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Ocupação Irregular do Solo Urbano: STJ pacifica a possibilidade de Usucapião em Violação à Legislação Urbanística

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Bruno Mattos e Silva

Bruno Mattos e Silva

20/08/2021

Têm sido chamados de loteamentos irregulares ou de condomínios irregulares os fracionamentos de terras que não atendem aos requisitos legais, dentre os quais se destacam a Lei nº 6.766, de 19-12-1979, e a legislação urbanística municipal.

1. Introdução ao tema: loteamentos e ocupações irregulares

Sob o aspecto jurídico, há várias hipóteses de condomínios irregulares, com variadas conotações. Há loteamentos com falhas no processo de registro, com registro inválido ou mesmo sem qualquer registro. Há até mesmo casos em que áreas da União foram equivocadamente registradas como particulares que, posteriormente, parcelaram e venderam lotes para terceiros de boa-fé.[1]

Algumas pessoas distinguem os condomínios ou loteamentos irregulares em três grupos: o irregular propriamente dito, o clandestino e o grilado. O condomínio irregular propriamente dito seria aquele em que o loteador é o proprietário do imóvel registrado, mas o loteamento viola alguma norma legal e não tem registro; o clandestino seria o loteamento cuja propriedade do imóvel não está registrada em nome do loteador, podendo existir litígio quanto à propriedade; o grilado seria o loteamento no qual o loteador não é o verdadeiro proprietário.

Na prática, nem sempre é possível identificar com clareza qual a situação do condomínio ou loteamento em questão, inclusive em razão de disputas judiciais. Além disso, a situação jurídica dos condomínios ou loteamentos irregulares pode mudar (exemplos: o loteador obtém o registro do imóvel, o loteador obtém o registro do loteamento, o Poder Público promove a regularização). Neste artigo tratamos do tema de forma genérica, abrangendo todas as modalidades de condomínio ou loteamento que não preenchem requisitos da lei e utilizamos as expressões loteamentos irregulares e condomínios irregulares como sinônimas e em sentido amplo.

Os malefícios dos loteamentos irregulares para a sociedade decorrem de uma ocupação não planejada e desordenada do solo urbano ou em vias de urbanização. Possivelmente, o problema principal do excesso de condomínios irregulares em determinada região seja o ambiental. Apenas a título de exemplo, a ocupação irregular do solo urbano, em razão do grande número de construções de casas, de pátios de cimento em quintais, de asfaltamento das vias públicas etc., dificulta o escoamento e a infiltração das águas da chuva, o que, além de provocar erosão precoce nos locais em que há escoamento e infiltração, aumenta o risco de inundações e enchentes.

Por outro lado, existe uma crescente demanda por habitação. A população aumenta (“crescei e multiplicai-vos”), o que importa em maior procura por casas para novas famílias. O povo precisa de habitação.

Há também casos de ocupações, com diferentes nuances. Alguns tipos de ocupações são chamados de comunidades. O vocábulo comunidades surgiu nos anos 80, em substituição à palavra favela.[2] As ocupações são chamadas de “invasões” por seus opositores. Adiante iremos analisar o tema sob o prisma jurídico, sem análises subjetivas de política.

Essas ocupações, empregado esse vocábulo tal como popularmente conhecido, normalmente decorrem de posse inicialmente clandestina em imóveis abandonados e, com o passar dos anos, podem se transformar em posse mansa e pacífica.[3] No passado eram mais comuns os casos de ocupações violentas, especialmente em áreas rurais. Na hipótese de posse mansa e pacífica não é tecnicamente cabível a tentativa de desocupação via ações possessórias, mas sim de ação reivindicatória. Nem sempre, porém, o Judiciário utiliza a melhor técnica jurídica.

Outro tipo de ocupação, que não é chamado de ocupação (muito menos de comunidade), decorre de aquisição de posse mansa e pacífica desde o início. Esse tipo de ocupação é chamado de loteamento irregular ou de condomínio irregular, embora não haja propriamente um loteador, mas sim desdobro de glebas ou de lotes maiores.

Há casos de venda de posse, podendo ou não existir propriedade registrada, bem como de parte ideal de propriedade de lote. A ocupação pode decorrer, por exemplo, de fracionamento de áreas legalmente destinadas a atividades agrícolas, mas com vocação urbana. Um exemplo é Vicente Pires, situado entre Taguatinga e o Plano Piloto, no Distrito Federal, que nunca foi chamado de ocupação, atualmente em processo de regularização.

