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Posição do juiz na democracia

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REVISTA FORENSE 148

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25/03/2022

REVISTA FORENSE – VOLUME 148
JULHO-AGOSTO DE 1953
Semestral
ISSN 0102-8413

FUNDADA EM 1904
PUBLICAÇÃO NACIONAL DE DOUTRINA, JURISPRUDÊNCIA E LEGISLAÇÃO

FUNDADORES
Francisco Mendes Pimentel
Estevão L. de Magalhães Pinto,

Abreviaturas e siglas usadas
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Revista Forense Volume 148

CRÔNICA
Aspectos da sociologia jurídica de Gurvitch – Henrique Stodieck

DOUTRINA

PARECERES

NOTAS E COMENTÁRIOS

BIBLIOGRAFIA

JURISPRUDÊNCIA

LEGISLAÇÃO

SUMÁRIO: Um brado de alarme. Bons e maus juízes. A linguagem do juiz democrático. Dever de obediência hierárquica. Valor dos precedentes e da jurisprudência dos Tribunais superiores. O mancado de segurança e sua caracterização. Defesa das liberdades públicas. A responsabilidade dos juízes.

Sobre o autor

José de Aguiar Dias, juiz no Distrito Federal

DOUTRINA

Posição do juiz na democracia

Um brado de alarme

* Venho lançar aqui um brado de alarme. Nossas majestosas montanhas são bem o lugar adequado para êste grito de alerta. Delas se ouve melhor.

Conspira-se, no país, contra o Poder Judiciário. Se alguns, muito poucos, de seus membros justificam recriminações, se outros, também poucos, arvoram bandeira de capitulação, a sua grande maioria se conserva fiel à sua missão e, por isso mesmo, perturba e desagrada os que não querem dar contas ou presta-las ou submeter-se à lei.

Conspira-se, então, por via de intimidação. Uma imprensa corrupta, cuja voz não disfarça o tinir da moeda em seus balcões, assaca tôda a sorte de infâmias sôbre decisões judiciais. O côro organizado responde, traindo a origem comum do desafio. Já se envolve na campanha, com a proverbial pachequice que entre nós finge de gravidade e de equilíbrio, órgãos jornalísticos tidos como austeros. Se entram de boa-fé na mesquinha aventura, ouçam. Se é a improbidade que os move, a serviço de interêsses subalternos visíveis, tenham, ao menos, a lealdade de tirar a máscara.

Mas é hora da denúncia, que entendo bem enquadrada na definição da posição do juiz na democracia.

Bons e maus juízes

Bons e maus juízes sempre andaram por êste Mundo de Deus. Mas a crítica pérfida não envolve – parece incrível – os piores defeitos dos magistrados. Há uma impenetrável barreira de silêncio em relação à prevaricação, à covardia, à desídia funcional, ao servilismo perante a força. Se isso fôsse, como se pretende, atitude de discrição, para poupar a classe do escândalo, igual procedimento se deveria ter com os juízes independentes, que riscam com mão firme a sua trajetória pela mais ingrata das ocupações humanas, dando a cada um o que é seu, fustigando o êrro, arrostando a ira dos poderosos para proteger o cidadão, desempenhando, enfim, o papel que lhe cabe nas sociedades organizadas.

Formo, perdoai a imodéstia, entre os juízes que levam a sério a sua missão. Desculpai, pelo amor que tendes aos bons juízes, que eu me reveja nêles. Se incido em ilusão, não calo no pecado do orgulho, que o meu único é de pertencer à magistratura do meu país. Por êsse orgulho, não cesso de esforçar-me por ser digno dela e da responsabilidade que ela me impõe.

O libelo foi articulado. É verdade que no tom das generalizações covardes, para que as insinuações façam todo o mal, sem nenhum. :isco para o murmurador tartufo. Levanto a luva, na intratável disposição de nunca ceder. A calúnia, à intriga, gerada na inveja, às restrições envolvidas em louvor hipócrita, oporei combate aberto, forrado em leal desejo, não, de melhorar o que é irremediàvelmente mau e vil, mas de prestar serviço à Justiça. A luta, de sobra o sei, é perigosa. Não há cavalheirismo em quem persegue o lucro ou em quem, ainda pior, cultiva a estranha violência do servilismo, que abafa o instinto, contraria a tendências naturais e trai ominosamente a responsabilidade de ser homem.

