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Tathiane Piscitelli

Tathiane Piscitelli

14/10/2021

Na final de setembro, a Secretária de Fazenda do Estado do Ceará, Fernanda Pacobahyba, levou ao COMSEFAZ, Comitê Nacional dos Secretários de Fazenda dos Estados e do Distrito Federal, proposta de Convênio ICMS 241/2021 para autorizar a concessão de isenção de ICMS nas operações com produtos de higiene menstrual. Nos termos da cláusula terceira da redação proposta, o valor relativo à isenção do imposto deverá ser deduzido do preço dos bens, com expressa demonstração da dedução no documento fiscal.

No mesmo dia em que a votação da proposta entrou na pauta ordinária do COMSEFAZ, o Secretário de Fazenda do Estado de Alagoas pediu vista para análise técnica do tema e há a expectativa de que a votação seja retomada hoje. O debate sobre o tema é fundamental e joga luzes sobre as controvérsias existentes em torno da concessão de incentivos fiscais na tributação do consumo: muitos economistas afirmam que medidas como essas são regressivas, porque beneficiam as camadas mais ricas da população.

Relatório Pobreza Menstrual no Brasil

Segundo o relatório Pobreza Menstrual no Brasil: desigualdades e violações de direitos, publicado este ano pela Unicef, “mais de 4 milhões de meninas (38,1% do total das estudantes) frequentam escolas com a privação de […] requisitos mínimos de higiene”. Desse conjunto, há 200 mil alunas que não têm acesso a nenhum item de higiene básica no ambiente escolar, de modo que “estão totalmente privadas de condições mínimas para cuidar da sua menstruação na sua escola”. Some-se a isso o fato de que uma em cada quatro mulheres já faltou à aula por estar impossibilitada de comprar absorventes – nessas situações, o substituto mais comum é o papel higiênico e tecidos. No sistema prisional, em que não há fornecimento de absorventes para detentas, o miolo de pão também aparece como opção para a contenção do fluxo menstrual.

Da perspectiva tributária, o Brasil é um dos países que mais tributa absorventes no mundo e o ICMS é responsável por fatia considerável. A proposta de Convênio em debate possibilita que se ajuste a tributação desses bens de acordo com sua essencialidade: seu consumo é fundamental para assegurar a dignidade da pessoa humana, com o agravante de que não existem produtos que a eles se equiparam no universo da população que não menstrua. Trata-se, como se vê, de discriminação implícita de gênero promovida pelo sistema tributário.

Nesse sentido, o reconhecimento da isenção está de acordo com a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, CEDAW, adotada pela Assembleia Geral da ONU em 1979 e em vigor desde 1981, sendo o Brasil dela signatário. Nos termos do artigo 3º da Convenção, os Estados-parte se comprometem a adotar as medidas apropriadas, inclusive de caráter legislativo, para “assegurar o pleno desenvolvimento e progresso da mulher, com o objetivo de garantir-lhe o exerci?cio e gozo dos direitos humanos e liberdades fundamentais em igualdade de condic?o?es com o homem”. A busca, portanto, é pela concretização da igualdade substantiva e a política tributária é parte essencial dessa realização.

Não se pode ignorar, porém o argumento relativo à regressividade decorrente da isenção dos produtos de higiene menstrual: a média de gastos com absorventes para uma menina negra é de R$ 5,45, 18% menos do que para uma menina branca. Considerando que a população negra está na base da nossa pirâmide social em termos de distribuição de renda, infere-se que a menor tributação irá beneficiar mais diretamente a camada mais rica da sociedade. A mesma discussão está presente nos projetos de reforma tributária que unificam a tributação do consumo e preveem alíquota única para todos os bens e serviços, independentemente de sua natureza. A ideia é assegurar a neutralidade do sistema tributário.

Deixada de lado a dificuldade de debater neutralidade tributária em um país tão desigual como o Brasil, especificamente no caso dos absorventes, o argumento da regressividade está deslocado: o fato de as meninas negras gastarem menos com esses bens apenas mostra que as pessoas mais pobres se refreiam no consumo e optam por substitutos que colocam sua integridade física – e muitas vezes mental – em risco. Frise-se: não se trata de um consumo opcional, mas sim de bem essencial que assegura a dignidade da pessoa humana, cuja demanda é uniforme em todas as pessoas que menstruam, sejam ricas ou pobres, brancas ou negras.

Ignorar o papel que o direito tributário pode ter na redução das desigualdades e na realização da dignidade da pessoa humana é limitar o âmbito de sua atuação em nome de uma presumida eficiência econômica […]

A previsão da dedução expressa do imposto no documento fiscal assegura o efetivo repasse da redução tributária ao preço do produto e isso, por si só, já aumenta o acesso, especialmente das meninas e mulheres em situação de vulnerabilidade econômica. Além disso, seletividade do ICMS é princípio constitucional que se estende a todos os bens essenciais, sejam eles consumidos por qualquer extrato social. No caso dos absorventes, o debate é ainda mais amplo, porque o peso tributário atual impõe tratamento tributário mais oneroso às mulheres e à população que menstrua em função, unicamente, de condições biológicas – as quais são, por óbvio, inafastáveis.

Some-se a isso o fato de que ainda inexistem, no Brasil, políticas públicas consolidadas para a distribuição gratuita de tais bens. Como observa Thayana Felix em recente artigo publicado no Jota, estamos vivenciando alguns avanços significativos e a recente aprovação do Projeto de Lei nº 4.980/2019, que assegura oferta gratuita de absorventes higiênicos para mulheres de baixa renda, entre outras, é um exemplo disso. Ademais, como destaca a autora, “há um crescimento exponencial de programas de governo e de leis estaduais e municipais que tratam da dignidade menstrual, com inúmeros projetos tramitando nas Assembleias Legislativas e em Câmaras de Vereadores de todo o país”.

A aprovação da proposta de convênio em debate seria um passo fundamental nesse contexto. Argumentos econômicos não podem se impor aos valores constitucionalmente previstos. A seletividade do ICMS é corolário da justiça tributária que, por sua vez, é demanda do Estado Social e Democrático de Direito instituído pela Constituição de 1988. Ignorar o papel que o direito tributário pode ter na redução das desigualdades e na realização da dignidade da pessoa humana é limitar o âmbito de sua atuação em nome de uma presumida eficiência econômica que, nesse caso, é utilizada apenas para perpetrar as desigualdades hoje existentes, pois não há o mesmo rigor para revisar outros benefícios que não atendem diretamente à dignidade de metade da população brasileira.

Fonte: Valor Econômico

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