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Liberdade de vontade como fundamento primeiro da responsabilidade penal

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Liberdade de vontade como fundamento primeiro da responsabilidade penal

DEMOCRACIA

ESTADO DEMOCRÁTICO

LIBERDADE

LIBERDADE DE VONTADE

RESPONSABILIDADE PENAL

18/06/2021

Luiz Regis Prado[1]

Luís Roberto Gomes[2]

O conceito de liberdade impacta diretamente a teoria do delito e, consequentemente, a responsabilidade penal, relacionando-se diretamente com a fundamentação, a legitimação e a limitação do poder punitivo estatal.

É determinante para a escolha do Direito Penal que melhor representa certa forma de Estado, quando se pretende regular condutas humanas não pela força, mas pelo Direito, mediante sanções penais. Um Estado totalitário, que ignora a liberdade e trata o homem como ser irresponsável, como instrumento de política criminal, e aplica medidas de defesa social fundadas na periculosidade é absolutamente incompatível, por exemplo, com um Direito Penal, próprio do Estado democrático de Direito, que prima pela liberdade e pela dignidade como valores fundantes, que preexistem à norma constitucional.

Do ponto de vista filosófico, o tema vem sendo tratado desde a Antiguidade, com as mais variadas e díspares posturas, sendo importante ser destacado aqui o pensar kantiano.

Para Kant, a autonomia se explicita por meio do imperativo categórico, em três formulações: o homem deve querer agir segundo a máxima de que a ação possa se tornar lei universal; o ser humano não é uma coisa, não é um objeto que possa ser utilizado simplesmente como meio, porque tem um valor absoluto, de ser um fim em si mesmo; a autodeterminação é expressa na ideia da vontade de todo ser racional concebida como vontade legisladora universal.[3] Para Kant, como ser racional pertencente ao mundo inteligível, o homem não pode pensar nunca a causalidade da sua própria vontade, senão sob a ideia da liberdade, pois a independência das causas determinantes do mundo sensível é a liberdade. A ideia da liberdade está inseparavelmente ligada ao conceito de autonomia, e a este o princípio universal da moralidade, que figura na base de todas as ações de seres racionais, como a lei natural está na base de todos os fenômenos.[4]

A capacidade humana de abertura aos valores é derivada de sua racionalidade e o distingue do sistema cerrado instintivo dos animais, que é vinculado, indefectivelmente, à necessidade natural própria da causalidade. Não que o homem não esteja sujeito a fatores causais, pois está, certamente, mergulhado nas conexões da realidade, é impulsionado por motivos e sentimentos e influenciado por condições pessoais e sociais. Isso, porém, não o impede de criar e de tornar possível e real a ordem jurídica, estabelecendo relações normativas entre os semelhantes, como produto de sua cultura.

A liberdade, no sentido prático, é a independência do arbítrio frente à coação dos impulsos da sensibilidade, aduz Kant. Efetivamente, um arbítrio é simplesmente animal (arbitrium brutum) quando só pode ser determinado por impulsos sensíveis, isto é, patologicamente. Mas aquele que pode ser determinado independentemente de impulsos sensíveis, portanto por motivos que apenas podem ser representados pela razão, chama-se livre-arbítrio (arbitrium liberum). O arbítrio é sensível na medida em que é patologicamente afetado, como o arbítrio humano, porque a sensibilidade não torna sua ação necessária e o homem possui a capacidade de determinar-se por si, independentemente da coação dos impulsos sensíveis.[5]

O homem, aliás, é o único ser capaz de estabelecer normas e de se obrigar a cumpri-las, pois consegue orientar sua conduta a partir de valores, e tem capacidade de escolha entre o que considera valioso ou desvalioso, nas regras de conduta que estatui. Com isso, os mandamentos, proibições e respectivas sanções penais tornam-se plausíveis, com sentido, racionalidade e significação que são impossíveis no mundo da natureza.