Em quem, porém, é religião ser fiel à verdade, em quem não influem, nem as riquezas, nem a fascinação do poder, em quem, humilde de origem, nunca a esquece, em devoção constante à generosidade da Providência, que já lhe deu mais do que esperava, os golpes mais ferozes e o próprio esgotamento na peleja não infundem temor. Os versos imperecíveis do poeta inglês tornam irrisória a vitória da violência:

Minha alma se fortifica em saber que, embora eu pereça, essa é a verdade.

É que, como também êle diz:

É melhor ter lutado e perdido

Do que nunca ter lutado.

No centro de interêsses e paixões, interêsses legítimos e interêsses viciosos, paixões humanas e compreensíveis, e paixões da mais odiosa inspiração, o juiz tempera cabeça e coração. Como homem, está sujeito à influência do meio. Como elemento da sociedade em que vive, seu lugar não é na torre de marfim do aristocrata. Seu lugar é o de qualquer outro cidadão, tanto mais próximo do que deve ser quanto mais integrado na consciência de homem comum. Isolado, nunca apreenderá os problemas que agitam o homem da rua. Será, o pernicioso, jurista de gabinete, frio como um batráquio, inflexível como um gênio mau, automatizado como um robot, desumano como um demônio, odioso como um flagelo.

Se, temendo ser assim, temendo ser negação e treva, iniqüidade e castigo, dureza e opressão, quer o juiz ser afirmação e claridade, bênção e prêmio dos justos, caridade e refrigério, alívio e esperança, é preciso que relegue a esquecimento a concepção aristocrática que um dia já longínquo foi a marca da magistratura. Mas, por ter os pés firmemente plantados na terra, olhos e ouvidos atentos, coração aberto, compreensão do meio, tolerância aos erros inocentes, não se siga que não tem serenidade.

A linguagem do juiz democrático

A serenidade que interessa à democracia é a que atende ao preceito da igualdade de todos perante a lei. Se esta é observada, há serenidade. Se ela não existe, a máscara que alguns têm por serenidade é indigno disfarce da insensibilidade. Serenidade no juiz democrático é isenção.

A linguagem do juiz não pode ser linguagem de áulico: O excesso de zumbaias, insuportável em qualquer homem, é, no juiz, índice de êrro na vocação. Quem nasce para cortesão, pode ser um sucesso na mais nobre carreira humana, mas será sempre um triste, degradado servidor da toga. No riso irônico com que se acompanha a sua ascensão, há mais fel e vinagre do que na esponja freqüentemente provada pelo justo. Ao lado dos cortesãos militar os mudos. Refugiam-se, na magistratura, do cruel enjôo que o mar encapelado da advocacia produz nos incapazes. Não falam porque não podem, mas aparentam a discrição de oráculos. Sentenciosos por imposição de sua insuficiência, desenvolvem uma astúcia peculiar, que acaba por fantasiar a incapacidade em virtude.

Não é essa a linguagem do juiz democrático. No regime a que serve, sua posição é resguardada com luxo de prerrogativas, para que fale a linguagem da verdade.

A obrigação de ser digno dessas garantias é imperativa e incontrastável. O juiz democrático não pode ser menos corajoso, ou menos virtuoso do que o juiz que TOCQUEVILLE retratou:

“Ce qui assurait surtout dans ce temps-là aux opprimés un moyen de se faire entendre était la constitution de la justice. Nous étions devenus un pays de gouvernement absolu par nos institutions polítiques et administratives, mais nos étions restés un peuple libre par nos institutions judiciaires. Le justice de l’ancien régime était compliquée, embarassée, lente et coúteuse; c’étaient de grands défauts, sans doute, mais on ne rencontrait jamais chez elle la servilité vis-à-vis du pouvoir, qui n’est qu’une forme de vénalité et la pire. Ce vice capital, qui non seulement corrompt le juge, mais infecte bientôt tout le corps du peuple, lui était entièrement étranger. Le magistrat était inamovible et ne cherchait pas à avancer; deux choses aussi nécessaires une que l’autre à son independence; car qu’importe qu’on non puisse pas le contraindre si on a mille moyens de le gagner?

Il est urai que le pouvoir royal avait réussi à dérober aux tribunaux ordinaires la connaissance de presque toutes les affaires où l’autorité publique était interessée; mais il les redoudait encore en les dépouillant. S’il les empêchait de juger, il n’osait pas toujours les empêcher de recevoir les plaintes et de dire leur avis; et comme la langue judiciaire conservait alors les allures du vieux français, qui aime donner le nom propre aux choses, il arrivait souvent aux magistrats d’appeller crûment actes despotiques et arbitraires les procedés du gouvernement”.