No nosso livro Compra de imóveis: aspectos jurídicos, cautelas devidas e análise de riscos, atualmente na 13ª edição, afirmamos o seguinte:

“A situação é, no mínimo, curiosa: o Estado não reconhece a situação jurídica de proprietários dos moradores de condomínios irregulares, em razão de alguma ilegalidade ou irregularidade do loteamento (ausência do registro de loteamento, violação à legislação ambiental, violação à lei de zoneamento etc.), aliás, nem mesmo reconhece a existência jurídica dos lotes! Contudo, esse mesmo Estado fornece os serviços públicos (água, luz, telefone, correio, transporte público etc.) a esses condomínios e, corretamente, cobra as taxas e impostos pertinentes. É uma situação dúbia: ou o Poder Público entende que o condomínio, por violar a ordem jurídica de forma gravíssima (ex. violação à legislação ambiental), não pode subsistir e determina a desocupação da área (e, por uma questão de coerência, impede o fornecimento de serviços públicos) ou promove a regularização desses condomínios (nos casos em que isso é possível), determinando prazos para que sejam sanadas as irregularidades e atendidos os requisitos necessários para a regularização.

Deveria o Poder Público coibir de forma imediata e radical a criação de novos condomínios irregulares, antes que eles passem a ser habitados, inclusive por razões pedagógicas. O que causa perplexidade é a existência dessa situação dúbia, insegura, não se sabendo qual será a postura a ser adotada pelo Poder Público no dia de amanhã. Em um país com grande déficit habitacional como o Brasil, a omissão do Poder Público em coibir os condomínios irregulares permitiu que centenas ou milhares de condomínios irregulares surgissem no país, agravando ainda mais o delicado quadro social.”

2. A decisão do STJ que pacifica a jurisprudência discrepante

A possibilidade de usucapião em ocupações irregulares do solo urbano foi objeto de uma infinidade de processos judiciais com decisões nos mais variados sentidos. Por isso foi suscitado o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas, Recurso Especial nº 1.818.564, de relatoria do Ministro Moura Ribeiro.

O julgamento do tema ocorreu no dia 9 de junho de 2021. Esse importantíssimo precedente apreciou situação de ocupação (no dizer da decisão: “loteamento irregular”) por diversas famílias em imóveis de terceiros, que não o Poder Público, na cidade de Planaltina (DF). A ocupação contava com imóveis individualizáveis, assim como com infraestrutura urbanística já consolidada (água, luz, saneamento etc), embora tais fatos não pareçam ter sido relevantes no julgamento.[4] A conclusão do julgamento foi pela possibilidade de usucapião mesmo contra a legislação urbanística:

“Não há, portanto, como negar o direito à usucapião sob o pretexto de que o imóvel está inserido em loteamento irregular, porque o direito de propriedade declarado pela sentença (dimensão jurídica) não se confunde com a certificação e publicidade que emerge do registro (dimensão registrária) ou com a regularidade urbanística da ocupação levada a efeito (dimensão urbanística)”.

A importante decisão levou em consideração a existência de uma situação fática – tal como vimos acima – como razão para se conceder o reconhecimento jurídico:

“Se a utilização do imóvel desrespeita o interesse público, isso continuará a acontecer independentemente do reconhecimento da prescrição aquisitiva. Eventual construção irregular, supressão de nascente ou risco à saúde pública continuarão a existir independentemente de o juiz, na sentença, deferir ou indeferir o pedido de usucapião, sendo certo que tais irregularidades devem ser corrigidas por remédios próprios, a cargo do Poder Público, pelo poder de polícia que lhe é inerente. A declaração da usucapião, vale dizer, é incapaz de causar prejuízo à ordem urbanística, sendo certo, da mesma forma, que o indeferimento do pedido de usucapião não é capaz, por si só, de evitar a utilização indevida da propriedade.”

Contudo, a decisão fez importantes ressalvas:

“Não se afirma, é importante frisar, que a usucapião constitui meio adequado para promover a regularização de loteamento clandestino (…) Sabe-se que o loteamento não se tornará regular pelo simples fato de a propriedade dos bens imóveis que o integram ter sido declarada judicialmente”.