Welzel destaca que a presença de um dever-ser obrigatório transcende a existência e tem como correlata a concepção da pessoa como ser responsável. É o polo supremo da teoria jurídica e representa o pressuposto de possibilidade da existência humana com sentido pleno. Enquanto a coação transforma o homem em mero objeto da influência causal do poder, em uma coisa entre outras coisas, a obrigação lhe impõe a responsabilidade pela ordem plena de sentido de sua vida e o converte em sujeito da conformação de sua existência. Obrigação e pessoa responsável, portanto, correspondem-se indissoluvelmente. Em cada obrigação é concebida também a pessoa responsável, a que aquela afeta. Por essa razão, todo mandato que enquanto norma jurídica queira obrigar ao homem, tem que reconhecê-lo como pessoa.

O reconhecimento do homem como pessoa responsável é um pressuposto mínimo que deve cumprir uma ordem social se não quiser simplesmente coagir como poder, mas obrigar como Direito.[6]

A liberdade de autodeterminação conforme a normas, fins e valores é que permite ao homem figurar como destinatário de diretrizes normativas a respeito de seu comportamento no mundo, até porque somente o homem livre pode obrigar-se ético-socialmente e ser responsável pelas consequências que advém da prática de condutas não permitidas. Esta prerrogativa genuinamente humana, essencial para diferenciar o Direito do poder fático que simplesmente coage, é corroborada pela dignidade da pessoa humana e evita o uso do homem como simples instrumento ou coisa.

Observa-se que “na liberdade reside o fundamento primeiro da ideia de responsabilidade e de culpabilidade, sendo que a primeira não existe sem a segunda, ao menos no âmbito penal, e no Estado democrático”[7].

Nessa linha, afirma-se que “a responsabilidade jurídica não tem nenhum sentido senão em relação à liberdade assegurada pelo direito – indissociável da noção de pessoa como ser livre, única capaz de responder por suas ações -, e que vincula reciprocamente os indivíduos”[8]. Em outras palavras, “a evitabilidade individual (poder agir de outro modo), de base ontológica, pressupõe sempre e exatamente a liberdade de poder se comportar de acordo com a norma (liberdade de escolha, de eleição, autodeterminação)”[9]. Assim, refutam-se concepções artificiosas que consideram a liberdade como como uma espécie de ficção ou presunção jurídica, alheias ao real.

Além de representar contradição lógica, viola a dignidade da pessoa humana e o princípio de justiça material punir quem, por transtorno mental, não compreende a ilicitude do que faz; quem age sem consciência real ou potencial da ilicitude; ou quem realiza um injusto penal coagido moralmente, de forma irresistível. Não se pode punir, em suma, quem não tem o poder individual de agir de outro modo, em razão de haver circunstâncias ou condições da realidade que suprimam ou reduzam fortemente a liberdade de vontade.

A capacidade de autodeterminação da vontade humana, a liberdade e a dignidade “constituem bases jurídico-materiais essenciais para a conformação de um Direito Penal que reconheça o homem como ser obrigável e responsável e que queira se impor democraticamente, para a realização da justiça material”[10]. Ou seja, “a capacidade de o homem obrigar-se ético-socialmente de forma livre é fundamental como sustentáculo da responsabilidade penal”[11].

A liberdade de vontade, que é um bem da realidade humana, “é fundada, entre outros aspectos, em como o homem se enxerga de fato, como constrói as relações com seus semelhantes e como são edificadas as estruturas sociais. A liberdade, como diretriz geral da vida humana em sociedade, oferece ao Direito uma estrutura ontológica em face da qual incide valoração que a transforma em conceito jurídico, antes de tudo em conceito jurídico-constitucional. As normas jurídico-penais devem respeitar a concepção do homem como ser livre, capaz de se orientar e de se autodeterminar conforme ao sentido e ao valor, sob pena de contrariarem a visão prática da vida e a concepção constitucional do ser humano responsável”[12].