Não é, pois, a linguagem do juiz, não será seu estilo, como não pode ser sua franqueza que, por ser franqueza, têm, muitas vêzes, que ser rude, defeito que o comprometa no desempenho de seu alto ministério. No juiz do Estado democrático – está implícito na formação que se lhe exige – não cabem poetas alambicados, de sexo, opinião, maneira de ser e de dizer indefinidos, de jardineiros de eufemismos.

É ofício de homens, que requer, na mesma pessoa, um D. Quixote, um Cirano, um Moisés, um São Francisco. Como síntese de tudo isso, um pouco do Cristo, tão esquecido na sua memorável ação corretiva contra os vendilhões do templo. Viesse êle ao mundo em que vivemos e não tomasse muito do rapé conselheiral da imprensa sadia, tão mòrbidamente sadia, que nos dita figurinos para juízes: seria crucificado antes da hora, por falta de serenidade e mania de publicidade. Deus me livre de ser sacrílego. Mas a comparação é inevitável.

Homem público, o juiz democrático funciona às claras. Encaramujar-se o juiz como feiticeiro de tribo, ditando sentença por entre fumaças misteriosas, importa amesquinhar o alto sentido de sua tarefa, que é assegurar a paz entre homens conscientes.

Não é modéstia, mas sonegação a crítica honesta, furtar-se o juiz a proporcionar dados para exame de sua atuação. Não pode, na democracia deixar de render contas, quando solicitado.

O que não se permitiria ao juiz seria obter propaganda de méritos que não tem ou, ainda que os tenha, de qualquer forma solicitá-la. Mas a imprensa sadia, ainda quando afirme o contrário, sabe que isso não é possível a juízes que ganham parcamente, como os juízes brasileiros, sustentam decorosamente a família, e se endividam para comprar livros e pagar prestações da humilde casa própria. E sabem, porque os Shyloks que a dirigem não fazem favores. Medem linhas a bons cruzeiros, trocam publicidade por benefícios oficiais, inclusive silêncio complacente para serventuários relapsos.

Se publicidade aparece, pois, realçando qualidades reais ou imaginárias de juízes, de duas uma: ou têm mesmo virtudes, com tal fôrça que obrigam a registro, ou estão sendo utilizados como máquinas de fazer dinheiro, pela ressonância que tais pregões encontram na opinião pública. Culpá-los pelo fato é pura hipocrisia.

Se estivesse em minhas mãos, se tivesse qualquer influência nos jornais, não passaria dia sem proclamar, por exemplo, as excelsas qualidades do maior juiz do Brasil, o ministro OROZIMBO NONATO. Isso não lhe arrepiaria sequer a armadura do caráter inteiriço, nem o picaria o demônio do orgulho.

Mas que estímulo para os juízes mais moços, com essa soberba, exemplar figura de juiz e de sábio a imitar!

Procura-se reduzir o juiz, que enverga a toga dos deuses, a copista, fazendo-o vestir libré de lacaio. Não somos escravos, somos senhores, pois, como diz WILLIAM A. ROBSON, a respeito do juiz: “He fills a public office, which is by no means the same thing; and part of his independence consists in the fact that no one can give him ordens as to the manner in wich he is to perform his work. Like the more fortunate practicioners in some professions, he owns no master”.

Nenhuma subordinação o vincula. Só esta sujeito à lei, à sua consciência e ao seu Deus.

É fiador da liberdade do cidadão, conforme acentuava TOCQUEVILLE, na sua “Viagem à Inglaterra”:

“A mais salutar de tôdas as instituições que se pode criar para pôr ao alcance do indivíduo os meios de trabalhar pela sua felicidade é a criação de uma justiça realmente independente, que funcione em círculo cada vez mais amplo que aquêle em que a encerramos”.

