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Ainda o direito ao esquecimento: STF e CEDH trilhando caminhos opostos?

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DIREITO AO ESQUECIMENTO

DIREITOS FUNDAMENTAIS

STF

Ingo Wolfgang Sarlet

Ingo Wolfgang Sarlet

07/02/2022

Neste artigo, Ingo Sarlet compara decisões do Supremo Tribunal Federal Brasileiro (STF) e da Corte Europeia de Direitos Humanos (CEDH) sobre casos relativos ao direito ao esquecimento e reflete sobre as diferentes interpretações. Acompanhe!

Ainda o direito ao esquecimento: STF e CEDH trilhando caminhos opostos?

Ao passo em que, como amplamente noticiado e mesmo notório, em 11 de fevereiro de 2021, o Supremo Tribunal Federal Brasileiro, no bojo do RE 1.010.606, Relator Ministro Dias Toffoli, por maioria de votos, entendeu pela incompatibilidade de um direito ao esquecimento, ao menos na forma como esgrimido pelos autores do Recurso, que haviam sido vencidos quando do não menos famoso e paradigmático julgamento levado a efeito pelo STJ, no Resp 1.335.153 (RJ), em maio de 2013[1].

Apenas para refrescar a memória, no caso do STJ, o Ministro-Relator, Luis Felipe Salomão, negou provimento ao recurso dos autores (no caso, os irmãos sobreviventes) de Aida Jacob Curi, vítima de assassinato cometido em 1958. Para o Ministro Relator, ainda que as vítimas de crimes e seus familiares, em tese, também possam ser titulares do direito ao esquecimento, no caso em questão, o crime entrou para o domínio público, tornando-se, de tal sorte, um fato de natureza histórica, não podendo ser transformado em fato inacessível à imprensa e à coletividade, sendo impossível “retratar o caso Aida Curi, sem Aida Curi”.

Já no caso do STF, quanto à existência do direito a ser esquecido, o Plenário (exceto um dos Ministros, que preferiu não participar da decisão por conflito de interesses) decidiu por maioria que o direito ao esquecimento é incompatível com o sistema constitucional brasileiro, pelo menos em geral e com a extensão pretendida no caso Aida Curi.

Durante a votação, cinco Ministros declararam expressamente que o ordenamento jurídico-constitucional brasileiro não admite o referido direito (Ministros Dias Toffoli, Alexandre de Moraes, Rosa Weber, Cármen Lúcia e Marco Aurélio), enquanto dois Ministros (Nunes Marques e Lewandowski), embora também não o tenham reconhecido, apontaram a possibilidade de análise casuística. Tanto o Ministro Gilmar Mendes quanto o Ministro Luiz Fux encaminharam abordagens intermediárias. O primeiro pontuou que é possível reconhecer o direito ao esquecimento mediante a técnica da “concordância prática”, enquanto o segundo afirmou que o direito não pode ser reconhecido se o interesse público estiver em jogo. O Ministro Fachin foi o único a admitir o direito ao esquecimento sem reservas.

Ora, à vista da recente (re) orientação — ao fim e ao cabo não tão radical assim! — levada a efeito pelo STF no que diz respeito ao assim chamado direito ao esquecimento, o que chama a atenção, é que em outros países e mesmo na esfera do direito internacional dos direitos humanos o assunto está longe de ser esquecido, não apenas no que diz com a quantidade da produção bibliográfica, mas em especial, no que aqui importa, da expressiva e relevante jurisprudência nacional e internacional.

Em nível nacional, sem prejuízo dos precedentes brasileiros[2], em diversos países Supremas Cortes e Cortes Constitucionais têm apreciado e julgado casos envolvendo o direito ao esquecimento. Em caráter meramente ilustrativo, Argentina[3], Colômbia[4], Espanha[5], França[6], Alemanha[7].

Mas o nosso foco aqui, dada a limitação de tempo, são os casos relativos ao reconhecimento (ou não) de um direito ao esquecimento no domínio digital, examinados à luz de dois julgados recentes da Corte Europeia de Direitos Humanos (doravante CEDH ou Corte), designadamente, os casos Biancardi v. Itália, de 25 de novembro de 2021, e Hurbain v. Bélgica, de 22 de junho de 2021. Segue, em apertadíssima síntese, apresentação dos julgados.

