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Reforma da Previdência (EC nº 103/2019): Inconstitucionalidade da vedação à conversão do tempo de atividade especial em comum

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Reforma da Previdência (EC nº 103/2019): Inconstitucionalidade da vedação à conversão do tempo de atividade especial em comum

ATIVIDADE ESPECIAL EM COMUM

DIREITO PREVIDENCIÁRIO

EC Nº 103/2019

INCONSTITUCIONALIDADE

REFORMA DA PREVIDÊNCIA

TEMPO DE CONTRIBUIÇÃO

João Batista Lazzari

João Batista Lazzari

19/04/2021

João Batista Lazzari*
Fábio Nobre Bueno Brandão**

INTRODUÇÃO

Originalmente, a Lei nº 8.213/1991 em seu art. 57 (redação originária)[1] permitia a ampla conversão dos períodos de atividades especiais em comuns[2], e vice-versa, para fins de concessão de benefícios de aposentadoria por tempo de contribuição ou de aposentadoria especial.

Adotava-se a intuitiva premissa de que, exposto o segurado em seu trabalho à atividades nocivas à sua saúde ou à sua integridade física, fazia jus à alguma espécie de compensação(redução do tempo de contribuição) para fins de aposentadoria, seja esta aposentadoria comum por tempo de contribuição ou aposentadoria especial. Contudo, tal faculdade vem enfrentando restrições cada vez mais severas do legislador, restrições estas que encontraram seu ápice na Emenda Constitucional nº 103/2019.

Inicialmente, com a edição da Lei nº 9.032/1995, instituiu-se a vedação da conversão das atividades comuns em tempo especial, antes expressamente prevista no art. 57, §3º da Lei nº 8.213/1991 e materializada por meio de tabela de conversão prevista no Decreto nº 611/1992. Mais recentemente, com a superveniência da Emenda Constitucional nº 103/2019 (art. 25, §2º), fechou-se o cerco, com a vedação à conversão também dos períodos de atividade especial em tempo comum, para fins de concessão das novas aposentadorias programadas. Com isso, o legislador reformador culminou por excluir totalmente qualquer possibilidade de conversão de períodos de atividades de naturezas distintas, atingindo direta e mais severamente aqueles segurados que tenham exercido atividades especiais por tempo inferior ao exigido para a concessão da aposentadoria especial.

Contudo, no mundo dos fatos, a inovação legislativa não encontra o correlato apoio, na medida em que os segurados que trabalham expostos a agentes causadores de danos à saúde ou à integridade física permanecem sujeitos a estes mesmos efeitos nocivos, ainda que não preencham o tempo mínimo necessário à aposentadoria especial (25 anos). A experiência jurisdicional em matéria previdenciária mostra que grande número –senão a maioria -das demandas cujo objeto seja a concessão de aposentadorias voluntárias pelo Regime Geral de Previdência Social envolve, ao menos em parte, a análise e o reconhecimento de períodos de atividade considerada especial e, consequentemente, seu aproveitamento para fins de acréscimo do tempo de contribuição, do que resulta a evidente relevância da análise da validade da norma restritiva.

Para a realização da investigação foi utilizado o método dedutivo e a metodologia de pesquisa bibliográfica, com a utilização de doutrina e também de texto de lei e atos normativos para a fundamentação do estudo. Considerando, a novidade do tema, não foram localizados precedentes dos Tribunais Superiores envolvendo especificamente tal controvérsia, de modo que a presente pesquisa se concentrará na análise das normas pertinentes, atuais e pretéritas, e no contexto doutrinário e jurisprudencial extraído de discussões análogas.

O conteúdo foi dividido em quatro partes. Inicia-se com uma breve análise das normas questionadas da Emenda Constitucional nº 103/2019. Na sequência, procura-se distinguir a vedação à contagem de tempo de contribuição fictício e a vedação à conversão de períodos de atividade especial em comum. Por último, são buscados fundamentos em recente julgamento do Supremo Tribunal Federal (RE nº 1.014.286 -RG Tema n. 942) que possam ser utilizados para justificar a inconstitucionalidade da vedação da conversão do tempo especial em comum. Na parte final, são apresentadas as considerações sobre o tema estudado, com a perspectiva de serem realizadas novas abordagens após julgamento específico da matéria em Ação Direta de Inconstitucionalidade.

1 A NORMA EM ANÁLISE: EMENDA CONSTITUCIONAL nº 103/2019

O legislador constituinte reformador, em clara tendência restritiva à proteção dos direitos sociais dos trabalhadores, acabou impondo idade mínima à concessão da aposentadoria especial, reduziu o coeficiente de cálculo desse benefício e ainda buscou suprimir toda e qualquer possibilidade de conversão de períodos de atividade especial em comum.

Quanto à inadequação da exigência de idade mínima com requisito para a concessão da aposentadoria especial, CASTRO; LAZZARI (2020, p. 595-596) defendem que: “não se mostra condizente com a natureza dessa aposentadoria (…). Isso porque esse benefício se presta a proteger o trabalhador sujeito a condições de trabalho inadequadas e sujeito a um limite máximo de tolerância com exposição nociva à saúde.” [3]

Os dispositivos da Emenda Constitucional nº 103/2019 que modificaram as regras de concessão, de cálculo e impuseram a vedação do tempo especial em comum, estão sendo questionadas junto ao Supremo Tribunal Federal na ADI 6309:

