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O fundo de comércio e sua clientela

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O fundo de comércio e sua clientela

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26/07/2021

REVISTA FORENSE – VOLUME 143
SETEMBRO-OUTUBRO DE 1952
Semestral
ISSN 0102-8413

FUNDADA EM 1904
PUBLICAÇÃO NACIONAL DE DOUTRINA, JURISPRUDÊNCIA E LEGISLAÇÃO

FUNDADORES
Francisco Mendes Pimentel
Estevão L. de Magalhães Pinto

Abreviaturas e siglas usadas
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Revista Forense 143

CRÔNICA

DOUTRINA

PARECERES

NOTAS E COMENTÁRIOS

BIBLIOGRAFIA

JURISPRUDÊNCIA

LEGISLAÇÃO

SUMÁRIO: 1. A importância do conceito de clientela. 2. A clientela – objeto de propriedade. 3. A clientela – situação econômica. 4. A clientela bem econômico. 5. A clientela – aptidão do fundo para ter clientes. 6. A clientela – qualidade da casa comercial. 7. A clientela – objeto de direito do fundo de comércio. 8. Conceito ontológico de cliente e de clientela. 9. A clientela (ou freguesia) não é elemento constitutivo do fundo de comércio. 10. Conceito jurídico de clientela. 11. O direito à clientela. 12. A tese de VIVANTE. 13. Crítica e refutação de MÁRIO ROTONDI. 14. Distinção entre “direito sôbre a clientela” e “direito à clientela”. 15. Irrelevância da distinção. 16. A tese de JEAN ESCARRA. 17. Sua crítica e refutação. 18. O direito de propriedade sôbre a clientela e suas conseqüências. 19. A cessão da clientela. 20. A tese de CARVALHO DE MENDONÇA. 21. A tese de RUI BARBOSA. 22. Apreciação de ambas as teses. 23. Distinção entre turbação de direito e turbação de fato. 24. A interdição de concorrência nas alienações de fundos de comércio.

O fundo de comércio e sua clientela

PAULO DE FREITAS

Da Fac. de Ciências Econômicas da Universidade de São Paulo

  1. ALBERTO MÁRIO FERRARI, comentando recente pronunciamento da Suprema Côrte italiana e em substancioso estudo sôbre “aviamento do fundo de comércio e aviamento da casa comercial”, afirmou que o conceito de aviamento “é o eixo da contrastadíssima teoria do fundo de comércio, um dos mais torturantes em doutrina”1 Fazemos nossa a sua observação, mas aplicada ao conceito de clientela, que ainda está por firmar-se e cuja importância sobreleva à daquele, não só tendo em vista as alienações de fundos de comércio, como também a indenização devida pelo locador ao locatário, em certos casos de perda do “ponto comercial”.
  2. Por muito tempo, conceituou-se a clientela como uma coisa, um bem móvel, um bem imaterial, arrolado entre os elementos incorpóreos do fundo de comércio. Assim juridicamente considerada, tornava-se objeto de direito, de que era titular o comerciante, oponível erga omnes porque a relação jurídica, aí configurada, era a da propriedade. A venda do fundo acarretava pleno jure à da clientela.

Na linguagem da jurisprudência e na dos doutrinadores, falava-se abertamente na venda da clientela, como se verifica no seguinte trecho do voto do ministro PEDRO LESSA,2 no famoso pleito Álvares Penteado versus Companhia Nacional de Tecidos de Juta: “Quando na venda de uma determinada fábrica se inclui a clientela de modo expresso, ou essa cláusula se deduz dos atos e da linguagem das partes contratantes, nenhuma dúvida pode haver acêrca da obrigação da parte alienante de não se reestabelecer de modo que prejudique ao comprador”. RUI BARBOSA,3 na sustentação dos embargos a acórdão do Supremo Tribunal Federal, nesse mesmo pleito, não usou de palavras diferentes: “Se, pois, na descrição do objeto vendido, o contrato não menciona a clientela, é que a clientela não entrou na estipulação da venda, e o vendedor, que a não vendeu, estabelecendo-se de novo, não contravém à obrigação de garantir ao comprador a integridade na posse da coisa vendida”.

A antijurídica tese, que concebe um direito sôbre as pessoas, foi sustentada por notáveis escritores, tanto nacionais como estrangeiros, antigos, e modernos.4 Dentre os nacionais, salientam-se: RUI BARBOSA, na sustentação daqueles embargos, e CARVALHO DE MENDONÇA; 5 dentre os estrangeiros, LYON-CAEN ET RENAULT6 e CESARE VIVANTE,7 que, em artigo doutrinário, desenvolveu o absurdo tema – “A propriedade comercial da clientela”.

Cremos ter sido êste artigo que provocou a reação de escritores italianos contra a desabusada tese, a fim de “mettere in guardia i lettori, e specialmente, tra questi, i giovani; contro le seduzioni, che emanano dell’autoritd e dall’abilità del maggiore fra i commercialisti italiani“.8

MÁRIO ROTONDI, parece-nos, foi o primeiro a combater a antiga tese, à qual deu novo colorido a extraordinária pena de VIVANTE. Em várias passagens do seu “Trattato di Diritto dell’Industria”9 ressaltou-lhe o absurdo, porque “clienti sono persone e, per il nostro ordinamento giuridico, soggetti quindi non già oggetto di diritti”10, e in un ordenamento giuridico in cui imperi il principio della libera concorrenza, di un diritto alla clientela non si può certo parlare”.11

Ante a bem fundamentada crítica (que adiante será examinada), VIVANTE retomou o tema sob o título “Ancora della clientela”,12 desta feita também criticado por CARNELUTTI.

