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A responsabilidade civil no transporte de pessoas

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TRANSPORTE DE PESSOAS

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23/03/2022

REVISTA FORENSE – VOLUME 148
JULHO-AGOSTO DE 1953
Semestral
ISSN 0102-8413

FUNDADA EM 1904
PUBLICAÇÃO NACIONAL DE DOUTRINA, JURISPRUDÊNCIA E LEGISLAÇÃO

FUNDADORES
Francisco Mendes Pimentel
Estevão L. de Magalhães Pinto,

Abreviaturas e siglas usadas
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Revista Forense Volume 148

CRÔNICA
Aspectos da sociologia jurídica de Gurvitch – Henrique Stodieck

DOUTRINA

PARECERES

NOTAS E COMENTÁRIOS

BIBLIOGRAFIA

JURISPRUDÊNCIA

LEGISLAÇÃO

SUMÁRIO: A idéia da culpa. Responsabilidade objetiva. A teoria do risco. Evolução doutrinaria. A cláusula da incolumidade no transporte de pessoas. Culpa do preposto. Os arts. 1.521 e 1.523 do Cód. Civil. Irresponsabilidade objetiva. Socialização do direito. Conclusão.

Sobre o autor

Nelson Hungria, Ministro do Supremo Tribunal Federal

DOUTRINA

A responsabilidade civil no transporte de pessoas

A ideia de culpa

* A idéia de culpa, como condição da responsabilidade ou reação jurídica, foi estranha ao direito primitivo. Para a reparação do dano decorrente do ato de alguém, atendia-se a um raciocínio sumário: “Tu me causaste um dano; logo, deves também sofrer um dano”. Não se cuidava do factum internum, senão, exclusivamente, do factum externum. Bastava a causalidade física, não se cogitando da causalidade moral. A responsabilidade era puramente objetiva.

O requisito da culpa, como uma noção ético-jurídica, isto é, pressupondo a censurabilidade da ação ou omissão causadora do dano, porque contrária a um dever de conduta, sob o ponto de vista da moral social, é conquista de avançada civilização. Ao direito evoluído repugnou a idéia de uma responsabilidade sem culpa. Para a responsabilidade jurídica, não é suficiente que o fato lesivo seja materialmente imputável a alguém: é preciso que o seja, também, moralmente. É certo que, aqui e ali, em casos excepcionais. Se insinuavam resíduos da grosseira concepção oriunda da fase genesíaca do direito.

No próprio campo do direito penal, que veio a impregnar-se de escrupuloso subjetivismo, se toleravam, anômalamente, como nas hipóteses do versari in re illicita, a responsabilidade sêca pelo resultado lesivo; mas isso, na atualidade, foi relegado a “museu histórico”, como um “vestígio de barbaria”.

Responsabilidade objetiva

O direito civil, com a sua facilidade de criar “ficções” e “presunções juris et de jure”, quando tem de dissimular a quebra de lógica de seu sistema, foi ainda mais complacente com a responsabilidade objetiva, mas sempre a título excepcional. O princípio nuclear é que, sub specie juris, a responsabilidade assenta na culpa, representando esta a violação de um dever jurídico-social, praticada intencional, temerária ou imponderadamente.

Foi êste o critério que prevaleceu na legislação dos povos cultos, notadamente depois das codificações. E perdurou, incontestado, em todo o curso do século XIX, que foi o século da mais alta racionalização do direito. Entretanto, as crescentes inquietudes da vida social moderna, originárias da intensidade industrial, da multiplicidade de eventos lesivos provocados pelo emprêgo das máquinas, da exacerbada luta entre o capital e o trabalho, dos agravados desequilíbrios econômicos e do estilo vertiginoso dos grandes centros urbanos, inspiraram a espíritos justamente alarmados a procura de retificações ou compensações no campo mesmo do direito, e o remédio preconizado foi, paradoxalmente, uma contramarcha ao primitivo: o retôrno, puro e simples, ao critério da responsabilidade objetiva, que se tentou justificar com especiosos argumentos.

