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Sucessões e herança digital: reflexões

DIREITO DAS SUCESSÕES

DIREITOS DA PERSONALIDADE

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TESTAMENTO DIGITAL

Sílvio Venosa

Sílvio Venosa

14/03/2022

Neste artigo, Silvio de Salvo Venosa discute as complexidades da herança digital e as necessárias adaptações que a lei precisa sofrer em razão da tecnologia. Continue a leitura e entenda!

1 – Direito das sucessões. Noção

Suceder é substituir, tomar o lugar de outrem ou de algo. No campo do Direito ocorre a substituição de uma pessoa por outra. Esse é o seu conceito amplo no campo jurídico. Assim, quando o conteúdo e o objeto de relação jurídica permanecem os mesmos, mas mudam seus titulares, há uma transmissão do direito ou uma sucessão. Dessa forma o comprador sucede o vendedor com relação ao objeto do negócio jurídico, o donatário sucede o doador e assim por diante.

Desse modo, sempre que uma pessoa, que pode ser natural ou jurídica, tomar o lugar de outra em uma relação jurídica, se está perante uma sucessão. A etimologia do vocábulo, sub cedere, possui exatamente esse sentido, qual seja, alguém toma o lugar de outrem.

Em direito a doutrina costuma fazer a sensível diferença entre a sucessão inter vivos,como por exemplo nos contratos, e a causa mortis, quando os direitos e obrigações de uma pessoa que falece transferem-se a seus herdeiros e legatários.

Contudo, convencionou-se na doutrina jurídica que a referência a direito das sucessões consiste no tratamento legal das substituições de titulares por causa de morte.

Assim como mais raramente ocorre na sucessão entre vivos, a sucessão por causa de morte transfere, em princípio, uma universalidade, que consiste na herança, acervo de bens, como um todo. A sucessão a título singular, mais ordinária nos negócios jurídicos, também pode ocorrer na sucessão hereditária por via dos legados, que é um bem certo e determinado que é transferido, por testamento ou codicilo. No direito das sucessões, portanto, distingue-se claramente o herdeiro, sucessor a título universal, ainda que de uma porcentagem da herança, do legatário, sucessor singular. Nadaimpede que possa ocorrer que um herdeiro tenha também a condição de legatário. Todavia, é importante acentuar que só haverá legatário quando houver testamento. Ou, em outras palavras, somente o testamento pode nomear um legatário. Os herdeiros podem decorrer da ordem legal ou do testamento. 

Destarte, do direito das sucessões é tratado no Código Civil, a partir dos arts. 1784. Cuida-se, nesse diploma, de seu último compartimento. Desse modo, o direito das sucessões possui esse entendimento restrito e sobejamente conhecido da doutrina, não se confundindo com as operações sucessórias ocorridas sob o direito das obrigações.

2 – A compreensão do direito das sucessões

O ser humano, desde os primórdios de sua existência, sempre se questionou sobre o seu papel neste planeta e sempre acreditou ou esperou que houvesse meios de transcender sua vida de curto lapso, perante o curso da história.

É tradicional afirmar-se que a personalidade surge no nascimento com vida e a morte faz tudo terminar (mors omnia solvit). Não só no direito sucessório, mas em vários aspectos sociológicos e filosóficos, sabemos que essa afirmação não é verdadeira.

Se partirmos para divagações fora dos paradigmas do direito, não se pode dizer que com sua morte, pessoas como Bach, Beethoven, Mozart; Shakespeare, Camões, Cervantes, Goethe, Dante, apenas para exemplificar, não continuam vivas permanentemente por suas obras imorredouras. Hoje, no mundo digital, a perenidade dos grandes autores e cientistas, e até mesmo do ser humano comum restará para sempre de uma forma viva na sociedade. Esse aspecto tem muito a ver com o desiderato deste trabalho ao mencionar a herança digital.