A Confederação Nacional dos Trabalhadores da Indústria (CNTI) ajuizou no Supremo Tribunal Federal (STF) Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 6309) contra dispositivos da Reforma da Previdência (Emenda Constitucional 103/2019) que criaram requisito etário para a concessão da aposentadoria especial para segurados que trabalham expostos a agentes nocivos à saúde ou à integridade física. O relator é o ministro Luiz Roberto Barroso.De acordo com a confederação, a finalidade da aposentadoria especial é evitar que o trabalhador sofra prejuízos em decorrência da exposição ao agente nocivo por tempo superior ao suportável. O destinatário da aposentadoria especial, nessas condições, não pode aguardar eventual idade mínima, sob pena de ter de permanecer exposto ao risco. Essa exigência, segundo a CNTI, viola o artigo 7º, inciso XXII, da Constituição Federal, que assegura aos trabalhadores urbanos e rurais a redução dos riscos inerentes ao trabalho por meio de normas de saúde, higiene e segurança, e o princípio da dignidade humana, que busca assegurar condições justas e adequadas para a vida do segurado e sua família. “É dever do Estado evitar que o trabalhador continue, deliberadamente, prejudicando a sua saúde e a sua integridade física após o cumprimento do tempo mínimo de contribuição exigido para aposentaria especial”, sustenta.Além de pedir a declaração de inconstitucionalidade dos dispositivos questionados (artigo 19, inciso I; artigo 25, parágrafo 2º; e artigo 26, parágrafo 2º, inciso IV) da Emenda Constitucional 103/2019, a entidade de classe pede arealização de audiência pública para ouvir depoimento de engenheiros de segurança e médicos do trabalho com experiência em ambiente com agentes nocivos.[4]

Para fins de análise do tema central do presente estudo, destacamos inicialmente a norma de caráter transitório contida no art. 25, § 2º da EC nº 103/2019, que possui o seguinte teor:

Art. 25. “Será assegurada a contagem de tempo de contribuição fictício no Regime Geral de Previdência Social decorrente de hipóteses descritas na legislação vigente até a data de entrada em vigor desta Emenda Constitucional para fins de concessão de aposentadoria, observando-se, a partir da sua entrada em vigor, o disposto no § 14 do art. 201 da Constituição Federal.
(…) § 2º Será reconhecida a conversão de tempo especial em comum, na forma prevista na Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991, ao segurado do Regime Geral de Previdência Social que comprovar tempo de efetivo exercício de atividade sujeita a condições especiais que efetivamente prejudiquem a saúde, cumprido até a data de entrada em vigor desta Emenda Constitucional, vedada a conversão para o tempo cumprido após esta data.” (g.n.)

Norma semelhante estabeleceu idêntica vedação também aos servidores vinculados a Regimes Próprios de Previdência Social (art. 10, §3º, fine, EC 103/19), conferindo importante uniformidade ao tratamento de ambos os regimes. Com isso, para a concessão das aposentadorias especiais, exige-se o cumprimento integral dos períodos de tempo exigidos em atividades especiais.

Consequência direta e inafastável disso é que períodos parciais de exercício de atividade especial –independente de sua duração -não ensejarão mais qualquer tipo de proveito ao segurado, especialmente no que se refere ao tempo total de contribuição exigido para sua aposentadoria.

Em última análise, para aqueles segurados que (na maioria das hipóteses) não permaneçam por pelo menos 25 anos em atividades especiais, eventual período de trabalho exposto a agentes prejudiciais à saúde ou à integridade física serão contabilizados exatamente da mesma forma que períodos de atividade ordinária, sem exposição a quaisquer riscos.

