entrega de quase tudo, embora não acessível a todos. A agilidade do fornecimento e o conforto de adquirir e receber em casa, rivaliza com as dificuldades no caso de desacertos negociais, a crescente automatização das contratações, a reclamação de vícios de produtos e serviços, ou ainda problemas de conexão (em especial para quem não contratar planos com melhor velocidade e dados). A equação de vantagens e desvantagens permite perceber a tendência de que muitas destas atividades que passaram a se realizar pelo meio digital, prossigam assim no pós-pandemia.

O desafio da informação ao consumidor, neste caso, se renova. O consumo não deixa de ser a distância e, pelas características da internet, o que e como informar previamente ao consumidor reclama estratégias relativamente sofisticadas. Mais do que nunca, informar bem, esclarecendo o consumidor, não é informar tudo, mas o que é relevante, de acordo com as peculiaridades do meio. Já se identificou que a leitura integral dos termos de uso das principais aplicações de internet levaria algumas horas, razão pela qual, os consumidores simplesmente não leem.[3] Por outro lado, mesmo ofertas mais simples, como as de produtos adquiridos em grandes plataformas, raramente trazem consigo, para fácil entendimento do consumidor, todas as informações definidas no art. 31 do CDC. Alguns defendem, frente ao excesso de informação, a busca de alternativas para sua simplificação,[4] o que é em tudo razoável, ainda mais se tratando da internet, onde o propósito deve ser o de esclarecer, de modo que muita informação ou a forma como se apresente, pode terminar por esconder o essencial e confundir. Outros vem sustentando, aqui e ali, que existiria um dever do consumidor de se informar. As dificuldades práticas e jurídicas de se admitir esta espécie de dever ao consumidor não apenas enfrenta o óbice jurídico óbvio do reconhecimento legal da vulnerabilidade (art. 4º, I, do CDC), mas, sobretudo, a dúvida prática de qual comportamento seria exigido do consumidor na internet, na busca de informações. Não se deixa de considerar também os desafios regulatórios e concorrenciais envolvidos, especialmente em relação às grandes plataformas. O exame destas várias questões, contudo, não caberiam neste artigo.

Ainda na internet, merecerá cada vez mais destaque a proteção da criança. Não apenas na perspectiva tradicional (em relação à publicidade abusiva e clandestina), mas em relação à própria qualidade dos conteúdos acessíveis (que afinal são serviços, nos termos do art. 3º, §2º, do CDC), e os riscos de contratação indesejada (mesmo sem capacidade jurídica, crianças acumulam habilidades no uso da internet, ainda que sem discernimento), bem como os que decorram do acesso indevido e vazamento de dados que afetem, entre outros interesses, sua segurança e privacidade.

Nova visão do consumidor sobre riscos e os produtos e serviços para enfrentá-los

Absolutamente ninguém poderá dizer que antecipou, sequer minimamente, as repercussões da pandemia sobre a vida cotidiana. O risco de um evento desta magnitude, ao ter passado desapercebido, provoca uma reordenação de prioridades – tanto no plano pessoal (o que afinal é de fato essencial na vida?), quanto nas decisões de consumo. Qual o valor de um plano de assistência à saúde em uma situação de emergência sanitária? Podendo voltar atrás, teria o consumidor assumido um financiamento de longo prazo para adquirir um produto de certo valor, mas cuja utilidade se mostrou supérflua durante o longo período de distanciamento social? É bastante possível que dentre as repercussões da pandemia se reordene para muitos a relação com o tempo, tema que vem merecido interessantes abordagens da nossa doutrina mais recente.[5]

Assim, por exemplo, dentre as noções de crédito está a de antecipação do futuro. Quem “compra a crédito” ou simplesmente “toma crédito”, dispensa o tempo da poupança e para logo despende, suportando os juros. A sociedade de consumo se apoia no crédito, afinal há o estímulo que se consuma o que não se tem, de imediato, recursos para adquirir. O dinheiro que afinal sustenta o crédito é, geralmente, tempo do trabalho do consumidor.