O grande comercialista italiano que, em suas “Istituzioni di Diritto Commerciale”, definiu a clientela como “o complexo de pessoas que se servem habitualmente dos produtos ou dos serviços de um fundo”,13 para enquadrá-la no novo conceito redefiniu-a como “o complexo de relações de direito e de fato, pelas quais o titular de um fundo se assegura o concurso dos clientes”.14

“Não mais, portanto, um complexo de pessoas, mas um complexo de relações, acentuou CARNELUTTI.15 Seja. Renuncio, por brevidade, a qualquer objeção a respeito da exatidão da definição. Contento-me com notar que, assim, o objeto da propriedade se coloca num complexo de relações de direito e de fato. Mas que vêm a ser relações de direito senão relações jurídicas e relações de fato senão relações sociais? Isto quer dizer que, segundo VI” VANTE, também as relações são coisas. Eu não censuro, nem ridicularizo (“nem metto in rediculo“); raciocino. Também a propriedade é uma relação jurídica; logo a propriedade também é uma coisa: incorpórea, entende-se, acrescenta VIVANTE. Urdem-se, destarte, direitos, à propriedade da propriedade e outros, até… ficarem perplexos os moços que o escutam, fazendo-os crer que o direito é uma espécie de magia”.

  1. Tais argumentos e os anteriormente expendidos por MÁRIO ROTONDI, ao que se supõe, calaram fundo no espírito do mestre, que não os contestou. Não assim um dos seus discípulos, GRECO,16 o qual saiu a campo em sua defesa e afirmou que a clientela não é a massa dos clientes, porque seria ingênuo pensar-se que possa haver um direito sôbre ela, mas precisamente uma situação econômica determinada pelo afluxo constante de uma corrente de procura para, uma determinada atividade (“esercizio“). Uma tal corrente de negócios constitui pròpriamente uma coisa, um bem incorpóreo, porque, se de um lado há um valor econômico, de outro se apresenta, embora em proporções reduzidas, o caráter de autonomia e de isolabilidade.

A despeito de apresentada sob novo aspecto, a tese não convenceu. Os próprios autores italianos se incumbiram de mostrar-lhe a inconsistência. Deve-se observar, disseram êles,17 que a existência de um bem é determinada pela tutela jurídica e, assim, não basta dizer que a corrente de negócios tem um valor econômico, mas cumpre demonstrar principalmente que a sua exploração (“sfruttamento“) exclusiva seja atribuída ao sujeito, demonstração que GRECO não oferece, donde a sua indagação resolver-se numa petição de princípio.

  1. Entre os próprios escritores italianos, como se vê, já se procurava um novo conceito jurídico para a clientela ou freguesia do fundo de comércio, repudiado o antigo que a considerava seu elemento incorpóreo; portanto objeto de direito. MÁRIO GHIRON18 inscreveu-se entre os que combatiam a teoria da propriedade, negando à clientela o caráter de bem jurídico, mas reconhecendo-lhe o de bem econômico.

O simples enunciado desta tese, observou CARNELUTTI,19 evidencia, que o êrro cometido em considerar a clientela como um bem econômico, sem qualquer demonstração, se complica e se agrava, ao admitir-se uma distinção entre bens econômicos e bens jurídicos, a qual não pode ser outra coisa se não a distinção entre bens não protegidos e bens protegidos. Mas, se a clientela é um bem econômico e o direito a protege, como não considerá-la um bem jurídico?

  1. Original, também, a tese de CARVALHO DE MENDONÇA20 a respeito, da freguesia, a seu ver fator do aviamento e “outro elemento principal, senão essencial do estabelecimento mercantil”. Doutrina o nosso grande tratadista: “Consiste ela nas relações criadas pela habilidade do comerciante e mantidas pela reputação que souber granjear; supõe o complexo de pessoas, acostumadas a procurar o estabelecimento para os seus negócios. No sentido jurídico, a freguesia traduz a aptidão do estabelecimento para ter clientes, ainda que, realmente, os não tenha: Não há fregueses pròpriamente falando, mas probabilidades de manter as relações a que acima aludimos, atraindo as de pessoas incessantemente renovadas”.

Da lição do eminente comercialista, colhe-se um conceito e a compreensão dêsse elemento do fundo, porque êle não teve em mira defini-lo.

“No sentido jurídico, a freguesia traduz a aptidão do estabelecimento para ter clientes, ainda que, realmente, os não tenha”. Êste o conceito, que se nos afigura estranho.

Comecemos por assinalar que todo fundo de comércio pressupõe a existência de uma clientela. Instalada, todo o esfôrço do comerciante se concentra na conquista da freguesia, “perchè se mancano i clienti, egli può chiudere bottega e cambiar mestiere“, como observou com certa graça FERRARA JÚNIOR.21

Estranha, também, nos parece a sua compreensão sôbre a freguesia de um fundo: “Consiste ela nas relações criadas pela habilidade do comerciante”. Que relações? Indubitàvelmente comerciais, pela qualidade de quem as estabelece e com quem são estabelecidas – “o complexo de pessoas, acostumadas a procurar o estabelecimento para “os seus negócios”. PIPIA,22 ao definir a clientela, faz uso de expressões semelhantes: “La clientela… è il complesso delle persone solite a far affari coll’azienda”.

Cabe aqui um reparo: nem tôdas as pessoas que estão “acostumadas a procurar o fundo para os seus negócios” ou, como diz PIPIA, “solite a far affari coll’azienda“, se incluem no número de seus clientes. A principiar pelos seus fornecedores, que o suprem do necessário para a exploração comercial ou industrial, a que se vota. Também as emprêsas de transporte. E os agentes de publicidade.

Se, realmente, a ciência do direito mercantil é ciência de observação, como VIVANTE deixou transparecer no prefácio à 1ª edição do seu “Trattato”,23 juridicamente considerada a freguesia não pode ser havida como relações entre o comerciante e o complexo de pessoas que lhe procuram o estabelecimento para os seus negócios, mas as próprias pessoas.

Esta compreensão do vocábulo freguesia, que, por ser a comum na linguagem mercantil, não é menos jurídica, colhe-se de trechos do próprio e insigne comercialista, na impugnação dos embargos opostos ao acórdão do Supremo Tribunal Federal, na ação a que nos referimos.24

  1. Ante a dificuldade de um conceito racional e jurídico da freguesia ou clientela de um fundo de comércio, o meio fácil e rápido foi negar-lhe a qualidade de seu elemento. JULES VALÉRY25 abriu o precedente: “a clientela e a “achalandage” não são elementos do estabelecimento comercial, mas simplesmente qualidades – uma da casa comercial, outra do fundo de comércio. Uma casa comercial tem uma clientela mais ou menos considerável, como um indivíduo conta com amigos mais ou menos numerosos. Um fundo de comércio é mais ou menos “achalandé” do mesmo mo” do que um fundo de terra é mais ou menos ” fértil”.