2 A VEDAÇÃO À CONTAGEM DE TEMPO DE CONTRIBUIÇÃO FICTÍCIO

A vedação à contagem de tempo de contribuição fictício já existia, como norma constitucional, desde a EC nº 20/98, embora exclusivamente direcionada aos servidores públicos vinculados a regimes próprios de Previdência Social (CF, art. 40, §10). Confira-se:
Art. 40, § 10. “A lei não poderá estabelecer qualquer forma de contagem de tempo de contribuição fictício.
Embora desde antes se aventasse a extensão da vedação aos segurados do RGPS por força do caráter contributivo de tal regime previdenciário (CF, art. 201, caput), foi com o advento da EC nº 103/19 que se inseriu no texto do art. 201 da Constituição Federal um novo parágrafo (§14), estendendo de modo expresso aos segurados do RGPS a vedação à contagem de tempo de contribuição fictício:
Art. 201, § 14. “É vedada a contagem de tempo de contribuição fictício para efeito de concessão dos benefícios previdenciários e de contagem recíproca.”
À parte a salutar finalidade da norma, destinada precipuamente a impedir a inclusão no cálculo das aposentadorias de períodos sem a correspondente contribuição e, assim, reforçar o caráter contributivo dos regimes previdenciários, o legislador reformador foi além e pretendeu dar-lhe um alcance substancialmente maior.
Isso porque, pelo teor da redação conferida ao art. 25, §2º,parte final, da EC nº 103/19, tal vedação serviria também como fundamento à proibição de conversão de períodos de atividade especial em comum, após a data de sua promulgação. Tal restrição, contudo, não pode ser tomada como corolário da vedação ao tempo fictício.
No ponto, mostra-se de todo oportuna a advertência doutrinária ao salientar que a vedação a contagem de tempo fictício não deve ser tomada literalmente, sob pena de se considerar revogados (ou não recepcionados) diversos dispositivos legais amplamente admitidos jurisprudencialmente e que estabelecem a contagem de períodos em que o servidor ou o segurado não se encontram em efetiva atividade como tempo de contribuição, ainda que as condições concretas não só permitam, mas de fato recomendem que aqueles períodos sejam contabilizados.
Confira-se, segundo ROCHA (2020, p.52) as hipóteses em que os servidores não se encontram em efetiva atuação em suas funções típicas, mas que devem ser contabilizados como tempo de contribuição:
Com a EC 20/1998, o §10 do art. 40 passou a vedar o aproveitamento de tempos fictos. Essa vedação não deve ser interpretada como uma regra que deve ser observada de maneira literal, em qualquer situação. Se assim fosse, forçosamente chegaríamos à conclusão desarrazoada de que o art. 102 da Lei 8.112/90 não teria sido recepcionado por agasalhar hipóteses de tempo ficto.Há tempos fictos relacionados com a função pública –por exemplo, quando o servidor está participando de programa de treinamentoregularmente instituído (art. 102, IV); períodos em que o servidor não está exercendo atividade –tempo durante o qual ele está em licença-saúde(art. 103, VII); ou o tempo de prestação de serviço militar obrigatório, no qual há desempenho de tarefas e pagamento de remuneração, mas sobre o qual não são vertidas contribuições.Do ponto de vista previdenciário, seria absolutamente injusto desconsiderar tais períodos para fins de aposentadoria. (…) [5]
De rigor, assim, a correta delimitação do conceito de tempo fictício adotado nas reformas previdenciárias, como revelador de hipóteses em que o acréscimo de tempo decorra de mera ficção contábil sem causa que a justifique. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal não discrepa de tal entendimento, admitindo, em determinadas hipóteses, a possibilidade de contagem de tempo de atividade sem a pertinente contribuição. Confira-se, in verbis:
CONSTITUCIONAL. PREVIDENCIÁRIO. REGIME GERAL DA PREVIDÊNCIA SOCIAL. CARÁTER CONTRIBUTIVO. 119APOSENTADORIA POR INVALIDEZ. AUXÍLIO-DOENÇA. COMPETÊNCIA REGULAMENTAR. LIMITES. 1. O caráter contributivo do regime geral da previdência social (caput do art. 201 da CF) a princípio impede a contagem de tempo ficto de contribuição.2. O § 5º do art. 29 da Lei nº 8.213/1991 (Lei de Benefícios da Previdência Social –LBPS) é exceção razoável à regra proibitiva de tempo de contribuição ficto com apoio no inciso II do art. 55 da mesma Lei.E é aplicável somente às situações em que a aposentadoria por invalidez seja precedida do recebimento de auxílio-doença durante período de afastamento intercalado com atividade laborativa, em que há recolhimento da contribuição previdenciária. Entendimento, esse, que não foi modificado pela Lei nº 9.876/99. (g.n.)3. O § 7º do art. 36 do Decreto nº 3.048/1999 não ultrapassou os limites da competência regulamentar porque apenas explicitou a adequada interpretação do inciso II e do § 5º do art. 29 em combinação com o inciso II do art. 55 e com os arts. 44 e 61, todos da Lei nº 8.213/1991. 4. A extensão de efeitos financeiros de lei nova a benefício previdenciário anterior à respectiva vigência ofende tanto o inciso XXXVI do art. 5º quanto o § 5º do art. 195 da Constituição Federal. Precedentes: REs 416.827 e 415.454, ambos da relatoria do Ministro Gilmar Mendes. 5. Recurso extraordinário com repercussão geral a que se dá provimento. (RE nº 583.834, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ayres Britto, DJ 14.02.2012)
Destaca-se que desde a promulgação da EC n. 20/1998 já vigorava vedação à adoção de requisitos e critérios diferenciados para a concessão de aposentadorias, constante do art. 201, §1º, da CF:
Art. 201, §1º. “É vedada a adoção de requisitos e critérios diferenciados para a concessão de aposentadoria aos beneficiários do regime geral de previdência social, ressalvados os casos de atividades exercidas sob condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física, definidos em lei complementar.” (redação dada pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998)
Esse dispositivo teve modificação de redação pela EC n. 47/2005, que manteve essa regra e incluiu na exceção as aposentadorias da pessoa com deficiência. Com a EC nº 103/19, a aposentadoria especial continuou a ter garantida a aplicação de regras diferenciadas, porém passou a ser prevista a possibilidade de exigência de idade. Confira-se:
Art. 201, §1º. “É vedada a adoção de requisitos ou critérios diferenciados para concessão de benefícios, ressalvada, nos termos de lei complementar, a possibilidade de previsão de idade e tempo de contribuição distintos da regra geral para concessão de aposentadoria exclusivamente em favor dos segurados: (g.n.)(…) II -cujas atividades sejam exercidas com efetiva exposição a agentes químicos, físicos e biológicos prejudiciais à saúde, ou associação desses agentes, vedada a caracterização por categoria profissional ou ocupação.” (Incluído pela Emenda Constitucional nº 103, de 2019)
Igual tratamento foi dado aos regimes próprios, cujas regras estão previstas na Constituição, no art. 40, § 4º com as exceções dispostas nos §§ 4º-A, 4º-B, 4º-C (redação dada pela EC n. 103/2019).A vedação da adoção de critérios diferenciados para a concessão de aposentadoria tem relação com o princípio da igualdade, mas sofre exceção em relação à aposentadoria especial e à aposentadoria das pessoas com deficiência. No caso da aposentadoria especial, ROCHA; SAVARIS (2014, p.191-192) justificam da seguinte forma:
Destina a compensar os segurados que exercem suas atividades em condições ofensivas à sua saúde ou integridade física, a aposentadoria especial decorre de uma exigência do princípio da igualdade e objetiva acautelar o trabalhador contra os efeitos maléficos que podem advir do mero desempenho de sua atividade profissional, propiciando a antecipação de sua aposentadoria.[6]
Nesse contexto, em que pese o teor claramente restritivo das normas instituídas pela EC nº 103/19, não há dúvidas de que a fixação de critérios diferenciados (e.g., tempo de contribuição reduzido) para a concessão das aposentadorias especiais não se mostra intrinsecamente contrária à vedação a contagem de tempo fictício de contribuição.
Resta verificar, assim, se o cômputo parcial de períodos de atividade especial para a concessão não apenas de aposentadorias especiais, mas também de aposentadorias voluntárias ordinárias, também chamadas de programadas, poderia ser validamente suprimido pelo legislador constituinte reformador, sob a justificativa de impedir a contagem de tempo de contribuição fictício. Questão a ser analisada no tópico seguinte.