Trata-se de saber se essa nova relação com o tempo pode estimular o crédito responsável, tanto como comportamento das partes da relação de consumo, quanto de novas medidas legislativas de proteção e alívio aos consumidores cuja vida se inviabilize pelo excesso de endividamento.[6] Não se desconhece os riscos, naturalmente, do “consumo de vingança” (“revenge spending”), associado à recompensa emocional pelos sacrifícios do período, tão logo se levantem as restrições das atividades econômicas em geral. Também aí o comportamento dos fornecedores importará, uma vez marcado pela ansiedade em retomar o ritmo anterior à pandemia, deverá equilibrar-se para não contribuir com uma espiral de facilitação do crédito e consequente crise de inadimplência, repetindo a história.

Ainda no tocante aos riscos, retoma-se com força a temática dos riscos do desenvolvimento. A velocidade com que se desenvolve o conhecimento torna cada vez mais veloz a mudança do estágio da ciência e da técnica do momento em que o produto ou serviço foi colocado no mercado (arts. 12, §1º, III, e 14, §1º, III) e de quando se revela o risco de dano.[7] Aí está o debate sobre a vacina, que não é novo (é evidente que as vacinas, assim como os medicamentos em geral, podem ter efeitos colaterais; apenas não podem superar os benefícios que oferecem à saúde, o que se avalia em termos qualitativos e quantitativos). Mas também se discute no campo da segurança da informação, da proteção de dados pessoais e da segurança alimentar, por exemplo. Sendo possível descobrir só depois de colocado no mercado, que certo produto ou serviço oferece riscos que não eram possíveis identificar antes, porque não havia conhecimento disponível para tanto, quem deve responder pelos danos ao consumidor? Há caminhos possíveis entre os extremos da irresponsabilidade do fornecedor pelos danos causados por produtos e serviços pelos quais, afinal, obteve ganhos, e a hiper-responsabilização que possa inibir a inovação? Parece-nos que sim, mas a construção de modelos neste sentido deverá merecer atenção dos juristas com os pés fincados na realidade, em conjunto com todos os envolvidos.

A revalorização do relacionamento entre fornecedor e consumidor

As dificuldades naturais de acesso ao fornecedor para solução de problemas (vícios e desacertos negociais), acentuaram-se com a pandemia. Os tradicionais serviços de atendimento remotos, já questionados sobre sua eficiência em tempos normais, ou foram aperfeiçoados ou viram aprofundarem-se as críticas. Por outro lado, uma série de contratos de consumo deixaram de poder ser cumpridos. A impossibilidade superveniente e irresistível afastou o inadimplemento imputável aos fornecedores. Alguns setores, inclusive, foram socorridos por legislação de emergência, como foi o caso do transporte aéreo (Lei 14.034/2020) e dos serviços turísticos, eventos e de entretenimento em geral (Lei 14.046/2020). Para além destes, vários prestadores de serviços, de diferentes portes, simplesmente foram impedidos de cumprir, pelos fatos, ou pelas restrições impostas às atividades econômicas em geral.

Todavia, para além do cumprimento ou não, destaca-se o modo como estas dificuldades foram compartilhadas entre o fornecedor e o consumidor. O nível de informação e cuidado dos fornecedores em relação aos seus consumidores neste tempo de dificuldades extremas – mesmo no caso em que a lei permitiu não cumprir – revaloriza para além da prestação principal do contrato, os notórios deveres anexos decorrentes da boa-fé, no que parece uma tendência para o futuro. Frente às dificuldades, a agilidade na resposta, o cumprimento de prazos acordados, o esforço para reduzir as adversidades decorrentes da impossibilidade de prestar e, não raro, a mais básica cortesia no relacionamento, são diferenciais que revalorizam a relação de consumo como um todo, não tomando em conta apenas seu produto ou serviço contratado. E o inverso é verdadeiro: fornecedores que na pandemia deixaram de cumprir e, protegidos ou não por normas de emergência, também deixaram de atender outros deveres de lealdade, cooperação ou informação, não apenas cometem danos ao consumidor, mas comprometem sua reputação para o futuro. Em outros termos: haver problemas na relação de consumo é um risco inerente a elas; o modo como o fornecedor se comporta para solucioná-los é que passa a ser cada vez mais valorizado. É o que se vê durante o período da pandemia, e deve seguir após sua superação.