A crítica à tese de JULES VALÉRY não demanda grande argumentação. A freguesia ou clientela não pode ser havida como qualidade do estabelecimento comercial, porque sem ela não se compreende um fundo de comércio. Ao contrário, existe o fundo independentemente do estabelecimento desde que haja clientela. “Todavia”, doutrina VIDARI,26 “a existência de um estabelecimento não é necessariamente subordinada a esta condição, uma vez que há comerciantes que não têm lojas, armazéns, negócios, etc., abertos ao público, seja porque assim lhes apraz, seja porque a espécie de indústria exercitada não o requeira, sem que por isso se possa pôr em dúvida a sua qualidade de comerciante. Em tal caso deve-se admitir que êles têm o próprio estabelecimento no mesmo lugar do seu domicílio ou residência”.

É o caso do comerciante ambulante e de que expõe e vende as suas mercadorias nas feiras-livres.

Um outro ponto inconsistente da teoria de VALÉRY está no paralelo que estabelece entre a clientela de uma casa comercial e os amigos de um indivíduo. Certamente ao autor francês não ocorreu que não se pode compreender um fundo de comércio sem freguesia, mas que é possível existirem indivíduos sem amigos e, mesmo, os misantropos.

  1. GEORGES RIPERT27 também nega, à clientela, a qualidade de elemento do fundo. “Muitos autores consideram a clientela como um dos elementos do fundo de comércio. O êrro nos parece evidente. O fundo nada mais é do que o direito a uma clientela. Se não houver clientela, não haverá fundo de comércio”.

Estamos com o comercialista francês, ao apontar o êrro em que incidem muitos autores, considerando a clientela elemento constitutivo do fundo. Dêle divergimos, ao asseverar que “o fundo não é outra coisa senão o direito a uma clientela”.

Fôsse verdadeira a sua tese, e cada vez que a clientela de um fundo dêle se afastasse e procurasse outro, o titular do fundo poderia constrangê-la a voltar. A todo direito corresponde uma ação que o assegura. Qual a ação de que disporia o titular dêsse direito, para fazê-lo valer em relação ao seu objeto – a clientela?

O próprio comercialista é o primeiro a negar seja a clientela objeto dessa relação jurídica, que tem por sujeito o fundo de comércio. Em outra passagem do seu estudo sôbre o fundo de comércio, diz-nos: “Encontra-se na jurisprudência esta afirmação que a clientela é o elemento essencial do fundo. Os tribunais ficariam bem embaraçados (“seraient bien gênés”) se fôsse necessário definir êste elemento, pois a clienteia se apresenta, sob a forma de uma possibilidade de contratos futuros e renováveis”.

Se o objeto dêsse direito se apresenta “sob a forma de uma possibilidade de contratos futuros e renováveis”, propriamente não se pode falar em direito. Quando muito, em expectativa jurídica, o que não é a mesma coisa.

  1. Em tôda construção jurídica, diz-nos ORLANDO,28 a realidade empírica oferece os dados, porém o fruto científico dêsses dados procede da abstração.

Com apoio no ensinamento do grande escritor e professor de direito público, vamos tentar um novo conceito do elemento humano que é tudo, para a vida do fundo de comércio, mas que dêle, realmente, não faz parte.

Os que habitualmente fazem suas compras num determinado estabelecimento, atraídos pela qualidade dos produtos, moderação nos preços, facilidades de pagamento, trato que lhes é dispensado, etc., quando não pela comodidade resultante de sua localização, formam a sua freguesia ou clientela. “E cliente de uma casa de comércio” – ensina JEAN ESCARRA29 – “quem com ela contrata de maneira habitual. O mais simples exemplo é o da pessoa que, diàriamente, compra o seu pão e a sua carne na mesma padaria ou no mesmo açougue, variando as condições de repetição ou de hábito consoante a natureza do comércio em vista”.

  1. A essa verdadeira, simples, intuitiva conceituação de cliente, deduz-se que a clientela (complexo de clientes) não é elemento incorpóreo do fundo de comércio. Juridicamente, não se pode compreendê-la na mesma situação em que se encontram o nome comercial, o título do estabelecimento, as patentes de invenção, as marcas de fábrica ou de comércio, o “ponto comercial”, etc. Afirmar o contrário é estabelecer uma sujeição entre a clientela e o titular do fundo, é conferir ao comerciante um direito próprio sôbre o elemento humano que o procura para com êle contratar. É desvirtuar o instituto das obrigações no tocante aos princípios fundamentais do contrato.

Quem pretende estabelecer-se, a primeira coisa que faz é escolher local, contratar a locação de adequado prédio, se não o tiver próprio, e nêle instalar o seu equipamento comercial ou industrial, conforme o caso. Adquire, então, de acôrdo com o seu ramo de negócio ou de indústria, as mercadorias ou a matéria-prima a êle pertinentes, contrata os serviços de auxiliares e satisfaz as exigências da lei quanto às suas obrigações profissionais.

A organização está completa, devidamente instalada, pobre ou ricamente aparelhada, conforme o capital ou o crédito de que dispõe, quem a empreendeu, ou o seu ramo comercial ou industrial. Internamente, está perfeita e acabada. Externamente, falta-lhe tudo. Falta-lhe o elemento que lhe dá vida, que lhe faculta a satisfação do seu objetivo, falta-lhe a freguesia ou clientela. Para consegui-la, o comerciante (ou o industrial) publica anúncios, faz propaganda, contrata os serviços de agentes, de acôrdo com o objetivo do seu comércio ou de sua indústria, enfim, tudo faz para atrair, ao seu estabelecimento, o elemento que compra, que paga, que consome, que possibilita, ao titular do fundo, explorá-lo.

Não se pode, pois, negar a preexistência do fundo de comércio em relação à sua clientela. VALERI30 já o disse, em outras palavras: “un’azienda, almeno inizialmente, pud non avere una clientela, mentre ha sempre un avviamento”.