Sem nenhuma dúvida, isso implica o risco de conflito com as autoridades do Executivo, muito freqüentemente embriagadas pela vertigem do poder e pela prática do arbítrio. Mas, a maior ou menor habilidade de que seja dotado o juiz só é virtude enquanto não signifique transigência com as exorbitâncias dos agentes do outro Poder. Falar em abuso, para qualificar, caluniosamente, a atuação de juiz que enfrente demasias do poder, é desconhecer quanta bravura de ânimo, quanto desprendimento, quanto esquecimento de si mesmo e dos que lhe são caros se impõem ao juiz, para arrostar o desagrado, a irritação, a presunção ignorante, o vício de mandar – tudo isso trabalhado pelos chacais da intriga – que caracterizam autoridades mal formadas na escola da democracia ou instruídas em cursos totalitários.

Não há problema, quando a ordem judicial é acatada ou quando o juiz se encolhe, com mêdo de figurar nos jornais, com mêdo de não ser promovido ou com puro mêdo físico de impor a sua autoridade em xeque.

Como doutrina ANGEL OSSORIO, “o Poder Judiciário tem que ser, não só tão forte e independente como o Parlamento, o governo e o chefe de Estado, como mais forte e independente que todos êles, pois a todos pode julgar e condenar. A função é tão transcendental que faz do Poder Judiciário o poder supremo por excelência”.

A função judicial restrita às controvérsias entre particulares, adverte, por outro lado, GINO GORLA, “è cosa ben mísera, specialmente là dove, comme nello stato moderno, le funzioni amministrativi dello stato e le relative controversie aumentano ogni giorno, mentre diminuiscono quelle fra privati. Un giudice che giudica solo fra privati si riduce ad una “longa manus” del governo…”.

Homens de bom natural, na função de juiz, não podem, pois, vexar os outros poderes só pelo gôsto de os ver em dificuldades. Se recriminam, ou repelem, ou punem, certeza haja de que, de uma forma ou de outra, foi esquecida a primazia que se lhes deve, com ofensa a princípios e normas, deveres e obrigações, de cuja observância o juiz é guardião, porque, tudo podendo para os demais, nada pode para si mesmo.

Dever de obediência hierárquica

O juiz democrático não se inclui no rol dos funcionários adstritos ao dever de obediência hierárquica.

Nos regimes de coloração totalitária mais carregada, tal subordinação, que contrasta com a independência assegurada na democracia, como essencial às instituições, é lógica decorrência da concepção política, que envolve sintomático menosprêzo pelos juízes.

Assim, nenhum magistrado de primeira instância é obrigado a guardar respeito, em suas decisões, aos pronunciamentos da instância superior.

Na crise negativista que atravessamos, essa trivialidade, que o homem comum não desconhece, passou a constituir uma tese, encobrindo propósitos de intimidação e de difamação.

Ora bem. Colhi, no opulento repositório de votos do príncipe dos juízes brasileiros, o ministro OROZIMBO NONATO, estas preciosas definições:

Valor dos precedentes e da jurisprudência dos Tribunais superiores

“Não é o juiz obrigado a uma sequacidade cega, a uma obediência servil aos julgados dos juízes superiores. O que êle tem que respeitar, como qualquer juiz, é o império da res judicata. Mas não se acha grilhetado à tirania dos casos julgados, dos precedentes judiciários, partam embora de tribunal superior. Dessa liberdade salutar, sempre usei reverentemente, quando juiz do Tribunal de Apelação de Minas. É natural que, agora, indique o mesmo direito para os juízes de instância inferior. A consulta à jurisprudência do egrégio Supremo Tribunal é sempre aconselhável como fonte precisa para a inteligência da lei. Ela, entretanto, não se impõe como norma obrigatória de julgamento” (habeas corpus n° 28.304, de 21-10-1942, “Diário da Justiça” de 8-4-43, pág. 1.755).

“Enteado que a jurisprudência do Supremo Tribunal, pôsto deva ser sempre consultada, não impõe cega sequacidade. Nem seria próprio a um juiz decidir sem plena autonomia mental e moral” (rec. ext. n° 18.791, “Diário da Justiça” de 23-3-1953, pág. 931).

“É certo que os precedentes não obrigam. Desde o Tribunal de Minas, sempre me levantei contra a tirania dos julgados e entre os deméritos que tenho não se pode contar o da subserviência, o da sequacidade cega e obstinada à jurisprudência” (rec. ext. n° 4.235, “Diário da Justiça” de 2-2-1943, pág. 585).

“A jurisprudência tem, necessàriamente, variações, separando interpretações menos acertadas e anteriormente aceitas.