A ideia central do direito das sucessões, contudo, continuará aplicável, no que for possível e viável segundo o ordenamento, embora um universo novo se descortine com o mundo digital. Caberá, como sempre, aos juristas e ao legislador, traçar parâmetros para as novas formas de sucessões, pois, sem dúvida, o provecto direito das sucessões de nossos códigos não abarcam inúmeras situações, como veremos. A ciência do Direito está sempre a nos apresentar desafios, eis o cerne de sua magnitude e beleza.

Tradicionalmente, há uma ideia central no corpo social, que é a figura do sucessor, comumente confundida com o herdeiro no campo das sucessões. Essa noção parte de uma das ficções mais arraigadas no corpo social, que é a da figura do sucessor, como continuador da pessoa falecida.

Se atualmente, o direito moderno só vê a sucessão causa mortis sob o ponto de vista material, sua origem histórica é essencialmente extrapatrimonial, relacionada com os préstimos religiosos. No entanto, nos últimos séculos, a ideia de sucessor da pessoa falecida, mormente no cunho material, continua arraigada. 

A ideia de sucessão, nesse diapasão, não aflora somente no interesse privado, pois o Estado também tem amplo interesse de que o patrimônio não reste sem um titular, o que lhe traria mais um ônus. Ao resguardar o direito à sucessão, como um princípio constitucional (art. 5º. XXX, da Constituição), o ordenamento está também protegendo a família e regulando sua economia. Se não houvesse direito das sucessões, como na experiência malfadada da falecida União Soviética, no início do século XX, a própria capacidade do indivíduo estaria comprometida e desapareceria o interesse do cunho empresarial. A constituição soviética de 1936 veio restabelecer o direito sucessório, sem maiores restrições.

Esta introdução se torna mais importante pois iremos cuidar a seguir dos direitos trazidos pelo mundo digital, com reflexos diretos na sociedade e no ser humano, cada vez mais dele dependente.

O direito das sucessões tradicional disciplina, portanto, as situações jurídicas do indivíduo no momento de sua morte. A primeira ideia é que o patrimônio seja aquinhoado à família. Daí decorre a excelência da ordem legal da vocação hereditária, a chamada sucessão legítima, atribuindo os bens ao cônjuge supérstite, descendentes, ascendentes e colaterais até o terceiro grau em nosso direito. O testamento concede amplas possibilidade de terceiros serem aquinhoados, respeitada a limitação de metade da herança quando existentes herdeiros necessários, cônjuge, descendentes e ascendentes.

Nesse direito sucessório tradicional prepondera a ideia de transmissão da propriedade. Porém, há que se recordar que direitos materiais e imateriais são transmitidos, mas sempre como um corolário do domínio.

Desse modo, a relação do direito das sucessões com o direito de família é uma constante, o que não excluí repercussões no direito tributário, direitos reais e direito obrigacional, além, evidentemente do direito processual que traça as normas do inventario.

3 – Noção de herança. Herança digital

Embora se utilize, com frequência, o termo sucessão como sinônimo de herança, faz-se necessário distinguir, como vimos. A sucessão se refere ao ato de suceder, que pode ocorrer por ato, fato ou negócio jurídico entre vivos ou mortis causa.

O termo herança é exclusivo do direito das sucessões. Assim, herança é o conjunto de direitos e obrigações que se transferem em razão da morte, a pessoa ou pessoas, que sobrevivem ao falecido.

A expressão de cujus é consagrada no foro, decorrente de frase latina. O termo espólio é visto como simples massa patrimonial coesa do de cujus, utilizada sob o prisma processual, enquanto não houver a partilha. 

Assim, a noção de herança ingressa no conceito de patrimônio. Deve ser entendida como o patrimônio da pessoa falecida. Patrimônio é o conjunto de direitos reais e obrigacionais ativos e passivos, pertencentes a uma pessoa. Desse modo, a herança deve ser entendida como o patrimônio da pessoa falecida, também denominado autor da herança.

Na contemporaneidade, grande parte da população mundial vivencia simultaneamente relações e bens corpóreos e incorpóreos, perante a constante digitalização em todas as esferas.