Na Itália, recentemente, a mais alta Côrte de Justiça do país teve oportunidade de pronunciar-se sôbre a renovação do contrato de locação de imóvel destinado a uso comercial, onde apenas se instalara um fundo de comércio. A ementa do aresto31 dá-nos idéia da espécie ali debatida: “Uma vez criada a organização, e mesmo antes de entrar em funcionamento, existe o fundo de comércio e pode ser objeto de relações jurídicas. O contrato de locação, para uso de cinema-teatro, de local provido de instalação elétrica, de máquina de projeção, de assentos para os espectadores e de outros móveis e acessórios, constitui locação de fundo de comércio, mesmo na falta de “insígnia, de clientela, de contratos de fornecimentos de filmes e de outros elementos “integrantes”.

O pronunciamento da Suprema Côrte italiana e a lição de VALERI comprovam a nossa asserção: pelo menos inicialmente, o fundo de comércio existe de per si; a sua organização independe dessa “universitas personarum“, que muitos têm como seu elemento incorpóreo.

Mas, objetar-se-á, se a clientela não é elemento do fundo, pode-se conceber a existência de fundos de comércio sem clientela, o que raia pelo absurdo.

O absurdo, a nosso ver, está na premissa contida na objeção. Para que a clientela fôsse elemento do fundo, seria mister ou concebê-la como objeto de direito, tese hoje em dia, insustentável, ou como uma abstração jurídica, tal como sucede com a propriedade, a herança, o patrimônio, que, por si mesmos, têm vida conceptual.32

  1. “Se não houver clientela, não haverá fundo de comércio”, afirmou acertadamente GEORGES RIPERT, porque a clientela é que lhe dá vida, isto é, possibilita-lhe o exercício de sua atividade lucrativa. De que maneira? Através das relações contínuas que com êle mantém; à procura de bens ou de serviços, consoante definição de MÁRIO ROTONDI33

Tais relações são contratuais. Diàriamente, com êle está realizando o contrato de compra e venda, contrato bilateral ou sinalagmático por excelência, consensual, oneroso e comulativo, na classificação dos autores. Por conseguinte, o cliente de um fundo de comércio, quando se serve de um seu produto ou de seus serviços, na expressão de VIVANTE, é elemento do contrato que entre ambos se forma, e não elemento do fundo.

A clientela ou freguesia é o elemento essencial para a vida do fundo de comércio, como o ar, a luz, o calor, etc., o são para a vida do homem. Ninguém dirá, entretanto, que qualquer dêstes elementos seja parte constitutiva do organismo humano.

  1. Para os que sustentam ser a clientela (ou freguesia) elemento constitutivo do fundo de comércio, a propriedade do fundo abrange a da clientela. Vendido o fundo,

vende-se a clientela, porque não se compreende aquêle sem esta. A clientela, portanto, é considerada uma coisa, um bem imaterial, conseqüentemente, objeto de direito. O titular de um fundo, alienando-o, poderá conservá-la para si ou transferi-la, a título gracioso ou oneroso. Como objeto de venda, tem um valor. Aprecia-se em cifras. É a tese de VIVANTE.

  1. O grande tratadista italiano começou por identificar o aviamento com a clientela.34 Para êle, a clientela é um bem, uma “res“, que constitui elemento de relevância na “azienda“, senão essencial (como anteriormente afirmara), pelo menos conatural, “que é separável do fundo de comércio, e pode ser objeto de regras e de convenções distintas, seja que se divida, seja que se funda ou se transfira a título gratuito ou oneroso”.

“A possibilidade de considerá-la separadamente dos outros fatôres do fundo, de comércio”, diz-nos o comercialista, “como a insígnia, as patentes de invenção, os direitos autorais, é coisa freqüente, e o direito não pode recusar-se a regular também êste fenômeno da realidade. Aquela possibilidade se apresenta quando o proprietário vende o seu armazém, a oficina, o laboratório, e conserva a clientela, com o direito de reestabelecer-se (“droit de se rétablir“); quando o testador deixa a clientela a um filho que continua no exercício do mesmo comércio e divide entre todos os outros herdeiros, em partes iguais, o seu patrimônio; quando uma emprêsa, querendo conservar para si,- por exemplo, sòmente o comércio por atacado, vende separadamente a sua clientela e com as suas circulares e talvez com o seu pessoal coloca-se à disposição do sucessor; quando o liquidante de um fundo de comércio começa por vender-lhe a clientela, reservando-se vender, sucessiva e distintamente, o laboratório, as mercadorias, o equipamento comercial”.

“O aviamento da clientela”, afirma o autor, “forma, pois, um corpo à parte dentro do corpo maior da “azienda“, um corpo determinado por limites precisos, em qualquer momento fugaz (“in ogni fuggevolemomento“), limites essencialmente elásticos (“elastici“), capazes de estender-se e de se contrair…. corpo dinâmico, por excelência, dotado de impulso próprio e organizado em todos os seus elementos em vista de sua expansão, para o qual a “azienda” consagra uma parte do seu patrimônio”.

Entre os elementos corpóreos que a formam, contam-se: registros nominativos dos clientes; fichários com o limite de crédito para cada um, de acôrdo com as necessidades do seu aprovisionamento e as estações; meios de publicidade, etc. Os elementos incorpóreos abrangem: relações jurídicas destinadas a conservar e aumentar a clientela, entre os quais os contratos de crédito concedido aos clientes; a cláusula de renovação tácita dos contratos; facilidades oferecidas ou aceitas, relativamente a determinada freguesia, como a formada por operários ou estudantes, etc.

