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‘Contribuições’: sob esse rótulo, a União pode fazer o que quiser?

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‘Contribuições’: sob esse rótulo, a União pode fazer o que quiser?

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SISTEMA TRIBUTÁRIO

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Hugo de Brito Machado Segundo

Hugo de Brito Machado Segundo

22/04/2021

Nos anos 80 do século passado, já existiam contribuições no sistema tributário brasileiro. Mas elas não eram muito vistas. Como toda anomalia que não é compatível com o paradigma dominante, para usar uma terminologia cara a Thomas Khun, levou um tempo até que fossem reparadas pelos estudiosos habituados a uma visão de mundo que não as incluía: falava-se apenas em impostos, taxas e contribuições de melhoria.

Com o advento da Constituição de 1988, as contribuições ganharam lugar de destaque, sobretudo no que tange ao financiamento da seguridade social. Entretanto, por mais que o texto constitucional tenha dedicado alguns dispositivos a elas, o tratamento normativo da figura ainda era muito lacunoso. Inexistiam, como ainda inexistem, normas gerais veiculadas em lei complementar, diversamente do que ocorre em relação às demais espécies tributárias, às quais o Código Tributário Nacional dedica extenso tratamento. E a doutrina produzida a respeito ainda era muito esparsa.

Coube aos estudiosos da matéria extrair do texto constitucional o que lhes parecia o tratamento adequado, muitas vezes implícito, ou tido como decorrente, do pouco que a Constituição explicitamente dedicava à espécie. No que tange às contribuições destinadas ao financiamento da seguridade social, por exemplo, defendeu-se que deveriam ter como sujeito ativo a autarquia encarregada de gerir as ações de seguridade (INSS), por conta do que dispõem os artigos 194, 195 e 165, §5º, III, da CF/88. Afinal, se a seguridade deveria ser financiada pelo orçamento da União, e também diretamente pelas contribuições indicadas no artigo 195 (Cofins, CSLL…), e se deveria ter orçamento próprio e gestão descentralizada, não faria sentido algum que as contribuições ali referidas fossem cobradas pela União e destinadas à conta única do tesouro, para depois serem repassadas se fosse o caso, à seguridade. Era a tese da “parafiscalidade obrigatória”, importantíssima para permitir um maior controle do destino das contribuições, e evitar que, por meio delas, a União encontrasse fonte de custeio livre do dever de partilha com Estado se municípios, desequilibrando a divisão feita pelo constituinte, de resto essencial à forma federativa de Estado.

Mas o STF entendeu que a União pode cobrar diretamente as contribuições referidas no artigo 195, destiná-las à conta única do tesouro, e isso não invalida a cobrança, pois depois os recursos poderão ser repassados a finalidades ligadas à seguridade social (RE 138.284/CE). O importante seria atender à finalidade, indicada na Constituição.

Daí seguiu-se a admissão de que a falta de lei complementar não impediria a cobrança das exações, pois a remissão ao artigo 146 seria apenas destinada a fazer com que as normas gerais já constantes do CTN, sobre lançamento, decadência etc. fossem aplicáveis à nova espécie (RE 396.266/SC). E, por igual, de que tivessem fato gerador e base de cálculo própria de impostos já previstos na Constituição: afinal, seriam espécie diversa, em face da qual o importante seria tender à finalidade, indicada na Constituição.

Apesar da dimensão da competência tributária assim conferida à União, ainda assim passaram a surgir contribuições que não se encaixavam nela. Foi o caso da contribuição criada pela LC 110/2001, destinada a cobrir o déficit gerado por decisão do STF quanto à necessidade de se corrigirem as contas do FGTS por índices que refletissem a inflação. Finalidade nada relacionada com saúde, assistência ou previdência. Tampouco com interesse de determinada categoria profissional ou econômica, ou com a intervenção na economia. Mas o STF a considerou válida, pois sua finalidade, cobrir o aludido déficit, seria, de algum modo, “social”. Estar-se-ia, assim, diante de uma “contribuição social geral”, válida por conta da finalidade que lhe foi atribuída (ADI 2.556). Note-se a contradição mesmo da expressão, se se pensar que as contribuições, para serem diferenciadas das “de melhoria”, são também conhecidas como “contribuições especiais”, o que evidencia o oximoro de uma “contribuição especial geral”.

Algum tempo depois, exações que não se encaixavam no rótulo de “social geral”, e que tampouco se destinavam à saúde, à assistência ou à previdência, passaram ainda assim, às vezes de ofício, a ser classificadas pelo STF como contribuições. Desta feita, de “intervenção no domínio econômico” (Cide). Figura de perfil muito lacônico, apenas nominada pelo texto constitucional originário, as Cides passaram a ser admitidas pelo STF no caso de atividades econômicas reguladas pelo Estado (combustíveis), mas também de atividades não reguladas (Sebrae), desempenhadas por concessão, ou não, cobradas apenas do grupo sujeito à intervenção (ATP), ou da generalidade dos contribuintes (Sebrae e Incra).

Das várias correntes doutrinárias que propunham perfis diferentes às Cides, o STF acolheu todas (mas para somá-las apenas no que consideravam possível criar), e assim admitiu Cides com praticamente qualquer perfil. Tanto que, mesmo quando criadas pelo legislador com outro nome, chegando a questão ao STF com as partes defendendo teses totalmente diversas (se se tratava de taxa ou tarifa, v.g.), o STF, vendo que não podia dar razão à Fazenda pelos argumentos que ela própria usava, de oficio fundamenta a decisão de convalidação da cobrança batizando-a de Cide. Foi o que se deu com o Adicional de Tarifa Portuária — ATP (RE 209.365/SP). Mas tudo porque haveria uma finalidade a ser assim atendida, indicada na Constituição.