2 – O caso Biancardi v. Itália, de 25 de novembro de 2021

No caso Biancardi v. Itália, de 25 de novembro de 2021, a controvérsia girou em torno da publicação, realizada em março de 2008, por um editor de um jornal online (de propriedade do autor da reclamação junto à CEDH), de uma reportagem sobre uma briga, envolvendo um esfaqueamento, que aconteceu em um restaurante que pertencia às pessoas envolvidas na contenda. A publicação menciona os nomes dos envolvidos (dois irmãos e seus respectivos filhos) e como o fechamento do restaurante durante vinte dias, determinado por autoridade policial, impactaria nos negócios da família.

A Suprema Corte Italiana (Corte Suprema di Cassazione) manteve a decisão adotada nas instâncias anteriores, tendo em vista que a reputação do ofendido foi violada pela manutenção da reportagem por um prazo excessivo, podendo ser facilmente acessada, desde que inserido o nome dos ofendidos. Sendo assim, realizou-se de forma incorreta o processamento dos dados pessoais.

Assim o editor do jornal online em questão ingressou na CEDH, reivindicando a violação do artigo 10 (referente à proteção à liberdade de expressão) da Convenção Europeia de Direitos Humanos (doravante apenas Convenção) pelas Cortes italianas, tendo em vista que foi condenado a desindexar a reportagem, sendo que, segundo ele, apenas um provedor de pesquisa (a exemplo do Google) poderia realizar a desindexação, e não o próprio site, além de que a multa imposta foi excessiva. Contudo, a CEDH unanimemente não acolheu as alegações (§ 71 da decisão).

Segundo a CEDH, o fato de o requerente ter desindexado anteriormente conteúdos no seu site corrobora com a manutenção das decisões das Cortes italianas (§ 50 da decisão). Sendo assim, a CEDH considerou que “a responsabilidade do requerente foi uma consequência do fracasso em desindexar do mecanismo de busca na Internet as tags para o artigo publicado pelo solicitante (o que teria impedido qualquer pessoa de acessar o artigo simplesmente digitando o nome de ‘V.X.’ ou de seu restaurante), e que a obrigação de desindexar o material poderia ser imposta não apenas à provedores de pesquisa na Internet, mas também sobre os administradores de jornais ou de arquivos jornalísticos acessíveis através da internet” (Traduziu-se. § 51 da decisão).

Com efeito, a Corte observou que a interferência na liberdade de expressão pode ocorrer legitimamente para proteger a reputação e os direitos de terceiros, estando tal interferência protegida pelo art. 10 § 2º da Convenção. Tendo em vista que o Decreto legislativo italiano 196/2003 regulamentava tal possibilidade, não é possível afirmar, do ponto de vista da CEDH, que houve violação da Convenção pelas Cortes italianas, já que a restrição está prevista em lei. Sendo assim, determinou-se que o requerente deveria desindexar o artigo (§ 57 da decisão), mantendo a multa imposta, dadas as circunstâncias do caso (§ 68). Com efeito, nota-se que o caso se refere ao longo prazo de permanência de uma reportagem na internet sobre um crime, tendo duas características principais: o período de disponibilidade do artigo é prejudicial à reputação dos ofendidos; e o titular dos dados não é uma pessoa pública (§ 62 da decisão). Ademais, não foi imposta nenhuma obrigação de remover permanentemente o conteúdo da internet (§ 70 da decisão).