Já na órbita do direito penal, embora por motivos outros, a chamada “escola positiva”, sôbre bases pretendidamente científicas, encabeçara o movimento de recuo ao longínquo passado, proclamando a necessidade de substituir-se a responsabilidade moral pela “responsabilidade legal ou social”, desprovida de qualquer cunho ético (“o homem é responsável porque e enquanto vive em sociedade”).

A teoria do risco

Foi um estimulo a mais para que, na esfera do direito civil, a “escola sociológica”, inculcando a substituição da teoria da culpa pela teoria do risco, propugnasse por uma generalizada extensão da responsabilidade objetiva ou de garantia. Não se satisfizeram os seus partidários com a legislação sôbre acidentes do trabalho, que representa uma transação, perfeitamente aceitável, entre as duas teorias, pôsto que admite a responsabilidade ainda na ausência de culpa, mas limitando prévia e tarifàriamente, salvo o caso de dolo, o quantum do id quod interest, em compensação da inadmissibilidade de apêlo do acidentado à responsabilidade de direito comum. Pleitearam a ampliação da responsabilidade objetiva a outros setores, notadamente em matéria de transporte de pessoas. SALEILLES e JOSSERAND foram, na França, os precursores de tal movimento.

Foi descoberto o § 1° do art. 1.384 do Cód. Civil de NAPOLEÃO, que passara até então inadvertido, e em tôrno dêle entrou-se de fazer, através de filigranas de dialética e pretensos subentendidos do texto legal, a construção jurídica da teoria do risco dentro do próprio Código de 1804. É certo que não vingou, em tôda a sua plenitude, a famosa teoria, mas deixou sulco profundo na jurisprudência francesa, que chegou mesmo a declará-la subsidiária da teoria da culpa.

Tornou-se pacífico usus fori, nos tribunais da França, que o referido art. 1.384 encerrava, no caso de dano decorrente da utilização de coisas inanimadas, uma presunção de responsabilidade do proprietário-guarda, somente elisível pela prova cabal de caso fortuito, fôrça maior ou causa estranha. que lhe não fôsse imputável.

A cláusula da incolumidade no transporte de pessoas

Nem mesmo basta que o proprietário-guarda prove que empregou a diligência devida: cumpre que demonstre a completa imprevisibilidade e inevitabilidade do evento lesivo. Em matéria de acidentes no transporte de pessoas, a responsabilidade, por um jôgo de mágica, deixou de ser aquiliana, para ser contratual. Excogitou-se que o contrato de transporte contém uma cláusula obrigacional implícita, ainda que alheia à intenção das partes ou, pelo menos, do transportador: é a chamada “cláusula de incolumidade”, ou, seja, a obrigação, por parte do transportador, de levar o passageiro são e salvo ao lugar do seu destino.

Identificou-se no contrato de transporte uma obrigação de resultado, e não simplesmente de meios. O transportador se obriga a que nenhum acidente ocorra ao transportado. Tratar-se-ia de uma obrigação de segurança determinada, e não da obrigação geral de diligência.

Está-se a ver o artificialismo da construção. É de lógica mais elementar que o transportador não seria tão rematadamente leviano a ponto de assumir a responsabilidade de levar, incondicionalmente, o passageiro são e salvo ao seu destino, sabendo que não pode impedir, senão limitadamente, sua autonomia de movimentos, ou tratá-lo como se fôra um saco de batatas ou um suíno, e que, por isso mesmo, freqüentemente ocorrem acidentes em razão da atividade própria e livre do passageiro.

O que o transportador assume, em tôda a evidência, é tão-somente a obrigação do emprêgo da diligência normal para evitar acidentes no curso do transporte e em razão dêste. Se vem a ocorrer algum acidente, responderá êle, se fôr o caso, por culpa aquiliana, segundo a regra geral, e não por fôrça de uma imaginária “cláusula contratual de incolumidade”. A álea ou freqüência de acidentes imprevistos no curso dos transportes impõe, obviamente, no caso, o reconhecimento de uma simples obrigação de prudência ou diligência. Inteiramente arbitrária é a presunção, ainda que juris tantum, de culpa do transportador. Assim como o médico não pode obrigar-se a curar o doente, senão a fazer o possível para curá-lo, o transportador não pode obrigar-se a que nenhum acidente ocorra, mas apenas a empregar a possível diligência para que não ocorra. Num contrato cuja execução apresenta freqüentes riscos não se pode criar a presunção de culpa, a não ser que se reconheça que o direito prescinde da justiça. Onde há álea, não expressamente coberta pelo contrato, é um ilogismo jurídico falar-se em culpa presumida, mesmo relativamente. Decidir de outro modo, na espécie, é desnaturar o contrato de transporte de pessoas num contrato de seguro.