Como daí decorre, o patrimônio consiste em bens materiais e imateriais, mas sempre algo avaliável economicamente. Porque em princípio se afasta da patrimonialidade os direitos da personalidade. Esse aspecto é importante para análise que faremos da herança digital. Há direitos personalíssimos que se extinguem com a morte, embora mantenham reflexos depois dela. Há outros que merecem estudo mais aprofundado.

Destarte, se torna oportuno e necessário pensar numa herança digital, tantas as formas de sua utilização em aparatos postos nas nuvens, nos meios e instrumentos digitais, sempre em evolução. Não será raro alguém que venha a morrer sem patrimônio material, mas pleno de manifestações digitais.

Cada vez mais são guardadas informações de todas as naturezas nos escaninhos digitais. Esse aspecto originou a terminologia herança digital, o que não se ajusta propriamente a todas as situações. Algumas disposições digitalizadas possuem induvidosamente conteúdo patrimonial que devem integrar o direito das sucessões. Cuida-se de artigos, opiniões, entrevistas, textos de todos os níveis, aulas, palestras, discursos etc. que certamente se inserem no patrimônio da pessoa falecida.

O legislador já busca enfrentar essa problemática com projetos, porque normalmente se esbarra nos direitos alegados pelos dirigentes de redes sociais que se recusam a reconhecer o conteúdo sucessório do armazenamento automático de que são detentores, recusando a informação de senhas e seus conteúdos. 

Há um direito sucessório inarredável nas tarefas virtuais deixadas pelo de cujus, que deverão ser atribuídos, salvo vontade em contrário expressa do titular, aos herdeiros legais ou testamentários. Aliás, o testamento, mormente o ológrafo como destacam os italianos, deverá converter-se em importante instrumento nessa matéria, uma vez que o testador poderá proibir que certas matérias de seu acervo digital sejam divulgadas e esse será um critério somente do interessado, enquanto não tivermos ordenamento legal. Talvez seja esse último aspecto a maior problemática em torno da herança digital. Em princípio, contudo, caberá aos sucessores, legítimos e testamentários, definir o destino desses materiais.

Os bens digitais com claro valor econômico seguirão, sem maior dificuldade, os princípios gerais do direito sucessório, com a saisine e demais consequências legais.

A maior dificuldade surge nos inúmeros bens digitais insuscetíveis de valoração econômica, que atingem os direitos da personalidade, sob o prisma cultural, ético e moral, ou naquelas situações, ainda que patrimonialmente avaliáveis, implicam em violações póstumas de direitos personalíssimos. Nesta última hipótese, o testamento ou mesmo um codicilo será de grande valia. Na ausência da última vontade, presumir o desejo do morto será missão complexa.

Esse acervo digital integra, por conseguinte, a universalidade da herança e deve ser mencionado nas declarações do inventário. Já se fala num ciberespaço e cibercultura, enquanto o patrimônio permanecer indiviso como espólio, cada herdeiro se porta como condômino da universalidade.

Sob essa problemática, se pode afirmar que a vida e a morte se completam e se unem inevitavelmente em um “contínuo processo osmótico” (Monforte, 2020:11).

4 – Direitos da personalidade

O ser humano, para satisfazer suas necessidades, posiciona-se em um dos polos de relação jurídica: compra, vende, empresta, contrai matrimônio, faz testamento etc. Desse modo, o indivíduo cria inúmeros direitos e obrigações em torno de sua pessoa, faz nascer o seu patrimônio.

No entanto, há direitos que afetam diretamente a sua personalidade, os quais não possuem, ao menos diretamente, conteúdo econômico imediato. A personalidade não é propriamente um direito, mas um atributo que adere ao ser humano, representando um conceito básico sobre o qual se apoiam os direitos.

Os direitos denominados personalíssimos incidem sobre bens imateriais ou incorpóreos. As Escolas do Direito Natural proclamam a existência desses direitos, por serem inerentes à personalidade. Cuidam-se dos direitos à própria vida, à liberdade, ao próprio corpo, à manifestação de pensamento, à intimidade, dentre tantos outros.

Nossa Constituição enuncia longa série desses direitos e garantias individuais (art. 5º). São direitos privados fundamentais, que devem ser protegidos e respeitados como conteúdo mínimo para permitir a coexistência em sociedade. Muitas opiniões sustentam serem direitos inatos, que são ínsitos à pessoa humana, cabendo ao Estado reconhecê-los.