Esta coisa pode ser objeto de direito autônomo de propriedade. “Apartando-nos de imagens, que mais têm obscurecido que esclarecido êste instituto, a clientela é uma coisa composta de elementos reais e irreais, corpóreos e incorpóreos, uma coisa de caráter misto, que é protegida expressamente pelo direito civil, como tôda coisa móvel. Realmente, êste considera como coisas móveis tôdas as coleções, tôdas as universalidades de fato e simples elementos, mesmo incorpóreos, que as compõem. Dentro da “universitas” maior da “azienda“, a clientela tem um seu lugar como “universitas” menor, distinta e separável da “azienda“. O proprietário, exercendo o seu direito de senhorio, pode separá-la da “azienda” e conservá-la para si, quando cede a sua casa de comércio (“bottega“) e se reserva o direito de abrir uma nova, continuando a própria clientela…”

VIVANTE chega a falar em propriedade comercial da clientela. Para defendê-la, quando o direito, que sôbre ela exerce o titular do fundo, é violado ou ameaçado de violação, procura nas leis processuais adequado remédio para ressarcimento do dano, ou para impedi-lo. Ouçamo-lo: “Ambas as ações35 que acompanham o direito de propriedade, a ação reivindicatória e a ação cominatória (“inibitoria“), defendem a clientela. A primeira pede propor-se quando o titular (“esercente“) de um fundo de comércio a ajuíza com os nomes dos clientes que se passaram para outro fundo. O Cód. de Comércio lhe regula o exercício no caso em que um sócio de responsabilidade ilimitada se estabelece com o mesmo comércio em conta própria, porque em tal caso a sociedade pode considerar-se como explorando em nome próprio o fundo, e reivindica a exploração como sua, com o seu aviamento, com os seus livros, com a sua clientela. O art. 113 atribui à sociedade um direito próprio sôbre a clientela usurpada pelo sócio infiel, autorizando-a a considerar as operações por êle concluídas como se fôssem próprias; a lei as faz reverter “para o patrimônio da sociedade…”36

Em traços gerais, esta a tese de VIVANTE, que, no segundo dos seus artigos doutrinários (“Ancora della clientela”), ante a crítica de MÁRIO ROTONDI, abandonou aquela simbiose jurídica – aviamento-clientela; para usar “semplicemente la parola clientela, sebbene questa parola isolata indichi una situazione statica, che poco si conviene a un istituto essencialmente dinamico, che vive movendosi“.37

  1. Em poucas palavras, MÁRIO ROTONDI38 opôs séria refutação a essa doutrina.

Em primeiro lugar, ressaltou o eximio comercialista, não há confundir a clientela com os elementos que lhe constituem a causa. Em segundo lugar, se a clientela, consiste na massa de pessoas que habitualmente procuram a “azienda“, para fazer as suas compras, não se pode falar de propriedade da clientela, porque é inconcebível um tal direito sôbre as pessoas.

Finalmente, “a ação ordinária de concorrência desleal não é a ação real de reivindicação da clientela, mas ação de ressarcimento de danos. No caso especial do artigo 113 do Cód. Comercial ainda mais expressamente a lei exclui qualquer caráter real à ação, surgida em virtude de violação do preceito contido no art. 112 do referido Código, porque ou se trata de ação de ressarcimento de dano ou de ação destinada, não a reivindicar a clientela – “di cui nessuno ha perdutto e nessuno ha acquistato il possesso” – mas a fazer refluir para o patrimônio social os resultados úteis das operações ilicitamente realizadas pelo sócio”.

  1. CARNELUTTI, que, conforme vimos; também criticou a tese de VIVANTE, concluiu as suas ponderações distinguindo o direito à clientela do direito sôbre a clientela. “O direito à clientela não é o direito sobre a clientela, mas uma expressão do direito “sobre o fundo de comércio, como o direito à estima ou à fama não é o direito sôbre a estima ou sôbre a fama, mas uma expressão do direito sôbre a própria pessoa”.
  2. A distinção feita pelo grande processualista italiano é inaceitável: Simples jôgo de palavras, ao invés de trazer um novo e convincente argumento à crítica, em parte vem destruí-la.

Realmente; tanto faz direito à clientela, como direito sôbre a clientela. MÁRIO ROTONDI39 evidencia-nos a irrelevância da distinção: “… in un ordinamento giuridico in cui imperi il principio della libera concorrenza, di un diritto alla clienteld non si può certo parlare.” O notável professor de direito comercial de Pavia acrescenta (e êste, para nós, é o principal argumento contra a absurda tese que considera a clientela como objeto de propriedade): “Cessados os monopólios de direito em favor de cidadãos singulares, característico do regime feudal, quando, por exemplo, a moagem do trigo em determinado moinho constituía uma obrigação jurídica para todos os agricultores de uma determinada circunscrição, a clientela constitui um fenômeno de mero fato, não já uma expectativa jurídica”.

CARNELUTTI faz referência ao direito sôbre a própria pessoa.40 É bastante discutível êsse direito de personalidade. Entre nós, CLÓVIS BEVILÁQUA nega-o.41

  1. Mais engenhosa, mais recente e não menos infundada é a tese arquitetada por JEAN ESCARRA.

O notável comercialista francês, depois de afirmar que o direito à clientela não tem por objeto o cliente, mas uma abstenção, assim o expõe: “Os terceiros, e em particular os concorrentes, têm a obrigação de não desviar, mediante processos desleais, a freguesia ligada a um fundo. A obrigação geral de não causar dano a outrem se reveste, nesta matéria, de uma forma particular.

“O direito à clientela está ligado aos diversos direitos que o proprietário do fundo possui sôbre os elementos do fundo. Compreendido como tal, o direito à clientela se revela como um produto do direito às patentes e marcas de fábrica, do direito de propriedade sôbre os instrumentos, o material, as mercadorias. Não se pode conceber um direito à clientela desligado, por assim dizer, dos outros elementos ou de um dos elementos que compõem o fundo. O direito à clientela é uma resultante dos outros direitos.

“A cessão da clientela é acompanhada, necessàriamente, da cessão do fundo de comércio ou, quando não de todo o fundo, pelo menos de um dos elementos do fundo ao qual a clientela está, na espécie dada, mais especialmente ligada; será, segundo o caso, o direito à locação, ao nome comercial, à insígnia, às patentes ou marcas de fábrica. Mas a cessão de clientela isoladamente (“à l’état isolé“) não se concebe, “porque o adquirente não teria meio algum de reter esta clientela. Mesmo na hipótese em que o comerciante cedesse unicamente uma lista de clientes, não haveria cessão de clientela, porquanto o adquirente não teria adquirido pròpriamente o direito à clientela, mas sòmente uma lista de endereços, que está longe de ser a mesma coisa”.