Culpa do preposto

Mas não ficou nessa negação dos princípios tradicionais a jurisprudência francesa. Se o meio de transporte é dirigido por um preposto de quem aufere proveito da utilização do veículo e sobrevém um acidente por culpa do preposto, o preponente responde por presunção que não admite prova em contrário. Ao que se alega, o preposto não é mais que um prolongamento, uma longa manus, um substituto ou representante do preponente. O fato daquele é fato dêste. Provada a culpa do preposto, é presumida juris et de jure a culpa do preponente.

Infletindo-se para o franco terreno da teoria do risco, invoca-se mesmo o cujus commoda ejus et incommoda: quem quer que empreende um trabalho ou monta uma emprêsa para auferir proveito, aceita, necessàriamente, como um contragolpe, o risco de danos que êsse trabalho ou emprêsa pode causar a outrem. Semelhantes argumentos não resistem a uma análise séria. O preposto só é uma longa manus ou substituto do preponente quanto à execução normal ou regular do trabalho ou atividade incumbidos. Fora daí, põe-se à margem da relação jurídica com o preponente, assumindo posição autônoma, e a responsabilidade solidária do preponente, como postula a doutrina clássica, só será reconhecível se contribuiu com sua culpa própria, in eligendo ou in vigilando. A incondicional absorção do preposto pelo preponente só é concebível dentro da extravagante teoria do risco, da qual já se disse, e com razão, que, adotada na sua pureza, redundaria na paralisação de tôdas as atividades lucrativas. O binômio proveito-responsabilidade, dos teoristas do risco, é, no setor da atividade de transporte, irrecusàvelmente inadequado. Os meios de transporte, afeiçoados ao atual teor da vida urbana ou comunicação interurbana, são uma imprescindível utilidade coletiva. O risco criado na espécie, portanto, não é individual, mas coletivo. As emprêsas de transporte, em adequação com a vida moderna, não são apenas fonte de lucro para os seus proprietários, senão também um relevantíssimo proveito para a coletividade. Chocantemente injusto será, então, atribuir-se o risco à responsabilidade exclusiva do transportador. Diz-se que há a atender à nova corrente de idéias que se denominou “socialização do direito”. Mas que socialismo jurídico é êsse que faz corresponder a um proveito geral a responsabilidade exclusiva de um só? A um proveito social deve corresponder uma responsabilidade social, e não uma responsabilidade individual. Como justamente acentua GOLDMANN, há irreconciliável contradição entre a noção individual da responsabilidade e a “preocupação social de proteção da vítima”. Argúi-se que a aplicação da teoria do risco, na espécie, obedeceria ao moderno slogan no sentido da defesa dos econômicamente fracos em face dos econômicamente fortes. Ora, as vítimas dos acidentes de transporte tanto podem ser pessoas pobres quanto ricas, e seria insustentável ilogismo que passasse a ser privilégio da pobreza, sem qualquer temperamento, o direito à indenização com fundamento na responsabilidade sem culpa.

Para remediar ou atenuar as conseqüências dos acidentes de transporte, crie-se o seguro obrigatório, segundo fórmulas viáveis, como já se fêz, aliás, no transporte aéreo e nos acidentes do trabalho; mas não se queira subverter os fundamentos do direito formulado pelo sentimento de justiça e pela experiência dos séculos, revivendo o barbarismo da responsabilidade objetiva.