É fato que em regimes totalitários, autoritários, esses direitos não são resguardados. A História e o presente são plenos de exemplos. Sua proteção somente se torna possível em regimes democráticos e liberais, o que torna seu reconhecimento e proteção complexos e controvertidos.

O Código Civil de 2002 introduziu um capítulo sobre o tema, pela primeira vez de forma expressa e ordenada na legislação brasileira. Assim, temos a Constituição que aponta a base desses direitos, complementada pelo estatuto civil, que disciplina alguns dos seus aspectos.

Progressivamente em nossa sociedade avulta a importância sobre a proteção à imagem, à privacidade, ao direito ao próprio corpo, assim como o controle da natalidade e discussão sobre possibilidades de aborto, dentre tantos outros aspectos de nossa vida, que tocam diretamente os direitos personalíssimos. A matéria é profunda, pois ingressa não somente nos princípios jurídicos, mas também na economia, filosofia, sociologia e religião.

O universo digital em que o ser humano mergulhou nas últimas décadas aguçou toda essa problemática, com a ampla facilitação das comunicações, açulando incrédulos juristas e sociólogos na busca de novas soluções, perante as recentes e mutantes situações. Integrando os direitos da personalidade, os direitos fundamentais recebem novas fronteiras com as inovações tecnológicas. Os bens e dados digitais já integram a personalidade de milhares de pessoas. Tudo gira e torno da defesa e proteção da dignidade humana, como estampada na Constituição. Há tendência de se situar essas novas manifestações jurídicas em torno do direito constitucional, mormente enquanto não tivermos uma legislação própria. Desse modo, uma visão apenas privatística dos direitos da personalidade se mostrará insuficiente.

Esses direitos personalíssimos relacionam-se intimamente com o Direito Natural, constituindo o mínimo necessário de proteção à pessoa. Diferem dos direitos patrimoniais porque nos direitos da personalidade o aspecto econômico é secundário e somente aflora quando da reparação de direito violado. Indenizar, por exemplo, por abuso na divulgação da imagem de alguém, representa mero lenitivo pela transgressão, nunca um equivalente ao dano.

4.1 – Direitos da personalidade. Características e enumeração

Podemos apontar as características principais dos direitos da personalidade: i) são inatos ou originários porque se adquirem ao nascer, independendo de qualquer vontade; ii) são vitalícios, perenes ou perpétuos, porque perduram por toda vida. E como é sabido, muitos aspectos desses direitos perduram depois da morte. Pelas mesmas razões, são iii) imprescritíveis, uma vez que perduram enquanto perdurar a personalidade; (iv) são inalienáveis, ou mais propriamente, relativamente indisponíveis, pois em princípio estão fora do comércio, embora possam ser parcialmente negociados, porque a personalidade em si não possui valor econômico e são (v) absolutos, no sentido que podem ser opostos erga omnes.

A verdade, porém, é que todas essas características, de uma forma mais ou menos ampla, não podem ser vistas como peremptórias, podendo ser contestadas perante o universo digital, em compartimento jurídico de estudos que está apenas começando. A internet se tornou local para infindáveis manifestações do ser humano, de forma muito mais ampla que se poderia imaginar não muito tempo atrás.

Sustenta-se que os direitos da personalidade são extrapatrimoniais porque inadmitem avaliação pecuniária, ficando fora do patrimônio econômico. As indenizações, que ataques a eles possam acarretar, constituem um substitutivo de ordem moral, para um desconforto, contudo não se equiparam a uma indenização ou contraprestação.

Apenas no sentido metafórico podemos nos referir ao património moral de uma pessoa. Esses direitos personalíssimos são irrenunciáveis porque pertencem à vida e, se pode acrescentar, à alma do ser humano, projetando sua personalidade. O seu elenco não permite uma enunciação completa, lembrando que os direitos puros de família, como filiação, paternidade e maternidade, pertencem a essa categoria.