2 – Caso Hurbain v. Bélgica, de 22 de junho de 2021

Já no Caso Hurbain v. Bélgica, de 22 de junho de 2021, estava em questão o arquivamento digital de um artigo sobre um acidente rodoviário fatal em 1994, causado por “G.”, realizado pelo editor do jornal belga Le Soir, um dos principais jornais francófonos da Bélgica. Cabe ressaltar que o artigo mencionava o nome completo de “G”. Em 2000, “G.”, o causador do acidente, foi condenado e em 2006 recebeu um indulto (décision de réhabilitation). A partir de 2008, as edições anteriores dos jornais até 1989 foram digitalizadas mediante acesso gratuito. Em razão disso, em 2010, “G.” requereu extrajudicialmente à empresa à qual pertence o jornal (Rossel e Compagnie) para a que fosse realizada a remoção do artigo que o mencionava ou, ao menos, a sua anonimização, reforçando que exercia a profissão de médico e que o artigo em questão aparecia em diversos provedores de pesquisa. O jornal se recusou a realizar as alterações solicitadas.

Na jurisdição belga, a Corte de Apelação (Cour d’Appel de Liège), em 2014, confirmou a condenação anterior de instância anterior, considerando que o caso está no âmbito do assim chamado direito ao esquecimento digital, reconhecendo que a publicação original foi lícita e legítima, enquanto a redivulgação digital não mais possuía atualidade e relevância, afinal, “G.” já havia sido condenado e cumprido pena. Sendo assim, segundo a Corte de Apelação, para não afetar de maneira desproporcional a liberdade de expressão do jornal, o nome e sobrenome de “G.” deveriam ser substituídos pela letra “X”.  Em 2016, a Corte de Cassação (Cour de cassation) belga rejeitou o pedido do jornal para a revisão das decisões anteriores. Sendo assim, o jornal posteriormente ingressou com uma reclamação junto à CEDH.

O jornal, ao ingressar perante a CEDH, visava demonstrar que a jurisdição interna belga, ao condená-lo à anonimizar a reportagem digital, violou o seu direito à liberdade de expressão, previsto no art. 10 da Convenção. Para o requerente, são os provedores de pesquisa que dão destaque a páginas da internet e que a atividade de arquivamento digital de matérias jornalísticas poderia ser posta em risco pelas demandas de anonimização (§§ 59 e 60 da decisão). Para o requerente, inclusive, há outros meios menos invasivos para sopesar os direitos em questão, como a menção do cumprimento de pena pelo ofendido ou a desindexação dos motores de busca, a exemplo do Google (§ 62). Contudo, por maioria de seis votos contra um, a CEDH definiu que a jurisdição belga não violou o artigo 10 da Convenção, confirmando a condenação do jornal e a respectiva obrigação de anonimizar o artigo sobre o acidente de carro causado por “G.” (§ 132 da decisão).

Para a CEDH, eventual ingerência no direito à liberdade de expressão, prevista no art. 10 da Convenção, é legítima, na medida em que o direito à vida privada, no direito belga, compreende o direito ao esquecimento (§ 79 da decisão). Segundo os fundamentos da Corte, uma disposição de direito civil sobre a responsabilidade civil extracontratual é uma base legal suficientemente previsível, não havendo o que falar em surpresa quanto à condenação para anonimização da reportagem (§ 87 da decisão).

A CEDH ainda mencionou os casos Axel Springer AG v. Alemanha (2012), Hachette Filipacchi Associés v. França (2015), Bédat v. Suíça e Satakunnan Markkinapörssi Oy e Satamedia Oy (2016), além dos casos Von Hannover v. Alemanha (2012) e Delfi AS (2015), para evidenciar que o sopesamento entre direitos da personalidade e a liberdade de expressão já estabeleceram princípios gerais que orientam a matéria em questão, além de que ambos os direitos possuem o mesmo valor a priori (§ 93 da decisão).

Ainda que, para a CEDH, a arquivos digitais sejam uma fonte preciosa para preservação da história (§ 100), tendo em vista o largo lapso temporal decorrido entre os fatos e a digitalização da reportagem, tornam-se evidentes os prejuízos sofridos por “G.” (§ 132 da decisão). A Corte também ressaltou que os fatos contribuem historicamente apenas de forma estatística para um debate geral sobre segurança rodoviária (§ 107 da decisão), devendo o ofendido gozar de seu direito ao esquecimento, sobretudo tendo em vista o cumprimento de pena (§ 109 da decisão). Segundo a CEDH, “enquanto uma pessoa desconhecida pode adquirir uma certa notoriedade após a prática de crimes e durante o julgamento, tal notoriedade também pode diminuir com o passar do tempo” (Traduziu-se. § 110 da decisão).