“Tais variações constituem, quando orientadas para a verdade, para a pureza dos princípios, um fator indispensável da evolução do direito e é, nesse sentido, que BRUGI proclama estar o juiz moderno menos prêso que o antigo à “tirania delle communes opiniones e delle “res judicatae” (ag. de petição n° 8.181 (embs.), acórdão de 5-8-1941, “Diário da Justiça” de 4-11-1941, pág. 2.643).

“…Só existe jurisprudência quando ocorre uma série contínua de julgados indiscrepantes – “rerum perpetuo simi-liter judicatorum”.

“Apenas se pode falar de precedentes judiciários, através de escassos julgamentos trabalhados de controvérsias e dúvidas” (rec. ext. n° 6.726, “Diário da Justiça” de 3-2-1943, pág. 621).

“A ocorrência de julgados divergentes e todos êles trincados de votos vencidos não pode constituir a jurisprudência a que muitos dão tanta valia que a coloquem como uma das fontes do direito. A jurisprudência a que o imperador dava autoridade suplementar da lei – “rerum perpetuo similiter judicatorum auctoritatem vim legis obtinere debere” – não se forma de julgados discrepantes e voltários, senão de uma longa série uniforme de decisões” (habeas corpus n° 29.304, de 21-10-1942, “Diário da Justiça” de 8-11-1943, pág. 1.757).

“A jurisprudência pátria varia como os ventos que sopram do quadrante” (AFONSO FRAGA, “Direitos Reais de Garantia”, págs. 163 e segs. – citação de OROZIMBO NONATO).

Por sua vez, PEDRO LESSA, outro sábio, ensinava:

“… uma decisão judicial só vale como argumento para um juiz pelas razões, pelos raciocínios, que encerra, e nunca pelo decreto judicial. Se o fato de ter decidido mal uma ou mais vêzes, fôsse motivo jurídico para sempre decidir do mesmo modo, a jurisprudência seria o pior de todos os inimigos do direito” (“Rev. de Direito”, vol. 59, pág. 311).

Mas subordinação existe, para com o juiz, de parte de serventuários. Aquêle que, aliando a essa qualidade a de jornalista, se permite crítica desrespeitosa a juiz, como, por exemplo, a atribuição de procedimento indiscreto, por motivos subalternos, de abuso de poder, com esquecimento dos deveres funcionais, e até a insinuação de prevaricação, que outra coisa não é referir que o magistrado decide em favor de criminosos, falta iniludivelmente a êsse dever de hierarquia. Pode ser punido por isso, desde que o juiz entenda e desde, também, que as censuras escritas contenham maior percentagem da coragem de afirmar com clareza, saindo do campo das vagas acusações, que podem ser desclassificadas – e são – para o vasto escoadouro do articulado sem enderêço.

Reivindico, com tôdas as fôrças, verdadeira posição de governo para o juiz democrático. Não advogo novidade, que êsse modo de pensar é velho: “O juiz”, dizia PORTALIS, “se associa ao espírito da legislação. É sempre porque a lei é obscura e insuficiente que há matéria para litígios. Para que os negócios da sociedade possam marchar, é preciso, pois, que o juiz tenha o direito de interpretar as leis e de supri-las”.

HAURIOU, a seu turno, com o saboroso espírito gaulês, que não considera pecado ter senso humorístico (o presidente DE ROSE fazia versos jocosos em plena sessão do Tribunal), como acontece entre os indígenas de má digestão, que só compreendem o juiz como indivíduo de mentalidade bitolada e com temperamento de coveiro. HAURIOU mostra que, “atrás dos sistemas formalistas, o que há é a influência do instinto de menor esfôrço”. Em comentário a êle e completando-lhe o pensamento, DE PAGE, juiz bem humorado, fora, portanto, do modêlo de preferência dos serventuários indisciplinados, escreve que “há, aí, tanto uma questão de psicologia, como um problema de ordem político-jurídica. A experiência do meio judiciário demonstra que é muitas vêzes por indolência e por preocupação de repouso que alguns, em nome da ordem jurídica técnica, denunciam o veneno da justiça.

Não me furto ao gôsto de continuar a reler-vos as páginas imortais de DE PAGE:

“A noção do govêrno de juízes não pode transtornar senão aquêles que vêem, nas Côrtes e Tribunais, uma potência política capaz de pôr em xeque a sua própria ditadura. É conhecer muito mal os juízes atribuir-lhes tais ambições. É também conhecer muito mal por que maneira êles compreendem e respeitam a separação de poderes. Que os políticos sombrios abandonem qualquer receio. Os juízes não têm desejos que os possam ameaçar. Seu govêrno é de ordem muito superior. É o govêrno das idéias, dos equilíbrios constitucionais e morais, que se encontram mais acima das leis que nas leis. Sua obra não tem, por igual, nada de subversivo. Tende, hoje, como no passado, a melhorar a obra do legislador”.