3 A VEDAÇÃO À CONVERSÃO DE PERÍODOS DE ATIVIDADE ESPECIAL EM COMUM (ART. 25, § 2º, DA EC Nº 103/19)

Como já pontuado, a consequência principal da vedação trazida pelo art. 25, §2º, da EC nº 103/19, é a ausência de qualquer aproveitamento em favor dos segurados (e servidores, face à previsão de regra análoga também para o RPPS) daqueles períodos de atividade especial que não atinjam o tempo mínimo exigido para a concessão da aposentadoria especial (25 anos).
Vale dizer, na prática, tais períodos de atividade prejudicial à saúde ou à integridade física, embora exercidos sob os efeitos dos mesmos agentes nocivos que autorizam a concessão das aposentadorias especiais, serão contados como tempo de contribuição comum, exatamente como aqueles exercidos sem qualquer tipo de exposição nociva. Salta aos olhos a ilegitimidade da distinção.

A uma, por nítida violação à garantia constitucional da isonomia material (CF, art. 5º, caput), na medida em que estabelece tratamento claramente distinto a segurados em situação absolutamente análoga. Como referido, a justificativa para a existência da aposentadoria especial -para a qual se exige idade e tempo de contribuição inferior à regra geral -é a constatação científica de que determinadas atividades expõem a saúde do segurado a riscos exacerbados, legitimando, assim, a instituição de tratamento normativo mais benéfico em seu favor.

Segundo RIBEIRO (2014, p. 33), “a aposentadoria especial é um benefício que visa garantir ao segurado do Regime Geral da Previdência Social uma compensação pelo desgaste resultante do tempo de serviço prestado em condições prejudiciais à sua saúde ou integridade física” (g.n).[7]

Sem a existência de tal discrimen, o benefício seria inegavelmente inconstitucional. Ocorre que este mesmo fator de distinção é verificado não só no caso dos trabalhadores que tenham trabalhado exatos 25 anos em atividades especiais e, por isso, façam jus à aposentadoria especial, mas também daqueles que, expostos aos mesmos agentes nocivos em um dado período, não preencham o requisito temporal para a concessão daquela espécie de aposentadoria. É como se apenas os segurados que se expusessem aos agentes nocivos por pelo menos 25 anos sofressem seus efeitos; o absurdo da proposição é intuitivo, contudo.

As consequências prejudiciais da exposição existem em qualquer período de tempo, variando tão somente no seu aspecto quantitativo. Imaginem-se dois segurados trabalhando na mesma empresa e setor, ambos expostos a agentes nocivos capazes de caracterizar, segundo a lei previdenciária, sua atividade como especial.

Durante tal atividade, ambos sujeitam-se, igualmente, aos efeitos nocivos daqueles mesmos agentes sobre sua saúde, efeitos estes considerados pelo legislador constituinte –originário e derivado–como legitimadores da concessão de aposentadoria especial ao fim de determinado período reduzido de tempo.Contudo, após 24 anos e 11 meses de trabalho sob tais condições, um destes trabalhadores é deslocado para outra função, não exposta aos mesmos agentes nocivos.

No mês seguinte, o outro trabalhador vai até o INSS e obtém legitimamente sua aposentadoria especial, com tempo reduzido de contribuição, em razão exclusivamente dos danos presumidos à sua saúde decorrentes daquela prolongada exposição aos agentes nocivos. O trabalhador deslocado da função, contudo, terá negada a aposentadoria, pois não completados os 25 anos exigidos pela lei.

Todavia, aqui surge a consequência mais importante: mais do que a negativa da aposentadoria especial, este segurado verá aqueles 24 anos e 11 meses de atividade especial computados como tempo comum, sem qualquer acréscimo, muito embora tenha suportado em sua saúde, nesse longo ínterim, os mesmos efeitos nocivos que justificaram a concessão da aposentadoria especial ao seu colega de trabalho.

Tal distinção mostra-se flagrantemente arbitrária e, além de conferir um tratamento indigno ao trabalhador, desconsidera o valor social de seu trabalho, malferindo assim dois dos fundamentos da própria República (CF, art. 1º, III e IV). Ao suprimir a possibilidade de conversão dos períodos de atividade especial em comum, a EC nº 103/2019 instituiu tratamento distinto para segurados em situações absolutamente idênticas, não naquilo que toca à concessão da aposentadoria especial em si, que naturalmente exige o preenchimento integral de seus requisitos (tempo mínimo), mas em relação ao exercício de atividades em condições especiais, com idêntico prejuízo à saúde, independentemente do tempo de tal exposição.

Observe-se que tal é a relevância conferida à proteção da saúde do segurado exposto a atividades consideradas especiais que o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE nº 791.961, sob o regime da repercussão geral (Tema n. 709), assentou que é obrigatório o afastamento do segurado de suas atividades após a concessão da aposentadoria especial. Confira-se, no ponto, a advertência do i. Ministro relator:

Nessa hipótese, a aposentação se dá de forma precoce porque o legislador presume que, em virtude da nocividade das atividades desempenhadas, o trabalhador sofrerá um desgaste maior do que o normal de sua saúde. Dito em outras palavras, o tempo para aposentadoria é reduzido em relação às outras categorias porque, ante a natureza demasiado desgastante e/ou extenuante do serviço executado, entendeu-se por bem que o exercente de atividade especial deve laborar por menos tempo –seria essa uma forma de compensá-lo e, sobretudo, de protegê-lo. (STF, Leading Case: RE 791961, Tribunal Pleno, Rel. Min. Dias Toffoli, DJe 18.8.2020)
Não é preciso maior esforço para perceber que tal desgaste não sobrevém exatamente aos 25 anos de atividade, mas é sofrido gradualmente ao longo do tempo, por todo segurado que exerça atividades especiais. Nesse contexto, a vedação trazida pela EC nº 103/2019 criou o seguinte impasse: a compensação ou proteção objetivada pelo legislador apenas seriam devidas àqueles segurados que se submetessem aos agentes nocivos pelo tempo necessário à concessão da aposentadoria especial; aos demais, embora expostos aos mesmos agentes nocivos –e ainda que por períodos quase tão extensos quanto -nenhuma compensação ou proteção seria deferida.
Como intuitivo, o fato da modificação vir instrumentalizada por Emenda Constitucional, com caráter de norma transitória com valor de lei complementar, não a torna imune ao controle judicial, especialmente em face de princípios que compõem o denominado núcleo duro da Carta Constitucional (direitos e garantias fundamentais), consubstanciando verdadeiras cláusulas pétreas, nos termos de seu art. 60, §4º, IV. Mas não é só a isonomia que restou malferida pela norma em análise.
A duas, por igualmente clara violação ao princípio da proporcionalidade, enquanto fundamento de controle judicial da atuação legislativa, extraído de outra garantia constitucional: o postulado do devido processo legal substantivo(CF, art. 5º, LIV), tal como preconizado pelo Supremo Tribunal Federal, verbis:
O princípio da proporcionalidade –que extrai a sua justificação dogmática de diversas cláusulas constitucionais, notadamente aquela que veicula a garantia do substantive due process of law–acha-se vocacionado a inibir e a neutralizar os abusos do poder público no exercício de suas funções, qualificando-se como parâmetro de aferição da própria constitucionalidade material dos atos estatais. A norma estatal, que não veicula qualquer conteúdo de irrazoabilidade, presta obséquio ao postulado da proporcionalidade, ajustando-se à cláusula que consagra, em sua dimensão material, o princípio do substantive due process of law(art. 5º, LIV). Essa cláusula tutelar, ao inibir os efeitos prejudiciais decorrentes do abuso de poder legislativo, enfatiza a noção de que a prerrogativa de legislar outorgada ao Estado constitui atribuição jurídica essencialmente limitada, ainda que o momento de abstrata instauração normativa possa repousar em juízo meramente político ou discricionário do legislador. (g.n.)(STF, RE 374.981-RS, Min. Celso de Mello, DJ 8.4.2005)

No caso, há especial incompatibilidade em relação aos subprincípios da adequação(relação entre o meio adotado e a finalidade almejada) e da proporcionalidade em sentido estrito(ponderação de interesses).Falta adequação à norma restritiva do art. 25, §2º, da EC 103/19, ao impedir todo e qualquer aproveitamento de períodos parciais de atividade especial, principalmente quando verificado que este mesmo critério distintivo -efeito nocivo de determinadas atividades sobre a saúde do segurado -serve de principal fundamento à própria existência da aposentadoria especial.

Com efeito, inexiste distinção ontológica entre o tempo de atividade especial considerado para fins de concessão da aposentadoria especial e aquele a ser considerado para fins de concessão de aposentadoria voluntária comum, após conversão. Cuida-se, como evidente, de diferença puramente quantitativa. Nesse ponto, o estabelecimento de fatores de majoração do tempo de atividade especial, tal como ocorre desde a edição da Lei nº 8.213/1991 (25/35: 40% para homens e 25/30: 20% para mulheres), já servia como adequado dimensionamento do nível de aproveitamento da atividade, de modo proporcional ao dano causado à sua saúde.

Noutra ótica, se a única finalidade almejada pelo Legislador Reformador é afastar a contagem de tempo fictício–o que se deduz à vista da referência lançada no caput do próprio art. 25 da EC nº 103/2019 -a vedação à conversão do tempo especial em comum também não atende ao critério da adequação da restrição. Primeiro, pois de tempo fictício propriamente dito não se cuida, na medida em que pressupõe efetiva atividade de vinculação obrigatória ao RGPS no período, com as contribuições pertinentes. Segundo, pois, na prática, o cômputo do tempo adicional se faz sentir de igual forma na concessão da aposentadoria especial, com tempo de contribuição também reduzido quando comparado com as aposentadorias comuns.

Finalmente, a restrição em análise também não resiste a um juízo de ponderação de interesses, na medida em que acaba por suprimir substancialmente a tutela previdenciária incidente nos casos de exercício de atividade especial por tempo insuficiente à concessão da aposentadoria especial, equiparando-a àquela assegurada aos segurados em geral, não submetidos aos mesmos agentes nocivos.

Novamente, mostra-se plenamente possível se resguardar adequadamente a finalidade almejada –vedação à contagem de tempo fictício –com a simples manutenção dos fatores de conversão do tempo especial, como existente até então. Nesse contexto, simplesmente não há qualquer justificativa, sob a ótica constitucional, à disparidade de tratamento instituída pela EC nº 103/2019.

4 DISTINÇÃO ENTRE A CONTAGEM DIFERENCIADA DOS PERÍODOS DE ATIVIDADE ESPECIAL E A AVERBAÇÃO DE TEMPO FICTÍCIO (STF RE Nº 1.014.286 -RG TEMA Nº 942)

Dada a novidade do tema, natural a escassez encontrada na jurisprudência acerca da matéria. Contudo, temos por inteiramente aplicável na análise da questão o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal da Repercussão Geral Tema n. 942, pois apresenta elementos com características bastante próximas aos da controvérsia ora em debate.