Somente nas últimas décadas do século XX os legisladores passaram a se preocupar com esse ramo jurídico e social, mormente porque sua base se situa comumente nas constituições.

Nosso Código Civil trata desses direitos no Capítulo II (arts. 11 a 21). Esses princípios servem de base e fundamento para orientar a doutrina e os tribunais, mas longe estão de esgotar seu amplo elenco. O art. 11 abre a temática dispondo: “Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofre limitação voluntária”. A lei refere-se apenas a três características desses direitos, entre as apontadas, intransmissibilidade, irrenunciabilidade e indisponibilidade.

Os direitos da personalidade são os que resguardam a dignidade humana. Desse modo, ninguém pode, por ato voluntário, dispor de sua privacidade, renunciar à liberdade, ceder seu nome de registro para utilização por outrem, renunciar ao direito a alimentos no direito de família, por exemplo. Os programas televisivos, por exemplo, que se arvoram em mostrar a aparente vida íntima de pessoas, nada mais é que uma exibição cênica e teatral, regulada em contrato.

Por seu lado, o fenômeno da herança dita digital se apresenta com elementos amplamente heterogêneos, representados não apenas por elementos escritos ou verbalizados, em sentido estrito, como arquivos típicos de texto e de outra natureza, com chaves e senhas para acessá-los (password, username, pin etc.). Esse é, sem dúvida, ponto saliente para acessar o patrimônio digital da pessoa falecida, nem sempre contando com a boa vontade dos provedores nacionais e internacionais para divulgá-los. É certo que a futura legislação sobre o tema deverá enfrentar abertamente essa problemática. Assim há que se atentar para as fotos digitais, vídeo, criações musicais, programas de software, em locais tais como web, blog, e-mail, dentro tantos outros. Como se percebe, o universo digital exige uma atenção hercúlea para permitir soluções, nem sempre possivelmente homogêneas. Na verdade, o mundo jurídico se vê atarantado em busca de caminhos nessa área.

5 – Do testamento analógico ao testamento digital

Esse aspecto é fundamental para esse nosso tema.

O testamento passa a ter relevância enorme quando se trata de disposição de última vontade para o patrimônio digital. Em todas as épocas históricas, desde o tradicional direito romano, o testamento oral nunca teve maior proeminência, salvo situações extremas como o testamento nuncupativo. Todos os ordenamentos preocuparam-se em estabelecer regras formais e solenes, como substrato para garantir a higidez da última vontade do disponente.

O testamento em nosso Código Civil atual, apesar de diminuição das formas, continua a ser um ato escrito e solene, para garantir sua presença no tempo e a eficiência de suas disposições. Nossas formas ordinárias, que mais importam, testamento público, particular e cerrado, exigem a escrita.

Nesta era extensiva de convivência digital, chega momento de reformular conceitos, sem abandonarmos e mantermos as ideias e formalidades básicas dos testamentos. Há uma evolução contextual e social no conceito de testamento. Tudo leva a concluir que a presente época está madura para a introdução do testamento digital. Assim, não se transgridem princípios quando se pretende adaptar o testamento à era digital. Há que se buscar, destarte, um novo “formalismo digital”, na busca de um grau de segurança efetivo, no mesmo nível ou mesmo mais amplo do testamento analógico, como instrumento de sucessão mortis causa

Em futuro não distante, dever-se-á enfrentar a questão sob o prisma normativo. Há que se adaptar as formas ordinárias de testamento conhecidas ao universo digital. Em qualquer situação, como é desejável, há que se preservar a vontade testamentária idônea e corretamente manifestada.

Nesse sentido, as preocupações com um testamento digital não diferem substancialmente dos testamentos analógicos. Há que se garantir a manifestação de vontade e sua autoria, a liberdade de escolha das disposições testamentárias, sua autenticidade e preservação da vontade do testador.

Sempre aduzimos em nossos estudos no sentido de que o jurista não deve raciocinar sob fraudes, porque nesse diapasão não sairá do lugar. Fraudes podem existir em todos os setores, mormente os jurídicos, dentro ou fora da informática. Cabe ao ordenamento estruturar meios para que falsidades sejam evitadas e coarctadas.