“O direito à clientela”, continua o professor da Universidade de Paris, “é pois um direito considerado sob certo ângulo e apresenta o característico de um direito acessório, se assim se pode entendê-lo, porque sòmente podemos conceber-lhe a existência ligado a outros direitos. Mas esta circunstância não põe qualquer obstáculo a que, entretanto, o distingamos dêsses outros direitos. A própria hipoteca é um direito acessório. Todavia, possui uma existência própria e distinta da do direito do crédito, do qual ela constitui a garantia”.

“O direito à clientela é, portanto, um direito real. Mas é um direito real que oferece traços singulares. Apresenta os característicos dos direitos referentes às propriedades chamadas incorpóreas: direito ao nome, direito de propriedade artística e literária, etc. Porém difere dos precedentes por seu objeto e principalmente por seu conteúdo. O direito à clientela, ao contrário dos precedentes, não é um direito exclusivo; assim não se pode admitir tratar-se de um direito de propriedade. Pouco importa, no entanto, porque a sua proteção não é menos assegurada”. “Le titulaire du droit l’exerce directement; le droit à la clientèle est opposable a tous”.42

  1. Admirávelmente arquitetada, sem dúvida, a tese de JEAN ESCARRA. Mas inaceitável por seus próprios fundamentos.

Preliminarmente, ressalte-se não ser possível; sem o expresso consentimento do locador, ceder-se a locação de imóvel ocupado por fundo de comércio ou de indústria, juntamente com um dos seus elementos integrantes. A sua transferência sòmente se opera ex auctoritate legis com a venda do fundo de comércio. Isto em nossa lei e na lei francesa, onde ela se inspirou. A cessão da clientela juntamente com a do direito de locação, conforme preconizado pelo comercialista francês, importa ato ilícito.

Do seu ensinamento colhe-se que o direito à clientela, nos têrmos em que o fundamentou, é um direito derivado. Inadvertida ou, quando não, indiretamente êle mesmo o disse, ao afirmar que “le droit à la clientèle se revèle comme un produit du droit au bail, du droit au nom...” Não se trata, portanto, de um direito acessório; conseqüentemente, não se pode compará-lo à hipoteca.

Pouco além, o autor afirma que “o direito à clientela não é um direito exclusivo; assim, não se pode admitir tratar-se de um direito de propriedade”. Esta indecisão faz-nos desconfiar de sua doutrina, a qual redunda num grande ilogismo, ao admitir um direito que não é exclusivoopposable a tous“.

Entende-se, perfeitamente, baseado no ensinamento dêsse escritor, o direito que assiste ao proprietário do fundo sôbre alguns dos elementos que o compõem. O direito de propriedade sôbre os elementos corpóreos encontra proteção na reivindicatória; o direito à renovação do contrato de locação de imóveis, para fins comerciais ou industriais, nasce do próprio contrato de arrendamento; a propriedade industrial é garantida por lei especial, cuja transgressão não raro importa crime. E sôbre a clientela?

Ocorre-nos, de pronto, que a única proteção que a lei confere ao proprietário do fundo, no tocante à freguesia, é a ação baseada na concorrência desleal Mas é uma ação que não tem por objeto a restituição da freguesia, desviada do estabelecimento comercial, porém de ressarcimento de dano pela prática de ato ilícito.

  1. “O reconhecimento de um direito de propriedade sôbre a clientela”, observa FERRARA JÚNIOR,43 “devia constituir, na mente dos autores que sustentam esta tese, a premissa para atribuir-se ao comerciante, despejado do local onde exerce o comércio, uma indenização tôdas as vêzes que, por efeito do despejo, venha a perder a clientela, e dela tirando proveito o proprietário, alugando a outrem o local por preço mais elevado, por causa da clientela a êle ligada, ou instalando, êle mesmo, uma “azienda” similar, para desfrutar a própria clientela”.

  1. VIVANTE, que no seu “Trattato” não incluiu a clientela como elemento constitutivo do fundo de comércio, em artigo doutrinário retificou o seu ensinamento, conceituando-a como um bem, uma res de caráter misto, protegida pelo direito civil como tôda coisa móvel. Os outros autores, embora declaradamente não o dissessem, também a consideram coisa, portanto, objeto de transação mercantil. Entre nós, CARVALHO DE MENDONÇA.

No Congresso Jurídico Comemorativo da Independência do Brasil, realizado no Rio de Janeiro, em 1922, o nosso tratadista, presidente da seção de direito comercial, apresentou uma tese sôbre o penhor do fundo de comércio. Entre os elementos do fundo, compreensivos na garantia, o notável comercialista incluiu a clientela!44

  1. A cessão de um fundo de comércio importa, necessàriamente, a da clientela. É a tese de CARVALHO DE MENDONÇA,45 assim exposta: “ao vendedor não é lícito, sem autorização do comprador, fundar estabelecimento em que lhe possa retirar tôda ou parte da clientela. Esta turbação por parte do vendedor importaria privar o comprador, no todo ou em parte, da coisa vendida”. “O vendedor deve, necessàriamente, garantir a freguesia ou clientela, ainda que no contrato estipule que não fica sujeito a responsabilidade alguma. Assim determina o art. 214 do Cód. Comercial, firmando esta garantia como decorrente do contrato (“tacitè inest“), elevada a preceito de ordem pública, e vedando a sua revogação pelas partes. Não há, portanto, necessidade de estipulação formal, expressa, pela qual o vendedor se obrigue a não se reestabelecer”.

Sustentaram-na igualmente LYON-CAEM ET RENAULT:46 “O vendedor de um fundo de comércio está sujeito a tôdas as obrigações que geralmente incumbem ao vendedor. Conseqüentemente, está obrigado a “garantir o comprador contra a evicção. Como a venda de um fundo de comércio compreende, em regra, a “achalandage” (para os autores, o direito à clientela), ela implica a interdição, para o vendedor, de todo ato que possa, diminuir a clientela do comprador. Se, por exemplo, o vendedor se reestabelece, isto é, exerce comércio semelhante, êle turba o comprador no gôzo da coisa vendida, falta à sua obrigação de garantia. Pode, pois, ser condenado a perdas e danos em benefício do comprador e, além disso, os juízes devem ordenar o fechamento do seu negócio”.