Em momento mais recente, tendo já o constituinte derivado procurado limitar as possíveis bases imponíveis alcançadas por contribuições, definindo-as no artigo 149 da CF/88, o STF reputou válidas contribuições (como a do Sebrae e a do Incra) que não respeitam essas bases, entendendo para tanto que as indicações, no texto constitucional, do que pode ser tributado com tais figuras seriam “meramente exemplificativas” (v.g., RE 603.624 — Tema 325RG). O importante seria atender a finalidade, indicada na Constituição, sendo certo que o reconhecimento da invalidade das exações prejudicaria as ações do Sebrae.

Aliás, apreciando a validade da contribuição ao INCRA, definida pelo Judiciário como Cide sem que em sua criação isso tivesse sido sequer cogitado (tal como no caso do ATP, o rótulo serviu de “tábua de salvação” a posteriori), a Corte Maior entendeu por igual que questões ligadas à desapropriação e à reforma agrária, porque atinentes à função social da propriedade, não deixam de representar uma forma de intervenção na economia. Logo, exação destinada a financiar o INCRA seria Cide (Tema 495).

Se se tiver em conta que praticamente qualquer ação empreendida pelo poder público terá algum reflexo na economia, ou alguma conotação social, praticamente todas elas poderão justificar a criação de contribuições. Mas ainda assim o limite principal seria a finalidade, a condicionar não só a aplicação, mas a própria dimensão do valor cobrado, que não poderia ultrapassar o necessário para atender a tal finalidade. Pelo menos era nisso que parte da doutrina mais entusiasmada com a figura parecia acreditar.

Mas as promessas feitas um dia têm de ser cumpridas. No que tange à contribuição criada pela LC 110/2001, cuja finalidade era sanar o déficit nas contas do FGTS gerado pela decisão do STF que determinou a sua correção, chegou o momento em que as citadas contas foram reequilibradas. A finalidade apontada, portanto, restou atendida. Nesse contexto, se tudo o que se permitiu fazer ao (até então) rígido sistema tributário brasileiro foi “em nome da finalidade”, que seria “o verdadeiro limite” em um Estado social e democrático, seria chegada a hora de aplicar, ou fazer valer, esse limite. Mas não: o STF considerou que a contribuição — que já era “social geral” — poderia atender a outras finalidades sociais ligadas ao FGTS, diversas mesmo daquela apontada quando de sua instituição e que justificou sua cobrança (RE 878.313 — Tema 846-RG).

Se se perguntar, nessa ordem de ideias, qual o limite para tanta abertura, alguma alma iludida ainda poderia responder com o mantra da finalidade. Contribuições se caracterizam pela finalidade. Mesmo no caso da LC 110/2001, atender as finalidades continuaria cogente, elas apenas seriam um pouco mais amplas e elásticas que as inicialmente anunciadas. Mas também nesse ponto, apreciada em conjunto, e não examinada cada decisão isoladamente, se percebe que é ainda mais ilimitada a competência tributária federal para criar contribuições: apreciando a validade da Desvinculação das Receitas da União (DRU), a corte entendeu que não seria “possível concluir que eventual inconstitucionalidade da desvinculação parcial da receita das contribuições sociais teria como consequência a devolução ao contribuinte do montante correspondente ao percentual desvinculado, pois a tributação não seria inconstitucional ou ilegal, única hipótese autorizadora da repetição do indébito tributário ou o reconhecimento de inexistência de relação jurídico-tributária” (RE 566.007).

Ou seja: por mais desviada que seja aplicação do que se arrecada com elas, as contribuições podem continuar sendo cobradas. Não se tornam inválidas quando a própria ordem jurídica determina que serão aplicadas em outros fins. Onde está o mantra da finalidade, “central” à validade da figura e principal limite à sua instituição e ao seu dimensionamento, que justificou toda a abertura feita no sistema ao longo dos anos, com sacrifício de contribuintes, bem como de estados e municípios, por obra da jurisprudência?

Caso se reúnam e costurem todos os precedentes do STF a respeito de contribuições, tentando-se dar ao conjunto alguma continuidade e coerência, percebe-se que as contribuições, hoje, são um rótulo sob o qual a União pode instituir o tributo que o seu legislador desejar. Limites como a legalidade, a anterioridade e o não confisco, por exemplo, ainda precisam ser respeitados, mas os demais, não. Desde que por lei anterior aos fatos, em montantes não excessivos, e seguindo-se uma vacatio legis constitucionalmente imposta de noventa dias, ou, eventualmente, também dos dias que faltarem ao início do exercício seguinte, a União pode tributar o que quiser, quem quiser e como quiser. E isso se os limites que sobraram não forem vistos, em alguma próxima decisão da corte tomada no âmbito do Plenário Virtual, sintonizada com o tema 325 de repercussão geral, como “meramente exemplificativos”.

A jurisprudência precisa ser examinada assim, de modo interligado e amplo, e não apenas com o estudo isolado de cada precedente, relativo a cada tema específico. Do contrário, não se pode aferir se é estável, íntegra e, principalmente, coerente, como exige o artigo 926 do CPC. É preciso fazer isso em matéria de contribuições, para, em dia em que se celebra a memória de Tiradentes, que morreu no contexto de acontecimentos que, em todo o mundo, levaram a humanidade a idealizar limites institucionais mais efetivos ao poder de tributar, meditar-se sobre o que a corte encarregada de garantir esses limites tem feito com eles: aos poucos, gradualmente, permitiu a criação de um rótulo que, tal como uma palavra mágica, é capaz de afastá-los quase todos.

FONTE: CONJUR

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