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Gladston Mamede

Gladston Mamede

13/05/2021

Ele se chama L. e mora aqui em Belo Horizonte. Morada bacana em bairro bacana. Sua sogra pegou Covid, mas não se isolou. Os empregados não foram mandados para casa. Logo, os empregados estavam contaminados. Um deles, diabéticos, ainda luta para sobreviver. Eu sei, todo mundo sabe: o povo fala. Afinal, no fim das contas, a casa inteira se contaminou: L., a sogra, a esposa, a empregada e o empregado que todos sabiam padecer de comorbidade grave: diabético. Não houve preocupação alguma com ele, salvo quando alguém comentou que estava ruim e outro disse que um vizinho, advogado, tinha orientado a família a ajuizar uma ação trabalhista na hipótese de morte: a contaminação poderia e deveria ter sido evitada pelo empregador. Não foi. Pior: ele imprudentemente a causou. Vivo, o empregado não o processaria. Morto, haveria o problema da família e a Justiça do Trabalho.

Como essa novela acabou? Não acabou. O empregado ainda está doente e bem ruim. Queira Deus que sobreviva. L. está preocupado com uma ação e vocifera à boca miúda contra o vizinho advogado que, lhe querendo mal, espalhou essa história de processo trabalhista. Chegou a levar o empregado ao posto de saúde, onde, fiquei sabendo, constatou-se uma grande mancha num dos pulmões.  Está preocupado com uma condenação. Só com uma condenação. Apesar de estarem contagiados com o covid-19, eu os vi, ainda outro dia, na farmácia. Tive ganas de berrar:

– Vocês deveriam estar confinados! Vocês não só estão contaminados, mas estão doentes com a doença e, aqui, colocam a vida de todos em risco.

Não o fiz. Poderia dizer que sou educadinho, civilizado, que revelo comedimento e urbanidade. Mentira. Fui um covarde na afirmação do meu dever de cidadania: denunciar um casal de cafajestes que aceitam que a sua comodidade de ir olhar compras na farmácia – tomar um ar? espairecer? economizar uns trocados do serviço de entrega? escolher mais de perto os produtos que atenderiam às suas necessidades durante a convalescença? – coloque em risco a saúde pública, ou seja, a vida de outras pessoas. Deveria ter procurado um policial, um guarda-civil, o gerente, um agente público de saúde e permitido um reestabelecimento da ordem pública, o que inclui o dever de comportamento ético em relação ao seu estado pessoal de saúde e a saúde dos outros. Tenho vergonha de dizer isso, mas é verdade: eu me acovardei. Mea culpa! Mea maxima culpa. Ideo precor beatam Mariam semper Virginem, beatum Michaelem Archangelum […] orare pro me ad Dominum Deum Nostrum.

É por isso que estamos como estamos. Por cretinismo moral. Cretinismo narcisístico. Não são muitos os que sabem usar a palavra cretino. A maioria usa-a erradamente e, assim, acaba não conseguindo atribuir ao outro a peja correta: canalhas são canalhas (e há demais), cafajestes são cafajestes, imbecis são imbecis, cretinos são cretinos. Haveria truísmo, não fosse o contexto de malversação do vernáculo por que passamos. Cretino é quem padece de cretinismo: perturbação grave do desenvolvimento físico ou intelectual: uma patologia, uma doença; aliás, sintoma resultante de problemas na tiroide. Em sentido largo, esquece-se da tiroide e das perturbações físicas para focar na perturbação intelectual grave. Sim, você já se lembrou de alguns cretinos. Mesmo ele (e já não estou me referindo a L., ao qual voltarei adiante). Ele é um cretino: não entende de nada, não quer entender, segue seu palpite, por mais imbecil que seja e por maiores estragos que cause. Um cretino.

L., no entanto, é um cretino diverso: cretinice moral. Padece de uma perturbação grave em sua estrutura como ser social, como ser humano em comunidade. Não tem ética alguma: manifesta um ethos narcisístico da pior espécie: o tipo de gente que reifica o outro. Como? Reifica? É. De res: coisa, em latim. Os que não mostram muita afeição pelos livros, falam em coisificar. É um neologismo que nasce da ignorância. Há palavra para tomar o outro como um mero objeto, uma coisa: reificar. L. faz isso. Sua esposa, também. Dane-se se o funcionário morrer – desde que ele não seja condenado pela Justiça do Trabalho, é claro. A lógica do cretino moral é servir do outro e, pior, dos outros. E essa má-formação de caráter é sociológica e histórica: está lá, no prefácio de Casa-Grande & Senzala, de Gilberto Freyre: o senhor de engenho que se serve da mulata mas que, diante de sua gravidez (e a ameaça decorrente), manda atirá-la ao fogo das caldeiras de garapa e fica. Não só ouvirá os gritos da infeliz, mas o estouro do feto.

Esse é um lado – ou uma perspectiva – trágica da pandemia de covid-19 no Brasil. E trágico num sentido de raiz: o que é próprio de Dioniso: a divindade dos pairas e da canalha, do caos e da bebedeira, do lodo, do limo, o que é passional e impulsivo: o oposto do apolíneo, da razão, do comedimento. O cretino moral não se compreende como célula no tecido social: não é parte igual, não é um entre iguais. Ele se aparta no olhar, na avaliação e no comportamento: serve-se da comunidade. Pensa: “que adoeçam, que sofram, que morram. Importa-me eu!”  Não é uma falha de tiroide, mas de caráter que, infelizmente, estamos vendo não só em alguns, mas no homem-médio, no comum, ordinário.

Os números inflados da covid-19 no Brasil têm causas diversas. E, em meio a elas, muito cretinismo, nomeadamente intelectual e moral. É nossa grande comorbidade social que permite ao vírus ter esses números assustarores: num só dia, 30% das mortes de todo o mundo. Nós que achamos que dá para passar o sinal, que dá para ficar na fila dupla ou parar em frente à garagem, que não há radar aqui ou acolá, que fazemos retornos proibidos… nós, esses mesmos, nos damos justificativas para colocar em risco a nós e aos outros. L. na farmácia, por exemplo, deveria ter suas amplas e múltiplas razões. No fim das contas, como disse Mário de Andrade – antes de mais nada, um crítico de nós mesmos – a personalidade é um complexo, não um completo. Está lá, em Amar, verbo intransitivo: idílio, entre tantas outras verdades incômodas que nos turtuviam, para ficar ainda em suas letras: nos embaralham a compreensão, turvam a razão.

A pandemia segue e, como nos balcãs, deixamos claro que falhamos como povo, como sociedade e, quiçá, como cultura. Uma falha de desenvolvimento. Não diria que patologia social, porque é demais. Mas, sim, uma falha de desenvolvimento que parte de cima e se espraia por rincões variados da comunidade. A esperança? Que o Brasil, como Minas, sejam muitos.

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