Nosso clássico testamento analógico é redigido sobre um suporte material, escrito à mão ou por meios mecânicos ou eletrônicos. Não se esqueça que no passado até mesmo se discutiu se seria válido um testamento datilografado. Qualquer que seja a modalidade de escrita, deve ser alinhada e protegida a assinatura do testador, sua vontade e autenticidade.

O testamento digital, diferentemente, será redigido sobre um suporte imaterial, ou, melhor, em um documento informático composto de bits. Não existirá uma pessoalidade de assinatura, como ocorre sobre o papel. Esse documento será subscrito por uma assinatura eletrônica, facilmente alterável e modificável, como sabemos, quando não protegida por criptografia ou outros meios. 

Estamos, indubitavelmente, caminhando nesse sentido, embora essas ideias possam parecer ainda prematuras. No entanto, a problemática da herança digital está diante de nossos olhos para ser resolvida em seus inúmeros aspectos. Como se percebe, a questão é mais cultural do que jurídica, nesse atual plano, e mais suas soluções se tornam necessárias quanto mais afetada é a sociedade pelo universo digital.

As futuras disposições sobre esse testamento devem assegurar garantias de assinaturas eletrônicas avançadas. O testamento deverá estar inserido nas exigências cartoriais. Em nossa realidade atual ainda não podemos divisar um testamento redigido de próprio punho pelo testador, embora as possibilidades técnicas já existam. Alessandro d´Arminio Monforte, em obra monográfica sobre a matéria, assevera, conforme aduzimos “que essa questão é mais cultural do que jurídica: a tecnologia está em nível de satisfazer plenamente a exigência de paternidade e autenticidade seja da escritura seja da assinatura com um grau de certeza semelhante (senão superior) àquele que se poderia obter com a assinatura típica do testamento ológrafo” (tradução nossa, 2020:151).

Recorde-se que é atualmente perfeitamente factível, e mesmo aconselhável, o testamento videoregistrado, com a gravação visual de todas as atividades que cercaram o testador durante seu ato perante o notário, ou mesmo perante as testemunhas se for testamento particular. Em pequenos arquivos, em usb ou equivalente e em outros locais, ficará assegurada a vontade e a autenticidade do testador, com muito maior eficiência do que o documento em papel. Certamente o vídeo-testamento deverá merecer a atenção do legislador, quando se debruçar mais profundamente sobre a matéria, mas mesmo hoje esse vídeo será valido e possível para o exame futuro de eventuais incertezas ou nulidades sobre o ato de última vontade. Mesmo o testamento secreto, regulado por nossa lei, poderá ser permitido por essa forma de vídeo, com a gravação de todas as atitudes e formalidades do testador e do escrivão e demais circunstantes até a entrega da cártula pelo notário ao testador.

Há projetos embrionários para normatizar a matéria, mas ainda há muito a ser feito e meditado, pois a temática é por demais ampla.

Aqui ficam algumas premissas para pensarmos mais profundamente sobre essa matéria que atualmente nos rodeia de forma inafastável, para normas e textos doutrinários que possam abarcá-las efetiva e progressivamente.

Obras consultadas

BORDA, Guillermo. Tratado de derecho civil: parte general. 10 ed. Buenos Aires: Abeledo Perrot, 1991. V. 1 e 2.

CADAMURO, Lucas Garcia. Proteção dos direitos da personalidade e a herança digital. Curitiba: Juruá Editora, 2019.

ITEANU, Olivier. Quand le digital défie l’état de droit. Paris: Éditions Eirolles, 12ª tiragem, 2017. 

PINHEIRO, Patrícia Peck. Direito digital. 7 ed. São Paulo: Saraiva Jur.

MONFORTE, Alessandro D’Arminio. La successioni nel patrimonio digitale. Pisa: Industrie Graphiche Pacini, 2020.

MOSSE, Cássio Nogueira Garcia (coord.). Social media law. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021.

VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil. Família e sucessões. 21 ed. São Paulo: Den-Atlas, 2021.

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