Tome-se o propósito de tratar do futuro pós-pandemia – ao menos alguns dos seus aspectos atinentes às relações de consumo – antes como uma mensagem de esperança no futuro. O direito do consumidor fez-se em proteção da vida, da saúde e da integridade dos consumidores (“somos todos nós”). Em um momento de risco a estes interesses, antever o futuro ali adiante, também nos dá fibra para enfrentar o presente.


[1]https://www.correiobraziliense.com.br/economia/2021/03/4910663-desgovernado-devido-a-pandemia-da-covid-19-brasil-mergulha-na-pobreza.html

[2] Alguns dos impactos da pandemia sobre o direito do consumidor já foram notados em artigo publicado pela diretoria executiva do Brasilcon no final de 2020: Fernando Rodrigues Martins, Clarissa Costa de Lima, Guilherme Magalhães Martins e Sophia Martini Vial, 2020:Sindemia e resistência do direito do consumidor: https://www.conjur.com.br/2020-dez-30/garantias-consumo-2020-sindemia-resistencia-direito-consumidor

[3]https://www1.folha.uol.com.br/tec/2017/12/1945132-leitura-de-termos-e-condicoes-de-servicos-na-internet-exige-45-horas.shtml; no mesmo sentido: https://www.visualcapitalist.com/terms-of-service-visualizing-the-length-of-internet-agreements/

[4] Vale a referência aqui, ao trabalho mais recente de Cass Sustein, Too much information: Understanding what you don’t want to know. Cambridge: MIT Press, 2020.

[5] Veja-se, especialmente, a professora Lais Bergstein, em sua tese de doutoramento (O tempo do consumidor e o menosprezo planejado. São Paulo: RT, 2019). O professor Marcos Dessaune identifica, de sua vez, um novo dano indenizável, do desvio produtivo do tempo (Teoria aprofundada do desvio produtivo do consumidor. 2ª ed. Edição do autor, 2017), que vem merecendo significativa acolhida jurisprudencial.

[6] Neste sentido, todas as corretas razões largamente expendidas nos últimos anos, em favor da aprovação do PL 3515/2015, que visa atualizar o Código de Defesa do Consumidor, introduzindo disciplina específica para a prevenção e tratamento do superendividamento dos consumidores. Sobre a razões do por que disciplinar o tema, Claudia Lima Marques, Sugestões para uma lei sobre o superendividamento de pessoas físicas em contratos de crédito ao consumo. In: Claudia Lima Marques; Rosângela Lunardelli Cavallazzi, (Coords.). Direitos do consumidor endividado: superendividamento e crédito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006). Para o estágio atual do debate, merecem registro os artigos dos Professores Karen Danilevicz Bertoncello e Leonardo Bessa (https://www.conjur.com.br/2020-jun-24/garantias-consumo-pl-351515-prevencao-tratamento-superendividamento-consumidor) e da Professora Joseane Suzart (https://www.conjur.com.br/2021-fev-10/garantias-consumo-pl-superendividamento-urge-aprovacao).

[7] Com maiores detalhes tratei em: Bruno Miragem, Responsabilidade civil. 2ª ed. São Paulo: Forense, 2021, p. 318 e ss; e Bruno Miragem, Curso de direito do consumidor. 8ª ed. São Paulo: RT, 2019, p. 734 e ss.

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