O juiz anda sempre diante do legislador, quando não do próprio doutrinador. Se o faz, não é para invadir atribuições de outros poderes. GORLA, no seu “Commento a TOCQUEVILLE”, adverte, com a maior gravidade, que, “para que a instituição judicial se salve, é preciso que os juízes adquiram maior agilidade em seguir os motes do Estado moderno” e isso é afirmar energicamente a necessidade de plena autonomia ao juiz, pouco importa, se da primeira ou da segunda instância.

O mandado de segurança e sua caracterização

Através da intimidação do Judiciário, em cujo corpo alguns inocentes úteis colaboram na insídia, o que se pretende atingir são as liberdades democráticas e, especificamente, sua expressão mais moderna na instrumentação legal para assegurá-las, o mandado de segurança.

A primeira etapa, em que alguns retardatários ainda patinham, foi a tese do abuso do mandado de segurança. Era de ver a sagrada inquietação com que se noticiava o fenômeno do crescimento anormal do remédio, chamado faceiramente de writ por assustados homens da lei… do menor esfôrço.

Não é possível saber o que faz essa gente dos livros que compra. Não é nenhuma edição rara a que aprecia, com a inimitável vivacidade peninsular, a suposta calamidade.

O recurso aos Tribunais, observa CALAMANDREI com o apoio do belga WARLMONT, é a prova de firme resolução na defesa da ordem social, ao mesmo tempo que de serena confiança na administração da Justiça. Demandar pode querer dizer ter fé na serenidade do Estado. E pode também significar prestar serviço ao Estado, porque é na defesa do direito que êle encontra sua mais alta expressão.

Depois, foi a etapa em que se negou ao mandado de segurança o caráter de causa. Os juristas de vista curta só tiveram olhos para o art. 201 da Constituição federal, em que se dá a quem deseje demandar a União a faculdade de fazê-lo no Distrito Federal de preferência ao fôro da capital do Estado em que se verificou o ato ou fato originador da demanda ou ao em que esteja a coisa ou ao em que seja domiciliado o autor.

Ora bem. É no Distrito Federal, por evidência que exclui qualquer demonstração, que a União está melhor aparelhada para produzir sua defesa. Por presunção, é aí que se encontram seus melhores advogados, constituídos em carreira, cujo ápice é o fôro carioca. A administração tem aí, em suma, melhores recursos em todos os sentidos que em qualquer outra parte do país.

A opção pelo fôro do Distrito Federal representa, pois, vantagem para a União. Os procuradores da República propuseram, no Distrito Federal, várias causas cujo fôro de situação era o do Distrito Federal, forçando a interpretação do dispositivo, que só dá tal opção a quem a demanda.

No Distrito Federal foi proposta ação para rescisão do contrato da fábrica de aviões de Lagoa Santa.

Mas o mandado de segurança, objeto de incurável alergia de certos funcionários, cujo zêlo é muito maior do que as suas luzes, precisava ser combatido.

Descobriu-se, com prestimosa ajuda de dentro da cidadela, que ela podia ser expugnada através da desqualificarão do mandado, até então tido como causa. Ficou êle sendo um processo sui generis, que é o nome que se dá aos institutos cujo estudo não se quer fazer, ou não convém caracterizar. Muito orgulhosos de sua habilidade, equipararam, cegamente, o mandado ao habeas corpus. Se êste não é causa, o mandado de segurança também não o é, até porque, concluíram, o mandado não comporta contestação.

Todavia, continuaram os defensores da União a articular preliminares, prejudiciais e exceções, que são parte integrante de contestações. Continuaram a recorrer de decisões concessivas de mandado de segurança, esquecidos de que a legitimação para recurso coincide com a legitimação para demandar ou ser demandado. Não pode recorrer aquêle a quem a sentença não toca. Quem, como espécie, de espectador ligeiramente interessado, dá parecer, não pode recorrer.

Mais e melhor. Interpõem recurso extraordinário de decisões concessivas de mandado de segurança em última instância.