3. Conclusões

Sem discutir o mérito do julgamento descrito, é certo que a existência de decisões judiciais díspares a respeito de um mesmo tema é um fator de “insegurança jurídica”. A pacificação da jurisprudência, seja em que sentido for, é sempre benéfica para a economia. No leading case ora tratado, decidiu-se pela possibilidade de usucapião ainda que em violação de normas legais.

Contudo, em outros casos podem existir particularidades que podem levar a decisões diferentes. Violações à legislação ambiental, por exemplo, é algo que pode vir a ser considerado.

Pouco importa a nomenclatura utilizada para a posse de solo urbano em cada caso concreto, seja ela decorrente de fracionamento irregular, seja decorrente de posse inicialmente clandestina que se transformou em posse mansa e pacífica. A análise jurídica, por ocasião do julgamento de ação de usucapião ou de alegação de usucapião em ação reivindicatória, deve levar em consideração a existência de posse e suas mutações ao longo do tempo. Além disso, há casos em que a usucapião prescinde de justo título.

Essa questão é muito comum em ocupações por pessoas de baixa renda, nas quais a posse de áreas de propriedade de terceiros data de período logo. A solução jurídica para esses casos não decorre de uma preocupação social, no sentido de se proteger os menos favorecidos, embora isso possa ser fundamento para uma decisão judicial em razão de princípios constitucionais. A questão, no âmbito do direito civil, é singela: ou existe posse suscetível de usucapião ou não existe.

A possibilidade de usucapião decorrente de posse em áreas de propriedade privada em violação da legislação urbanística (direito administrativo) foi solucionada, de modo favorável aos possuidores. Resta, porém, uma questão importante a ser solucionada, no tocante às ocupações ou loteamentos irregulares situados em imóveis públicos ou de propriedade litigiosa com o Poder Público.

Sabemos que é vedada a usucapião em imóveis públicos. Há, porém, curioso precedente no sentido de inexistir presunção de que determinada gleba de terra seria terra devoluta, questão também tratada no nosso livro acima mencionado. Caso prevaleça o entendimento desse precedente, somado à decisão descrita neste artigo, a jurisprudência poderá avançar mais, no sentido de permitir até mesmo a usucapião em imóveis que, embora não sejam de propriedade privada, poderão ser usucapidos na hipótese de inexistência de prova que sejam terras devolutas.

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LEIA TAMBÉM


[1]      MORETTI, Julia Azevedo. Lei nº 11.481/07 – regularização fundiária em imóveis da União: efeitos e importância. Palestra apresentada pela representante da SPU, Julia Moretti, no XXXIV Encontro dos Oficiais de Registro de Imóveis do Brasil, no dia 24 de setembro, no hotel Majestic Palace, em Florianópolis, SC. Boletim do IRIB, São Paulo: Instituto de Registro Imobiliário do Brasil, nº 332, p. 19, jul-set. 2007.

[2] Silva, Bruno Mattos. Oficial aos 19 anos: a vida de um oficial de justiça na São Paulo dos anos 1989-1990. https://www.amazon.de/Oficial-Justi%C3%A7a-aos-anos-1989-1991/dp/179057076X

[3] A respeito das modalidades de posse, vide: SILVA, Bruno Mattos e. Compra de imóveis: aspectos jurídicos, cautelas devidas e análise de riscos.13 ed. São Paulo: Atlas, 2021, pp. 45-46.

[4] “os imóveis estão localizados em áreas particulares, registradas em cartórios de Registro de Imóveis do Distrito Federal e de Goiás, situadas praticamente no centro de Planaltina – DF, desfrutando de estrutura urbana consolidada há vários anos, com iluminação pública, esgotamento sanitário, vias de circulação, sistema de escoamento de águas pluviais, etc. (…) Se o imóvel é assistido por vias públicas, se conta com sistemas de água e esgoto, se foi edificado com respeito aos recuos e gabarito previsto nas posturas municipais, nada disso é capaz de criar ou suprimir o direito de propriedade ou os reflexos desse direito no registro imobiliário. Da mesma maneira se o imóvel é utilizado de forma irregular, com desrespeito à sua função social e urbanística, isso tampouco é suficiente para interferir com o direito de propriedade. (…)” (original sem destaques)

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