O Direito estabelecido pelo homem não pode contrariar a imagem que tem de si mesmo como destinatário de normas, cabendo a orientação por essa visão do mundo e a aceitação da ideia da liberdade de vontade – não a liberdade em si mesma – mas como fundamento geralmente reconhecido da autoconsideração do homem.[13] Esta atitude do Direito encontra sua legitimação na prerrogativa que tem a imagem do mundo do homem para a ordem jurídica: a questão decisiva não é se realmente existe o livre-arbítrio, senão a representação que predomina em uma sociedade, a visão do mundo que nela se vive.[14]

Portanto, “de toda a sorte, é certo que não há como ser refutada ou solapada, de maneira convincente, a realidade de que a liberdade é inerente ao homem, e que tem ele autoconsciência da própria liberdade”[15].

O Direito tem partido sempre da concepção do homem como pessoa, como ser responsável, sendo difícil imaginar, inclusive, que não fizesse isso e partisse de uma concepção determinista do ser humano, quando as normas seriam concebidas unicamente como fatores causais de possível influência na conduta dos cidadãos.[16] Porém, isso seria desconcertante e disfuncional, haja vista que o ser humano acredita que é livre e que tem o sentimento da liberdade de poder atuar, em cada momento, de um ou de outro modo, ou seja, de poder se atribuir livremente o fim de sua conduta.[17] Pelo contrário, “a percepção do dado real de que o homem é e se sente livre constitui-se em âncora para o conceito de culpabilidade. Como bem se averba a experiência da vida tem mostrado que o homem pode sofrer coação e influência, mas também que pode a estas resistir. Ainda lhe resta um âmbito de livre determinação”[18].

De qualquer forma, “é certo, porém, que a liberdade humana, como dado real do existir, como expressão de um sentido na ordem social, está na base da construção normativa jurídica, e tem reconhecimento constitucional expresso (Preâmbulo e art. 5º, caput, CF)”[19].

A Carta brasileira de 1988, aliás, “se funda em uma concepção do homem como pessoa, como ser livre e responsável, capaz de autodeterminação segundo critérios normativos. Trata-se de fundamentar o Direito no respeito absoluto à dignidade humana (e liberdade), à sua condição de pessoa (princípio material de justiça de validade a priori), visto ser a base da ordem política e de paz social”[20].

Em um Estado constitucional de Direito, portanto, não se pode prescindir da liberdade de autodeterminação como fundamento essencial da responsabilidade penal, sob pena de descompasso com as estruturas humanas da realidade, de desafinação com a dignidade da pessoa humana e de inobservância da concepção de homem consagrada no texto constitucional.

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[1] Professor Titular de Direito Penal.

[2] Professor de Direito Penal no Centro Universitário Antônio Eufrásio de Toledo de Presidente Prudente. Doutor em Direito (FADISP). Procurador da República.

[3] KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2011, p. 62-77.

[4] KANT, Immanuel.Ibid., p. 109.

[5] KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Trad. Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. 5. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. A534 e p. A 801-803.

[6] WELZEL, Hans. Verdad y limites del Derecho natural. Estudios de filosofia del Derecho y Derecho penal. Buenos Aires; Montevideo: B de F, 2004, p. 119-120.

[7] PRADO, Luiz Regis. Tratado de Direito Penal brasileiro: parte geral (art. 1º a 120). Vol. I. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 587.

[8] Ibid.,p. 587.

[9] Ibid., p. 587.

[10] GOMES, Luís Roberto. Culpabilidade e Constituição: dimensão penal constitucional da culpabilidade. Londrina, PR: Thoth, 2021, p. 83.

[11] Ibid., p. 133.

[12] Ibid., p. 138.

[13] HIRSCH, Hans Joachim. El principio de culpabilidad y su función en el Derecho Penal. In: Derecho Penal. Obras completas. Tomo I. Buenos Aires: Rubinzal – Culzoni Editores, 1998, p. 170.

[14] Ibid., p. 170-171.

[15] PRADO, Luiz Regis, op. cit., p. 599.

[16] CEREZO MIR, José. Obras completas. Derecho Penal. Parte general. Tomo I. Lima: ARA Editores, 2006, p. 881.

[17] Ibid., p. 881.

[18] PRADO, Luiz Regis, op. cit., p. 599.

[19] Ibid, p. 586.

[20] Ibid., p. 601.

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