De forma que, no art. 201 da Constituição, sustentam, com veemência, que o mandado de segurança não é causa, e, no art. 101, empenham-se, com igual ardor, em mostrar que o mandado de segurança é causa.

Se atentarmos para o art. 48, n° II, letra d, verificamos que aí se proíbe ao deputado e senador, desde a posse, o patrocínio de causa contra pessoa jurídica de direito público. Ora, se o mandado de segurança não é causa no art. 201, também não o é no art. 48. De forma que o deputado ou senador não pode propor ação ordinária, mas pode patrocinar contra a União, através de mandado de segurança.

A terceira etapa visa a eliminar o artigo 142 da Constituição federal do rol dos direitos fundamentais que ela assegura.

Dá-se à cláusula “respeitados os preceitos de lei”, que está aposta, em caráter subordinado, à oração principal, consagradora do preceito, valor superior a êste. Pelo raciocínio que esposam, os preceitos da lei ordinária, destinados, pensávamos, a dar vida e execução à garantia constitucional, se convertem em meio de morte dessa garantia. Não haveria mais direito de trânsito, mas irrisória licença do príncipe para a entrada de bens em valor muito inferior ao que percebem em um mês os nababos alfandegários.

Estamos na fase da intimidação mais grosseira a juízes que, por fôrça de suas funções, têm que corrigir abusos, apontar erros, ordenar reparação de prejuízos oriundos de prepotência, arbítrio, má execução de serviços públicos.

A multiplicação de demandas dessa natureza é tida como um mal. Mas o mal não está nas demandas, que apenas indicam, como a febre acusa a doença, a desordem administrativa do país, a inconsciência dos responsáveis, a sua inescusável improbidade funcional, com um ôlho censuram os excessos liberais dos juízes, com outro piscam a afortunados colecionadores, banqueiros, políticos e amigos, dando a êstes precisamente o que consideram errado quando dado pelos juízes.

Êsses fariseus, sepulcros caiados, comandam a campanha. Querem prevaricar em paz e os juízes lhes estorvam as aventuras, denunciando a sua traição ao país.

Defesa das liberdades públicas

Não há mais em que sustentar-se qualquer ilusão. O que se quer atingir são as liberdades públicas e o plano não pode ser executado sem desmoralização dos juízes que a defendem e asseguram.

Se os moralistas não fôssem tartufos, poderiam; com certeza, dirigir crítica honesta ao Judiciário. Mas os visados não seriam os magistrados, que, sem dinheiro e sem prestígio político, desagradando ao mesmo tempo ao poder e aos que o enfrentam, levam vida recatada, dando todo o seu tempo, de segunda a domingo, ao seu trabalho e aos seus estudos. Aqui estaria um roteiro a trilhar, para a mais digna das campanhas, trazendo ao bom caminho: os juízes que, por desídia, atrasam de meses e até de anos a solução dos, litígios; os que, sem capacidade para trazer os expedientes em dia, levam movimentada vida mundana, cuidando da devoção antes de cuidar da obrigação; os que freqüentam, com prejuízo do bom nome da magistratura, lugares de divertimento em que não se ensina, nem se aprende o direito; os que administram com carinho os seus negócios, mas relegam os deveres funcionais; os que rebaixam a missão do juiz, trocando decisões por favores e até pela simples e suspeita inclinação de agradar; os impontuais, os intratáveis com as partes, os relapsos e faltosos, os que deixam em suspenso acusações infamantes.

Se êsses são poupados aos ataques, que só convergem para os pecados veniais de suposto desabrimento de linguagem, de falso amor à publicidade, – não figura nas manchetes quem quer, mas quem pode de abuso da ironia, de excesso de poder, ninguém pode acreditar na honestidade das censuras. Não há propósito de aprimorar a magistratura. O que é claro intuito de reduzi-la às dóceis proporções de um serviço burocrático, em que mereça o esbôço de SWIFT:

“Sonda o juiz, primeiro, a disposição dos que estão no poder; depois, não lhe é difícil enforcar ou salvar o criminoso, preservando rigorosamente as devidas formas da lei”.

Haverá juízes no Brasil. Muitos e muitos se estão dando conta da insidiosa subversão contra as liberdades essenciais inscritas na Constituição. E sabem que a única maneira de assegurá-las é não desfalecer na sua defesa.