Com efeito, no Leading Case RE nº 1.014.286 (Tribunal Pleno, Redator do Acórdão Min. Edson Fachin, DJe 24.9.2020), analisou-se, sob o regime da repercussão geral e com base no ordenamento anterior e posterior à EC nº 103/19, a possibilidade de averbação do tempo de serviço prestado em atividades exercidas sob condições especiais, nocivas à saúde ou à integridade física de servidor público vinculado a regime próprio, com conversão do tempo especial em comum, mediante contagem diferenciada (Tema n. 942).

Isso porque, embora antes reconhecido o direito à aposentadoria especial aos servidores públicos (Súmula Vinculante nº 33, STF), decisões posteriores vinham negando o direito à averbação de períodos de atividade especial, seja com base na impossibilidade de contagem de tempo fictício(art. 40, §10, CF), seja com base na inexistência de dever de legislar sobre averbação e contagem de tempo de serviço especial, como se a aposentadoria especial e a contagem diferenciada do tempo especial fossem coisas distintas (nesse sentido: STF, MI 3875 AgR/RS, Relatora Min. Carmen Lucia, DJe 03.08.2011; MI 1208 ED, Relator Min. Ricardo Lewandowski, DJe 16.08.2013).

Embora se cuide de precedente envolvendo servidores vinculados a regime próprio, a tese em julgamento revela contornos absolutamente análogos aquela sob análise: saber se existe o direito subjetivo dos trabalhadores em geral à contagem majorada do período de atividade especial, quando não completado o tempo mínimo para a aposentadoria especial. Nesse contexto, com base no voto divergente do Min. Edson Fachin, assentou-se a seguinte tese, in verbis:

STF, Tema 942.“Até a edição da Emenda Constitucional nº 103/2019, o direito à conversão, em tempo comum, do prestado sob condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física de servidor público decorre da previsão de adoção de requisitos e critérios diferenciados para a jubilação daquele enquadrado na hipótese prevista no então vigente inciso III do § 4º do art. 40 da Constituição da República, devendo ser aplicadas as normas do regime geral de previdência social relativas à aposentadoria especial contidas na Lei 8.213/1991 para viabilizar sua concretização enquanto não sobrevier lei complementar disciplinadora da matéria. Após a vigência da EC nº 103/2019, o direito à conversão em tempo comum, do prestado sob condições especiais pelos servidores obedecerá à legislação complementar dos entes federados, nos termos da competência conferida pelo art. 40, § 4ºC, da Constituição da República”.
Do voto condutor é possível se extrair ao menos duasimportantíssimas premissas, plenamente aplicáveis a matéria em debate.
A uma, afastou-se expressamente a vedação à contagem de tempo fictício como impedimento à contagem diferenciada de tempo de serviço especial.
Confira-se, no ponto, a referência do relator a trecho do voto do e. Min. Roberto Barroso, onde expressamente é afastado tal fundamento:
(…) 9. Entendo que a vedação à contagem de tempo ficto (CF, art. 40, § 10) não proíbe o cômputo diferenciado de tempo de serviço especial, pois de tempo fictonão se trata. O art. 40, § 10, da Constituição, a meu ver, destina-se a proscrever a contagem, como tempo de contribuição, de férias não gozadas, licenças etc., em suma, de tempo não trabalhado. A necessidade de “requisitos e critérios diferenciados” no que diz respeito ao tempo de serviço prestado em condições prejudiciais à saúde e à integridade física decorre da letra do art. 40, § 4º, III, da Constituição.(…)(Voto do e. Min. Edson Fachin no RE nº 1.014.286, g.n.)
Da mesma forma, confira-se o que afirmado pelo e. Min. Marco Aurélio:
“(…) Não se trata de contagem alcançada pelo artigo 40, § 10, da Carta da República, no que preceitua não poder a lei estabelecer qualquer forma de contagem de tempo de contribuição fictício. Em primeiro lugar, o tempode contribuição existe, no caso, estando ligado ao período trabalhado em condições nocivas à saúde. Em segundo, a vedação constitucional abarca a consideração de períodos em que não haja trabalho propriamente dito. Na espécie, há apenas a observância do trato diferenciado previsto, em termos de aposentadoria, quando o ambiente onde são desempenhadas as funções se mostra prejudicial à saúde. Em síntese, não é o fato de o prestador não completar o tempo mínimo para a aposentadoria especial que implicará a perda da contagem do período de forma própria, mitigando-se os efeitos danosos a que esteve submetido. (…)” (trecho do voto do Min. Marco Aurélio, RE nº 1.014.286, g.n.)
A duas, por escancarar a indissociável relação existente entre o direito à aposentadoria especial propriamente dita e à contagem diferenciada do tempo de atividade especial, como facetas de um mesmo fenômeno. Confira-se da ementa do acórdão da citada repercussão geral:
(…) 3. Ao permitir a norma constitucional a aposentadoria especial com tempo reduzido de contribuição, verifica-se que reconhece os danos impostos a quem laborou em parte ou na integralidade de sua vida contributiva sob condições nocivas, de modo que nesse contexto o fator de conversão do tempo especial em comum opera como preceito de isonomia, equilibrando a compensação pelos riscos impostos. A conversão surge, destarte, como consectário lógico da isonomia na proteção dos trabalhadores expostos a agentes nocivos. (…)
Idêntica proposição pode ser extraída também do voto do e. Min. Luis Roberto Barroso no julgamento do MI nº 4204/DF (ainda em curso), ocasião em que deixou registrado o seguinte:
“(…) 10. Por outro lado, ao afirmar que o âmbito do dever constitucional de legislar seria restrito à concessão do direito à aposentadoria especial –não se estendendo à averbação e contagem diferenciada do tempo de serviço –, a Corte trata a aposentadoria especial e a contagem diferenciada de tempo especial como coisas absolutamente distintas, quando, em verdade, uma decorre diretamente da outra.
11. É certo que nem todo servidor que exerce atividades em condições prejudiciais à saúde ou à integridade física ter direito à aposentadoria especial propriamente dita. Isto porque a aquisição do referido direito exige prova do trabalho com “exposição aos agentes nocivos químicos, físicos, biológicos ou associação de agentes prejudiciais”, durante 25 anos (como regra), em caráter “permanente, não ocasional nem intermitente”, tudo demonstrado a partir de “laudo técnico de condições ambientais do trabalho expedido por médico do trabalho ou engenheiro de segurança do trabalho” (arts. 57, §§ 3º e 4º, e 58, § 1º, da Lei nº 8.213/1991). Porém, é fora de dúvida que o tempo exercido nessas condições deve ser computado de forma diferenciada: é o art. 40, § 4º, III, da Constituição que o impõe.Veja-se que o dispositivo nem se refere especificamente à “aposentadoria especial”, e sim a “requisitos e critérios diferenciados para a concessão de aposentadoria”.
12. A atual jurisprudência do Tribunal adota a lógica do “tudo ou nada”: ou o servidor possui tempo integral para a aposentadoria especial ( e.g .: 25 anos), ou de nada valerá o trabalho exercido em condições prejudiciais à saúde e à integridade física por, e.g ., 20 anos. Isto porque o servidor, impedido de contar tal período de forma iferenciada, terá de completar o tempo de serviço necessário à aposentadoria como se tivesse sempre trabalhado em condições não prejudiciais à saúde.
[…]
14. A meu ver, tal interpretação é contrária ao sentido do art. 40, § 4º, da Constituição, que exige justamente a “adoção de requisitos e critérios diferenciados para a concessão de aposentadoria (…) [a]os servidores cujas atividades sejam exercidas sob condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física”. Assim, entendo aplicável o art. 57, § 5 º, da Lei n º 8.213/1991, até porque não há motivo razoável para diferenciar, neste particular, os trabalhadores da iniciativa privada dos servidores públicos, restringindo-se aos primeiros a contagem diferenciada de tempo especial. (…)” (g.n.)
Por outro lado, a despeito do que uma leitura mais apressada da tese firmada poderia sugerir, em momento algum se afirmou que a superveniência da EC nº 103/2019 teria suprimido o direito à averbação de períodos de tempo especial; apenas o teria condicionado a requisitos a serem estabelecidos em lei complementar de cada ente federativo.
Tal condicionamento, contudo, passa longe da legitimidade da total supressão do direito ao aproveitamento de tais períodos promovida pela regra do malsinado art. 25, §2º, da EC nº 103/2019. Afinal, foge ao bom senso imaginar que os Estados e Municípios poderiam validamente prever em lei própria tal aproveitamento –como expressamente ressalvado na tese acima destacada -enquanto norma constitucional vedaria tratamento semelhante a todos os demais segurados do RGPS ou mesmo aos servidores vinculados ao regime próprio da União.
Dada a absoluta similaridade entre os regimes gerais e próprios de previdência promovida pela EC nº 103/2019, inclusive no que toca a inadmissibilidade de tempo fictício, razoável se concluir que os fundamentos adotados pela Corte Constitucional, ainda que em sede de precedente vinculado a regime próprio, sejam igualmente aplicáveis aos segurados do RGPS.
Contudo, talvez o dado mais importante extraído de tal precedente seja o reconhecimento em definitivo de que a contagem diferenciada de períodos de atividade especial –seja para servidores públicos, seja para segurados do RGPS –representa um corolário da garantia constitucional da “adoção de requisitos e critérios diferenciados para a concessão de aposentadoria –seja esta qual for -aos servidores (rectius:trabalhadores)cujas atividades sejam exercidas sob condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física”. Reconhecida a inconstitucionalidade do disposto no art. 25, §2º da EC n. 103/2019, deve ser aplicada a regra do art. 57, §5º da Lei n. 8.213/19918, que foi recepcionada com força de lei complementar pela EC n. 20/1998 (art. 15)[9].
Deve-se, ainda, como consequência tornar-se sem efeito o art. 35, II, da EC n. 103/2019 quanto à revogação do art. 15 da EC n. 20/1998, para que não ocorra um vácuo legislativo quanto à regulação da conversão do tempo especial em comum. Com isso, mesmo após o advento da EC n. 103/2019 poderá ser reconhecida a possibilidade de conversão do tempo especial em comum do trabalho prestado em qualquer período, em observância aos ditames estabelecidos pelo STF na Repercussão Geral Tema n. 942, quais sejam: “preceito de isonomia, equilibrando a compensação pelos riscos impostos” e “consectário lógico da isonomia na proteção dos trabalhadores expostos a agentes nocivos”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este estudo identificou que a Reforma da Previdência levada a efeito pela Emenda Constitucional n. 103/2019 representa um grave retrocesso na proteção social ao trabalhador que exerce atividades nocivas à saúde, na medida em que insere a exigência de idademínima para a aposentadoria especial, reduz os coeficientes de cálculo e impede a conversão do tempo especial em comum após 13/11/2019.Especialmente quanto à norma do art. 25, §2º, da EC nº 103/2019, no que vedada a conversão de períodos de atividade especial em tempo comum, conclui-se bem demonstrada a sua inconstitucionalidade, desprestigiando os postulados da dignidade da pessoa humanae dovalor social do trabalho(CF, art. 1º, III e IV), além de violar os princípios da isonomiae da proporcionalidade, ambos inseridos dentre as garantias individuais fundamentais que compõem o núcleo duro da Carta Constitucional.
Defende-se ainda a aplicação dos preceitos definidos pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da Repercussão Geral Tema n. 942, dada a similaridade entre os regimes geral e próprios de previdência, inclusive no que toca a inadmissibilidade de tempo fictício. Diante desse raciocínio, mesmo após o advento da EC n. 103/2019 poderá ser reconhecida a possibilidade de conversão do tempo especial em comum do trabalho prestado em qualquer período em observância, ao “preceito de isonomia, equilibrando a compensação pelos riscos impostos” e “consectário lógico da isonomia na proteção dos trabalhadores expostos a agentes nocivos”. Espera-se, dessa forma, que o Supremo Tribunal Federal ao apreciar a ADI n. 6309, proposta Confederação Nacional dos Trabalhadores da Indústria (CNTI), possa corrigir as distorções do texto aprovado pelo Congresso Nacional, para afastar: a) a exigência da idade mínima para a concessão da aposentadoria especial; b) a redução do coeficiente de cálculo desse benefício; e c) a vedação a conversão do tempo especial em comum.