No Brasil, onde não se perde a preocupação de emitir fumaça quando o Velho Mundo acende fogo, cuidou-se de importar a jurisprudência francesa. Não tínhamos, é certo, a cêra mole do art. 1.384 do Código de NAPOLEÃO, mas tínhamos, para apoio da presunção de culpa, o revogado dispositivo de uma lei de 1912 sôbre estradas de ferro. A taumaturgia dos intérpretes tratou de ressuscitar o defunto. E fêz-se mais: abstraiu-se, pretorianamente, o elementar princípio jurídico de que a lei que abre exceções e regras gerais só abrange os casos que específica, e, por pretensa analogia, estendeu-se a aplicação do redivivo jus singulare a todos os meios de transporte coletivo, a começar pelos bondes e a rematar nos autolotações. Forçou-se uma analogia que não existe. Não há comparar o trem de ferro com os meios de transporte urbano; naquele, o passageiro como que se entrega à mercê do transportador e muito menores são os riscos de acidentes, dadas as próprias condições e circunstâncias em que o tráfego se realiza. E se entre êle e o bonde há a semelhança de rodar sôbre trilhos, nem mesmo isso o aproxima dos ônibus, dos “fominhas” ou dos autolotações.

Os arts. 1.521 e 1.523 do Cód. Civil

O art. 1.523 do nosso Cód. Civil, que exige, para o efeito de responsabilidade do preponente, a concorrência de culpa dêste com a do preposto, passou a ser um caput mortuum. Lobrigou-se radical incompatibilidade entre êsse artigo e o art. 1.521, de que é complemento. Abstraiu-se que um e outro gravitam na esfera de disciplina da responsabilidade aquiliana ou delitual, para afirmar-se que o 1.521 estabelece uma irrestrita “responsabilidade indireta” ou presunção absoluta de culpa concorrente, que o 1.523 renega. Tomou-se de empréstimo à jurisprudência e doutrina francesas a trouvaille da “cláusula de incolumidade” nos contratos de transporte, para argumentar-se que o fato mesmo do acidente importa a presunção de culpa do transportador.

É, positivamente, o direito fora dos textos legais e do próprio raciocínio lógico. Não há contraste algum entre os dois citados artigos. Evoluem ambos na órbita da responsabilidade extracontratual ou na zona de influência ou de projeção do art. 159, segundo o qual “aquêle que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano”, excluída qualquer presunção de culpa.

Não é exato que o art. 1.521 encerre culpa presumida ou responsabilidade indireta. O parág. único do art. 1.518, ao dispor que “são solidàriamente responsáveis com os autores (do ato ilícito) os cúmplices e as pessoas mencionadas no art. 1.521”, não quer significar que estas responderão ainda que não haja de sua parte contribuição de culpa, in committendo ou in omittendo.

Respondem solidàriamente os cúmplices porque contribuíram dolosa ou intencionalmente na causação do evento lesivo, e as pessoas designadas no artigo 1.521 ainda quando sua contribuição tenha sido meramente culposa, conforme vem a explicar, com tôdas as letras, o art. 1.523. O nosso legislador de 1916 distanciou-se deliberada ou conscientemente do modêlo francês e não quis, sequer, aceitar a sugestão do art. 831 do Cód. Civil alemão, que êle tantas vêzes folheou e que admite, na espécie, uma presunção juris tantum de culpa.

Ficou com a doutrina clássica, que não compreende presunção de culpa, absoluta ou relativa, em matéria de dano aquiliano. A pretendida antinomia entre os arts. 1.523 e 1.521 sòmente pode resultar do troppo raggionare, que transforma as coisas mais simples e mais claras em novelos emaranhados ou chapéus pretos em quarto escuro.

Um aresto do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, da lavra do provecto desembargador SABÓIA LIMA, citado e louvado por CARVALHO SANTOS, assim disserta: “…basta provar-se a culpa do substituto (empregado ou preposto) para haver-se como provada a culpa do substituído (patrão), porque, atendendo-se ao princípio que determina a responsabilidade neste caso, verifica-se que não se trata senão da aplicação da responsabilidade pessoal, porque o representado, que responde pela falta alheia, comete um quase-delito, incorrendo em culpa in eligendo ou in vigilando, culpa pela escolha do preposto, ou culpa por falta de vigilância, pois que é obrigado a escolher bons prepostos, e, se não os escolhe, responde diretamente por culpa sua (já aqui não se fala em “responsabilidade indireta”, como faz outro julgado do mesmo Tribunal), pôsto que os fatos que violaram o direito de outrem sejam cometidos pelo representante, preposto ou empregado do responsável”.