Êstes autores abertamente se referem à venda da clientela, porque a clientela está compreendida na venda do fundo, expressão um tanto chocante, mas de largo uso na linguagem dos doutrinadores e da jurisprudência.

  1. Pondo; se de parte êste tratamento irreverente ao elemento humano, que é tudo, para o fundo de comércio, é de se indagar se, realmente, a alienação de um fundo acarreta, pleno jure, a Cessão de sua clientela.

RUI BARBOSA diz que não: “Se a clientela fôsse parte inseparável do “fonds de commerce“, claro está que da cessão da casa de comércio resultaria, necessàriamente, a da clientela. Esta seria, então, cláusula inerente e subentendida nesses contratos.

“Por outro lado, sendo, nesse caso, a clientela elemento integrante e substancial do estabelecimento vendido e, portanto, implìcitamente compreendido na venda, tudo o que atentasse contra a posse da clientela e o seu gôzo pelo adquirente da casa de comércio, atentaria contra a integridade orgânica da coisa vendida. Logo, na obrigação de garantia, inerente à venda, quando esta recaísse em estabelecimentos mercantis, estaria essencialmente incluída, para o seu vendedor, a de considerar transferida ao comprador a clientela do negócio cedido, sob pena de lesar o adquirente no senhorio da coisa adquirida, e ter de ser condenado a restituir-lhe, respondendo pela culpa contratual.

“Só a estar a clientela nessa relação de inseparabilidade para com o estabelecimento comercial, é que das obrigações gerais do vendedor no contrato de compra e venda se poderia deduzir, nas alienações de casas comerciais, a implícita alienação da clientela:

“Acontece, porém, que a clientela não “constitui parte inseparável da exploração comercial. “La clientèle ne fait pas nécessairement partie de la cession d’un fonds de commerce, en ce sens qu’elle en est un élément séparable et peut être réservés”.47

  1. Com quem a razão? Dentro de nossa premissa, baseada no ensinamento de modernos autores italianos, com nenhum. Isto porque não admitimos ser a freguesia (ou clientela) elemento constitutivo do fundo, nem concordamos com os que admitem um direito à clientela. Em apoio de nossa tese, a seguir aduziremos outras razões.

CARVALHO DE MENDONÇA, como LYON-CAEN ET RENAULT, entende que o vendedor de um fundo de comércio está obrigado a garantir, o comprador, contra os riscos da evicção em matéria de… pessoa.

A evicção, como sabido, consiste na perda total ou parcial da coisa, sofrida pelo adquirente e verificada em sentença judicial, que a reconhece como de propriedade de outrem. Mesmo admitindo-se ser a clientela uma coisa, pergunta-se: o titular de um fundo tem a propriedade exclusiva dessa res, para poder garanti-la contra os riscos da evicção, ao transferi-lo?

A nosso ver, dois os absurdos contidos no ensinamento dêsses autores: 1º) considerar a clientela uma coisa; 2°) torná-la propriedade de alguém. Só assim é que se poderia admitir a garantia contra a evicção, por êles sustentada.

Este verdadeiro non sense jurídico é que, naturalmente, levou os autores modernos a considerarem uma nova espécie da obrigação de garantir, devida pelo vendedor ao comprador de um fundo, que diz respeito à livre exploração do fundo adquirido. Trata-se de uma garantia de ordem pessoal, peculiar ao contrato de cessão de fundos comerciais.

  1. COLIN ET CAPITANT, os notáveis civilistas franceses, distinguem a turbação de direito (“trouble de droit“) da turbação de fato (“trouble de fait“). Aquela resulta de uma pretensão jurídica de terceiros, e é causa de garantia inerente a todo contrato de compra e venda. Trata-se, então, da evicção de direito, por que se responsabiliza o vendedor. Mas deve garanti-la contra ato seu, “car la bonne foi l’oblige à ne rien faire qui diminue la jouissance de son acheteur“.48

Esta a garantia de ordem pessoal, a que nos referimos acima, que nada tem que ver com a evicção. Diz respeito à livre exploração do fundo vendido, isto é, visa prevenir a concorrência, levada a efeito pelo alienante ao comprador.

  1. Geralmente, nos contratos escritos da venda de um fundo de comércio se estipula cláusula proibitiva de o vendedor reestabelecer-se, com idêntico ramo de negócio, dentro de determinados limites de tempo e de espaço. Nessa transmissão, o vendedor assume uma obrigação. A natureza da obrigação depende do papel que se reserve, à clientela, na constituição do fundo de comércio. Se, na verdade, é seu elemento integrante, como sustenta a maioria dos autores, a obrigação assumida pelo vendedor é uma obrigação de dar. Ao contrário, se a clientela é elemento estranho à sua constituição, como vimos sustentando, a obrigação do transmitente é uma obrigação de não fazer, isto é, de abster-se de concorrência, reestabelecendo-se no mesmo ramo comercial explorado no fundo vendido.

“Compreende-se desde logo”, acentua GEORGES RIPERT,49 “que se possa ceder fàcilmente o direito de explorar uma clientela comercial, ao passo que a cessão duma clientela pessoal é impossível”. Essa cessão de direito naturalmente se acha condicionada à do fundo, ao qual está ligada a clientela, porque de outra forma não se poderia concebê-la. Mesmo assim, o cedente não poderia assumir qualquer risco; porque a clientela, “como quer que se queira concebê-la, é sempre uma entidade fugidia (“sfuggente“) e que não se pode segurar (“inafferrabile“).50

__________________

Notas:

1 ALBERTO MÁRIO FERRARI, “Avviamento di azienda ed avviamento di stabilimento”, in “Riv. Dir. Com.”, vol. 48, pág. 177.

2 “Rev. dos Tribunais vol. 12, pág. 187.

3 RUI BARBOSA, “As cessões de clientela e a interdição de concorrência nas alienações de estabelecimentos comerciais e industriais”, 1913, pág. 180.

4 “Ao contrário da clientela civil, que a Jurisprudência geralmente considera como fora do comércio, a clientela de um comerciante constitui um valor patrimonial que pode ser vàlidamente cedida ou dada em penhor. Ela representa, aliás, o elemento essencial do fundo de comércio” (ALBERT COHEN. “Traité Théorique et Pratique des Fonds de Commerce”, 2ª ed., 1948, nº 107, pág. 24).