REFERÊNCIA DAS FONTES CITADAS

CASTRO, Carlos Alberto Pereira de; LAZZARI, João Batista. Manual de Direito Previdenciário. 23 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020.
LAZZARI, João Batista. et al. Comentários à reforma da previdência, Rio de Janeiro: Forense, 2020.

ROCHA, Daniel Machado da; SAVARIS, José Antonio. Curso de Direito Previdenciário: fundamento de interpretação e aplicação do direito previdenciário. Vol. I. Curitiba: Alteridade Editora, 2014.

RIBEIRO, Maria Helena Carreira Alvim. Aposentadoria Especial: Regime Geral de Previdência Social. 7ª ed. Curitiba: Juruá, 2014.SANTOS, Marisa Ferreira dos. Direito Previdenciário Esquematizado. 7ª Ed. São Paulo: Saraiva. 2017.
SAVARIS, José Antonio. Direito Processual Previdenciário. 6ª ed. Curitiba: Alteridade Editora, 2016.

STF. Notícias: CNTI questiona trecho da Reforma da Previdência que exige idade mínima para aposentadoria especial. 04 de fevereiro de 2020. Disponível em: http://noticias.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=436033Acesso em: 12 out 2020.


*Pós-doutor em Direito e Justiça Constitucional pela Alma Mater Studiorum Università di Bologna -UNIBO/Itália; Doutor em Direito Público pela Università Degli Studi diPerugia -UNIPG/Itália; Doutor e Mestre em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí –UNIVALI/Brasil; Juiz Federal junto ao TRF da 4ª Região; Formador de Magistrados; Professor em Cursos de Pós-Graduação em Direito Previdenciário; Integrante da Academia Brasileira de Direito da Seguridade Social (Cadeira 17) e da Academia Catarinense de Letras Jurídicas –ACALEJ (Cadeira 31).
**Juiz Federal Titular da 2ª Vara Federal de Petrópolis; Pós-graduado em Direito Processual Civil pela Universidade Estácio de Sá.


[1]“Art. 57. A aposentadoria especial será devida, uma vez cumprida a carência exigida nesta lei, ao segurado que tiver trabalhado durante 15 (quinze), 20 (vinte) ou 25 (vinte e cinco) anos, conforme a atividade profissional, sujeito a condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física.(…) §3º. O tempo de serviço exercido alternadamente em atividade comum e em atividade profissional sob condições especiais que sejam ou venham a ser consideradas prejudiciais à saúde ou à integridade física será somado, após a respectiva conversão,segundo critérios de equivalência estabelecidos pelo Ministério do Trabalho e da Previdência Social, para efeito de qualquer benefício.” (g.n.)
[2]“Esclareça-se que a conversão do tempo especial em comum significa considerar o tempo especial como se fosse comum, com o acréscimo assegurado pelo regulamento.” In:SAVARIS, José Antonio. Direito Processual Previdenciário. 6ª ed. Curitiba: Alteridade, 2016, p.591.
[3]CASTRO, Carlos Alberto Pereira de; LAZZARI, João Batista. Manual de Direito Previdenciário. 23 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 595-596.
[4] STF. Notícias:CNTI questiona trecho da Reforma da Previdência que exige idade mínima para aposentadoria especial. 04 de fevereiro de 2020. Disponível em: http://noticias.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=436033Acesso em: 12 out 2020.
[5]ROCHA, Daniel Machado da, inLAZZARI, João Batista. et al. Comentários à reforma da previdência, Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 52.
[6] ROCHA, Daniel Machado da; SAVARIS, José Antonio. Curso de Direito Previdenciário: fundamento de interpretação e aplicação do direito previdenciário. Vol. I. Curitiba: Alteridade Editora, 2014, p.191-192.
[7] RIBEIRO, Maria Helena Carreira Alvim. Aposentadoria Especial: Regime Geral de Previdência Social. 7ª ed. Curitiba: Juruá, 2014, p. 33.
[8] Art. 57, “§5º O tempo de trabalho exercido sob condições especiais que sejam ou venham a ser consideradas prejudiciais à saúde ou à integridade física será somado, após a respectiva conversão ao tempo de trabalho exercido em atividade comum, segundo critérios estabelecidos pelo Ministério da Previdência e Assistência Social, para efeito de concessão de qualquer benefício.”
[9] Nesse sentido, leciona Marisa Ferreira dos Santos: “Na redação dos arts. 57 e 58 do PBPS, vigente quando promulgada a EC 20, a conversão de tempo especial em comum era autorizada pela Lei. Esses dispositivos legais, a nosso ver, em razão do disposto no art. 15 da EC, acabaram por adquirir verdadeiro status de lei complementar, uma vez que somente esta poderá dispor sobre a aposentadoria especial.”SANTOS, Marisa Ferreira dos. Direito Previdenciário Esquematizado. 7ª Ed. São Paulo: Saraiva. 2017, p. 309.
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