Ora, semelhante raciocínio é tudo quanto há de mais desarrazoado ou inconsistente: admite que a prova de culpa do preposto é a prova de culpa do preponente, porque êste teria faltado com a devida diligência no escolher ou no vigiar aquêle, mas não explica o porquê dessa falta, redundando num intolerável apriorismo.

De todo inaceitável seria reconhecer-se que o simples fato da ocorrência do evento lesivo por culpa do preposto demonstra a culpa in eligendo ou in vigilando do preponente. Os prepostos, por mais hábeis ou mais escrupulosamente escolhidos, não são os gênios da atenção ou da prudência, e não estão isentos de dar causa, culposamente, a eventos lesivos. Por outro lado, o preponente não pode fazer-se a própria sombra do preposto, para vigiar-lhe, a todos os momentos, a atividade funcional.

Irresponsabilidade objetiva

De uma feita, como relator de um acórdão do mesmo Tribunal, a que já tive a honra de pertencer, assim me pronunciei, resumindo os motivos do meu voto vencedor: “É injustificável a jurisprudência que, apoiando-se na teoria do risco, interpreta o art. 1.523 ao arrepio do seu texto, claro e iniludível. Sôbre apresentar-se contra legem, tal jurisprudência revela-se inteiramente alheia ao teor da vida contemporânea.

A civilização atual oferece ao homem inúmeros commoda, entre-os quais a rapidez dos transportes, tornando-se intensíssimo, nos grandes centros urbanos, o trânsito de veículos na via pública. É justo, portanto, que o homem citadino até certo ponto suporte os incommoda que possam daí resultar, como contragolpes. Há uma álea de acidentes de que não pode querer indenizar-se, invocando uma indefensável responsabilidade objetiva das emprêsas de transporte. O art. 1.523 do Cód. Civil é incensurável: em face dêle, as emprêsas de transporte não respondem pelos danos decorrentes de atos ilícitos de seus prepostos senão quando provada sua culpa in iligendo ou in vigilando”. A êste trecho do acórdão, o emérito AGUIAR DIAS, com “punhos de renda”, fêz a seguinte crítica: “O que fêz o eminente magistrado, que só nos merece admiração, é estabelecer, contra a responsabilidade objetiva, a irresponsabilidade objetiva. Vale-se mesmo da fórmula dos partidários da teoria do risco, invocando a máxima ubi emolumentum, ibi onus, apenas invertendo o sujeito a quem é dirigida.

Se é justo que o homem citadino suporte as desvantagens da civilização como contraprestação das utilidades que ela lhe proporciona – expressão acabada do risco de viver na cidade, – porque não poderá a emprêsa, que recolhe os commoda da exploração, suportar, com mais justiça, os incommoda que ela lhe traz?”.

No mesmo diapasão afina o eminente ministro OROZIMBO NONATO, em réplica a um voto meu no Supremo Tribunal Federal: “Não é de hoje que divirjo de S. Exª, radicalmente, absolutamente, porque S. Exª chega até a aplicar ao caso técnica própria da teoria do risco contratual, para considerar que o indivíduo que vive no gôzo dos benefícios das cidades tentaculares tem de suportar os riscos daí decorrentes. É a teoria do risco empregada exatamente para justificar a da culpa e contra o indivíduo desarmado e que, muitas vêzes, tem do esplendor das metrópoles apenas tantalismo…O benefício resume-se, muitas vêzes, nas batalhas perigosas do trânsito.

Evidentemente, fui mal compreendido pelos meus ilustres opositores. O que sustento não é a irresponsabilidade objetiva das emprêsas de transporte, o que seria tão absurdo quanto à sua pretendida responsabilidade objetiva. Meu raciocínio é outro: a atividade de transporte não é apenas uma fonte de lucros para quem a explora, pois representa, também, inegàvelmente, uma utilidade geral, um benefício coletivo, um proveito social, e, assim, não é justo que os riscos de tal atividade fiquem irrestritamente a cargo das emprêsas de transporte, ou que estas respondam ainda quando não se apresente efetiva culpa dos seus prepostos ou contribuição de culpa própria dos preponentes na produção do evento lesivo, e isto em contradição com o próprio art. 17 da lei de 1912.