5 J. X. CARVALHO DE MENDONÇA, “Tratado de Direito Comercial Brasileiro”, vol. VI, parte 11, pág. 169.

6 LYON-CAEN ET RENAULT, “Traité de Droit Commercial”, 2ª ed., 1891, vol. 111, pág. 173.

7 CESARE VIVANTE, “La proprietà còmmerciale della clientela”, in “Riv. Dir. Com.”, vol. 26, pág. 493.

8 FRANCESCO CARNELUTTI, “Proprietà della clientela”, in “Riv. Dir. Com.”, vol. 28, pág. 330.

9 MÁRIO ROTONDI, “Trattato di Diritto dell’ Industria – Teoria generali dell’azienda (Ristampa)”, 1935.

10 MÁRIO ROTONDI, ob. cit., pág. 153.

11 MÁRIO ROTONDI, ob. cit., pág. 147.

12 CESARE VIVANTE. “Ancora della clientela”, in “Riv. Dir. Com.”, vol. 28, pág. 1.

13 CESARE VIVANTE, “Istituzioni di Diritto Commerciale, 38ª ed., 1929, pág. 126.

14 CESARE VIVANTE, “Ancora della clientela” pág. 2.

15 FRANCESCO CARNELUTTI, “Proprietà della clientela”, pág. 330.

16 PAOLO GRECO. “La clientela commerciale come oggetto di diritto”, in “Studi in Onore di CESARE VIVANTE”, vol. 1, págs. 571 e seg., in “Foro Ital., apud FRANCESCO FERRARA JÚNIOR, “La Teoria Giuridica dell’Azienda”, 1945, pág. 114.

17 FRANCESCO FERRARA JÚNIOR, ob. cit:, pág. 115, e BROSIO, “Credito, avviamento, clientela dell’azienda”, in “Foro Ital.”, apud FERRARA JÚNIOR, ob. e loc. cits.

18 MÁRIO GHIRON; “Corso di Diritto Industriale”, pág 75, apud FRANCESCO CARNELUTTI, “Proprietà della clientela”, pág. 331, nota 1.

19 FRANCESCO CARNELUTTI, ob. e loc. cits.

20 J. X. CARVALHO DE MENDONÇA, ob. cit. vol. V, parte 1, pág. 22.

21 FRANCESCO FERRARA JÚNIOR, ob. cit., pág. 73.

22 UMBERTO PIPIA, “Digesto Italiano” vol. 1 parte V, nº 33, pág. 1.023, apud RUI BARBOSA, ob cit., pág. 73.

  1. studiare la pratica mercantile dominata com’è da grandi leggi economiche, facendo dello studio del diritto una scienza di osservasione.”

24 “Como se duvidar que Antônio Penteado não entrou com o bem incorpóreo, a posição conquistada no mercado pela fábrica Santana devida à sua freguesia certa e escolhida em vários Estados do Brasil, avaliado em 3.000:000$000 para o capital da Companhia Nacional de Tecidos de Juta?” “Dentro em pouco viu a sua freguesia desviada e, como conseqüência, as suas rendas diminuídas e, estaria hoje em falência, se os credores obrigacionistas e quirografários não lhe tivessem concedido moratória…” (RUI BARBOSA, ob. cit., ed. Ministério da Educação e Saúde; pág. 338).

25 JULES VALÉRY, “Maison de commerce et fonde de commerce” in “Ann. de Dr. Com.”, 1902, apud MÁRIO ROTONDI, ob. cit., pág. 73.

26 ERCOLE VALÉRY, “Trattato di Diritto Commerciale”, 1893, 4ª ed., vol. 1, pág. 225.

27 GEORGE RIPERT, “Traité Elémentaire de Droit Commercial”, 1948, pág. 177.

28 VITOR E. ORLANDO, “La Personalidad del Estado”, 1925, pág. 24. 27 GEORGE RIPERT, “Traité Elémentaire de Droit Commercial”, 1948, pág. 177.

29 JEAN ESCARRA, “Principes de Droit Commercial”, 1934, t. 1. pág. 431.

30 GIUSEPPE VALERI, “Nuovo Digesto Italiano”, vol. II, pág. 40.

31 “Riv. Dir. Com.”, vol. 48, pág. 177.

32 VITOR E. ORLANDO, ob. e loc. cits.

33 MARIO ROTONDI, ob. cita pág. 143.

34 CESARE VIVANTE, “La proprietà commerciale della clientela”, pág. 493.

35 CESARE VIVANTE, “Ancora della clientela”, cit.

36 O autor cita os arts. 436 e 439 do Cód. Civil italiano, os quais não figuram no texto traduzido, porque os dispositivos, nêles contidos, foram deslocados para outros artigos do novo Código Civil.

37 CESARE VIVANTE, “Ancora della clientela”.

38 MÁRIO ROTONDI, ob. cit., pág. 154.

39 MÁRIO ROTONDI, ob. cit, pág. 147.

40 FRANCESCO CARNELUTTI, “Proprietà della clientela”, cit.

41 CLÓVIS BEVILÁQUA, “Teoria Geral do Direito Civil”, apud CARVALHO DE MENDONÇA, ob. cit., vol. 11, pág. 147.

42 JEAN ESCARRA, ob. cit., págs 432 e segs.

43 FRANCESCO FERRARA JÚNIOR, ob. cit., pág. 116, nota 3.

44 J. X. CARVALHO DE MENDONÇA, ob. cit., vol. VI, parte II, pág. 649, nota 2.

45 J. X. CARVALHO DE MENDONÇA, ob. cit., vol. VI, parte II, pág. 169.

46 LYON-CAEN ET RENAULT, ob. cit., vol. III, pág. 173.

47 RUI BARBOSA, ob. cit., pág. 180.

48 COLIN ET CAPITANT, “Cours Élémentaire de Droit Civil Français”, vol. II, pág. 464.

49 GEORGES RIPERT, ob. cit, pág. 177.

50 FRANCESCO FERRARA JÚNIOR, ob. cit., pág. 115.

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