A CEDH também constatou que uma pesquisa a partir do nome e sobrenome de “G.” no mecanismo de busca do jornal e do Google já era o suficiente para facilmente acessar a reportagem (§ 121 da decisão). No que tange à gravidade da sanção imposta ao requerente, a Corte a considerou razoável, tendo em vista que a desindexação nos mecanismos de busca (como o Google) não havia sido solicitada por “G.”, cabendo também aos editores o cumprimento de obrigações, in casu o jornal Le Soir (§ 127 e 120 da decisão).

Ao final, a CEDH reforça que a decisão não implica criar uma obrigação por parte dos provedores de mídias para a revisão e verificação dos arquivos digitalizados de forma sistemática e permanente, cabendo a cada um a realização de um exercício de equilíbrio de interesses somente no caso de um pedido expresso para anonimização de informações (§ 134).

À vista dos dois recentes julgados da CEDH, aqui sumariamente apresentados, ademais de outros precedentes aqui referidos (em caráter apenas ilustrativo), resulta evidente que, pelo menos numa primeira mirada, o STF, com sua decisão de fevereiro de 2021, afastou-se da orientação que soa como dominante, pelo menos no que diz respeito ao reconhecimento de um direito ao esquecimento como tal. Por outro lado, como já tivemos oportunidade de expressar neste mesmo espaço, noutra ocasião, a Suprema Corte Brasileira ainda não decidiu de modo conclusivo sobre a desindexação de conteúdos na internet, a anonimização, bem como desenvolveu critérios para tanto, de modo que muito ainda resta muito espaço para ajustes. O tempo e a quantidade e diversidade de casos levados ao Poder Judiciário o dirão.

Fonte: ConJur

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NOTAS

[1] Agradecemos à Mestre e Doutoranda em Direito Andressa Bittencourt, bolsista CAPES-PROEX, pelo competente auxílio na pesquisa jurisprudencial preparatória, que muito contribuiu para que pudéssemos desenvolver o trabalho com maior rapidez e precisão.

[2]    STJ, REsp. n. 1.334.097/RJ, 4. Turma, Min. rel. Luis Felipe Salomão, j. 28.05.2013. (Caso Chacina da Candelária);
STJ. REsp 1736803/RJ, rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, 3. Turma, j. em 28/04/2020. (Caso Daniela Perez);
STJ, REsp 1316921/RJ, 3. Turma, Min. rel. Nancy Andrighi, j. 26.06.2012 (Caso Xuxa);

STJ, REsp 1660168/RJ, 3. Turma, Min. rel. Nancy Andrighi, rel. para o acórdão Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 08.05.2018 (Caso Servidora Pública e Fato Desabonador);
Outros casos: Resp 1434498, REsp 1.875.382-AgRg/MG, REsp 1.751.708-AgRg/SP, REsp 1.751.708-AgRg/SP, REsp 1.660.168/RJ, REsp 1.593.873-AgInt/SP.

[3]    Corte Suprema de Justicia de la Nación. Caso R. 522. XLIX. Rodríguez, María Belén el Google Inc., j. 28.10.2014. Também, Cámara Nacional de Apelaciones en lo Civil de la Capital Federal, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Caso Denegri, Natalia Ruth C/ Google Inc S/ Derechos Personalisimos: Acciones Relacionadas, Sala “H”, j. 10 agosto 2020.

[4]    Corte Constitucional de Colombia, Sentencia T-277/15. Glória vs. Casa Editorial El Tiempo, j. 12.05.2015.

[5]    STC nº 58/2018. Tribunal Constitucional da Espanha. Madrid, 04 de junho de 2018.

[6]    Conseil Constitutionnel, Décision n° 2017-670 QPC, j. 27.10.2017

[7]    BVerGE. Beschluss des Ersten Senats vom 06. November 2019 – 1 BvR 16/13 (Direito ao esquecimento I). BVerfGE, Beschluss des Ersten Senats vom 6. November 2019 – 1 BvR 276/17 (Direito ao Esquecimento II).

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