Semelhante critério de decidir, como é sabido, tem levado, sucessivamente, à falência e conseqüente paralisação, com grave prejuízo do bonum commune omnium, várias emprêsas transportadoras, cujos capitais e lucros não puderam fazer face ao montante das vultosas e freqüentes indenizações a que foram condenadas. Insurgindo-me contra os que tentam justificar a responsabilidade objetiva dos transportadores, procuro demonstrar, com argumentação idêntica, que será também justificável a irresponsabilidade objetiva dêstes, mas, como, num caso e noutro, os resultados seriam deploráveis e avessos à justiça, o que se impõe, inelutàvelmente, é persistir-se na teoria da culpa, que a nossa lei civil expressamente consagra e nos vem da inexcedível sabedoria dos romanos, que, como diz ANATOLE FRANCE, com justeza quase impecável, “legislaram para a eternidade”.

O que impugno e reimpugno é a jurisprudência que, mesmo no caso do desconhecimento das causas do evento lesivo, ou quando êste deriva de fato da vítima ou de terceiro, conjugados, concausalmente a fatos que a vida nas metrópoles tornou normalíssimos, não vacilam em afirmar a responsabilidade dos transportadores, por presunção juris et de jure, o que vale o mesmo que responsabilidade objetiva. Tome-se, por exemplo, o caso em que o acidente, causado por fato de terceiro ou falta da vítima, colhe esta a viajar no estribo do bonde: entende-se que há culpa do preposto dirigente do veículo aliada à culpa da emprêsa-preponente, que é, assim, obrigada a reparar o dano, sem qualquer abatimento do respectivo quantum.

Ora, a culpa pressupõe, conceitualmente, uma anormalidade de conduta, e ninguém pode contestar que já se integrou nos hábitos da população citadina, notadamente nas horas do rush, o viajar nos estribos de bondes já lotados. Isto passou ao rol dos fatos triviais ou corriqueiros. É o que acontece todos os dias e o que tôda a gente faz. É o quod plerumque fit, o que normalmente se pratica. Recentemente, na Capital Federal, um juiz, ao conceder sursis a um motorneiro de bonde, condenado por lesões culposas, impôs-lhe a condição de não mais permitir os “pingentes”. E claro que o motorneiro não cumpriu a condição e veio mesmo a declarar, de público e raso, que não a cumpriria. Pois bem; a opinião pública ficou ao lado do motorneiro, e o juiz tratou de revogar, não o sursis, mas a condição imposta.

É que já está apoiado pela consciência geral o costume inveterado de viajar no estribo. Como se pode, então, reconhecer conduta anormal das empresas de bonde e seus prepostos com o assentirem nesse hábito cotidiano, que entrou na álea de perigos geralmente consentidos, e contra o qual, aliás, seria inútil qualquer oposição, a não ser com o apoio da autoridade policial (e, ainda assim, com o sério perigo de conflitos e violências), ou com a paralisação da marcha do veículo em detrimento dos outros passageiros? Objeta-se que as emprêsas deviam aumentar o número de veículos ou sòmente fazer correr bondes fechados. Como falar-se em acréscimo do número dos honrados, barateiros e democráticos bondes, se os já existentes são a causa máxima do congestionamento do trânsito nas grandes cidades? E quanto ao uso de bondes fechados, num país onde a temperatura atinge 40 graus centígrados, seria assim como o uso de cobertores no inferno, acrescendo que a desalojada clientela dos estribos exigirá o aumento de circulação dos bondes, com o já notado inconveniente de pletora do tráfego.

Fechados, já é uma extravagância que o sejam os ônibus, cujo interior abafadiço constitui um verdadeiro suplício nos dias de verão. A contra-indicação dos recursos preconizados apenas revela o “beco cego”, em que se colocam aquêles que, na espécie, querem conciliar coisas que gritam de susto quando se defrontam, ou seja, a teoria da culpa e a teoria do risco.