A responsabilidade dos juízes

Essa é responsabilidade dos juízes na democracia e sua posição nos regimes de direito. Como escreve GINO GORLA,

“Certo è assurdo pensare alla rinascita del carattere sacro e quasi religioso del giudice sulla base delia tradizione o della leggenda. Ma sotto un’altra forma potrebbe presentarsi quel carattere sacro: e cioè nella forma di un prestigio del giudice che si fundi sull’idea del Diritto nata dai “diritti dell’uomo”, la quale tradirebbe questa sua origine, se non fosse anche idea, forte sentimento e quindi religione della dignità e responsabilità della persona”.

Nota:

* N. da R.: Conferência pronunciada no Instituto dos Advogados Mineiros, no dia 5 de junho de 1953.

I) Normas técnicas para apresentação do trabalho:

  1. Os originais devem ser digitados em Word (Windows). A fonte deverá ser Times New Roman, corpo 12, espaço 1,5 cm entre linhas, em formato A4, com margens de 2,0 cm;
  2. Os trabalhos podem ser submetidos em português, inglês, francês, italiano e espanhol;
  3. Devem apresentar o título, o resumo e as palavras-chave, obrigatoriamente em português (ou inglês, francês, italiano e espanhol) e inglês, com o objetivo de permitir a divulgação dos trabalhos em indexadores e base de dados estrangeiros;
  4. A folha de rosto do arquivo deve conter o título do trabalho (em português – ou inglês, francês, italiano e espanhol) e os dados do(s) autor(es): nome completo, formação acadêmica, vínculo institucional, telefone e endereço eletrônico;
  5. O(s) nome(s) do(s) autor(es) e sua qualificação devem estar no arquivo do texto, abaixo do título;
  6. As notas de rodapé devem ser colocadas no corpo do texto.

II) Normas Editoriais

Todas as colaborações devem ser enviadas, exclusivamente por meio eletrônico, para o endereço: revista.forense@grupogen.com.br

Os artigos devem ser inéditos (os artigos submetidos não podem ter sido publicados em nenhum outro lugar). Não devem ser submetidos, simultaneamente, a mais do que uma publicação.

Devem ser originais (qualquer trabalho ou palavras provenientes de outros autores ou fontes devem ter sido devidamente acreditados e referenciados).

Serão aceitos artigos em português, inglês, francês, italiano e espanhol.

Os textos serão avaliados previamente pela Comissão Editorial da Revista Forense, que verificará a compatibilidade do conteúdo com a proposta da publicação, bem como a adequação quanto às normas técnicas para a formatação do trabalho. Os artigos que não estiverem de acordo com o regulamento serão devolvidos, com possibilidade de reapresentação nas próximas edições.

Os artigos aprovados na primeira etapa serão apreciados pelos membros da Equipe Editorial da Revista Forense, com sistema de avaliação Double Blind Peer Review, preservando a identidade de autores e avaliadores e garantindo a impessoalidade e o rigor científico necessários para a avaliação de um artigo.

Os membros da Equipe Editorial opinarão pela aceitação, com ou sem ressalvas, ou rejeição do artigo e observarão os seguintes critérios:

  1. adequação à linha editorial;
  2. contribuição do trabalho para o conhecimento científico;
  3. qualidade da abordagem;
  4. qualidade do texto;
  5. qualidade da pesquisa;
  6. consistência dos resultados e conclusões apresentadas no artigo;
  7. caráter inovador do artigo científico apresentado.

Observações gerais:

  1. A Revista Forense se reserva o direito de efetuar, nos originais, alterações de ordem normativa, ortográfica e gramatical, com vistas a manter o padrão culto da língua, respeitando, porém, o estilo dos autores.
  2. Os autores assumem a responsabilidade das informações e dos dados apresentados nos manuscritos.
  3. As opiniões emitidas pelos autores dos artigos são de sua exclusiva responsabilidade.
  4. Uma vez aprovados os artigos, a Revista Forense fica autorizada a proceder à publicação. Para tanto, os autores cedem, a título gratuito e em caráter definitivo, os direitos autorais patrimoniais decorrentes da publicação.
  5. Em caso de negativa de publicação, a Revista Forense enviará uma carta aos autores, explicando os motivos da rejeição.
  6. A Comissão Editorial da Revista Forense não se compromete a devolver as colaborações recebidas.

III) Política de Privacidade

Os nomes e endereços informados nesta revista serão usados exclusivamente para os serviços prestados por esta publicação, não sendo disponibilizados para outras finalidades ou a terceiros.


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