Admitamos, porém, que êles tenham razão. Acreditemos, com a cegueira da fé, na incrível “cláusula de incolumidade” implícita no contrato de transporte de pessoas. E raciocinemos: se o passageiro se dispõe a viajar no estribo do bonde, é evidente que o faz por sua conta e risco, aceitando o maior perigo ou expondo-se a êste voluntàriamente. O transportador sòmente assume os riscos, como é claro, no pressuposto de que o passageiro se submeta às condições de segurança que lhe oferece; de modo que, se o passageiro as despreza sponte sua, há uma alteração do contrato, cancelando-se a tal cláusula de incolumidade. Ou isto é lógico, ou a lógica já deixou de ser a coerência do raciocínio.

Socialização do direito

Como é dos nossos estilos, o fervor com que comungamos de idéias alienígenas sempre nos faz dispostos a levar o disco além da meta. Assim é que, enquanto a jurisprudência francesa, na espécie, depois de introduzir a teoria do risco como subsidiária da teoria da culpa, já cuida, atualmente, de rever a si própria, para admitir, com maior facilidade, a falta da vítima ou o fato de terceiro como excludentes da responsabilidade do transportador, os nossos juízes e tribunais se empenham, cada vez mais, no caminho da teoria do risco, para identificarem a responsabilidade do transportador ainda em casos que, em relação a êle, constituem a mais característica infelicitas facti.

Não há muito tempo, no Rio de Janeiro, quando um bonde da Light penetrava no túnel do Pasmado, ocorreu o desabamento parcial dêste, tendo sido atingidos vários passageiros. Não obstante a culpa exclusiva dos engenheiros da Prefeitura, constituindo o fato, no tocante à emprêsa transportadora, um macroscópico caso fortuito, foi a última condenada à indenização das vítimas ou seus parentes, sem desconto de um centavo. Mais ainda: proclama-se a responsabilidade inteira do transportador ainda quando o acidente resulta de vício intrínseco do veículo, exclusivamente imputável ao fabricante e inacessível ao conhecimento do transportador. E assim por diante, num crescendo alarmante da mais crua responsabilidade objetiva. Afirma-se e reafirma-se que isso é uma louvável socialização do direito. Oponho, veementemente, os meus embargos.

A socialização do direito não pode conduzir a um direito sem justiça. É a justa advertência de ROUBIER: se a socialização perde de vista a justiça, vai redundar numa filosofia intolerantemente utilitária, aliando-se à consagração política que fundamenta os regimes populares, e é de prever-se que a procura do bem-estar das massas, ao esboçar-se uma crise, pode atingir resultados desordenados. O sentimento de justiça, na sua estratificação profunda, não existe no seio das massas populares, que o não experimentam senão quando se sentem prejudicadas, e são indiferentes à lesão do direito dos outros.

A justiça não pode ser percebida, em tôda a sua plenitude, senão por uma elite. Resulta daí que o direito dos regimes populares, construído sôbre bases de costumes mais ou menos racionais e necessidades sociais fortemente sentidas, pode evoluir ràpidamente para a injustiça. E que é um direito sem justiça? Depois de formular esta pergunta, prossegue ROUBIER: “Aqui, ainda, os juristas da escola sociológica não puderam ficar insensíveis a êsse resultado, e os mais eminentes (como LÉON DUGUIT) tiveram de colocar como fundamento do direito, ao lado das necessidades da vida em sociedade, o sentimento da justiça: é a confissão e que o realismo jurídico, se pode inspirar um certo número de regras, não está, entretanto, em condições de as fundamentar tôdas e, em conseqüência, não é um apoio suficiente de tôda a ordem jurídica”.

E a socialização do direito, digo eu, terá de ser feita pelo legislador, e não pelo juiz, que não pode julgar das leis vigentes, deixando de aplicá-las, a pretexto de que não correspondem ao que êle entende por “boa política social”. Contesto formalmente, de lege ferenda, o acêrto do critério jurisprudencial de que ora se trata; mas, como quer que seja, não pode haver dúvida que êle traduz, atualmente, uma negação frontal do Cód. Civil pátrio.

Nota

* N. da R.: Conferência prenunciada na Faculdade de Direito da Bahia, a 20 de abril de 1953.

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