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Revista Forense

CLÁSSICOS FORENSE

PENAL

REVISTA FORENSE

Passionalismo delinquente

CÓD. PENAL DE 1940

CRIMES PASSIONAIS

FEMINICÍDIO

MAGALHÃES DRUMOND

Revista Forense

Revista Forense

12/04/2022

REVISTA FORENSE – VOLUME 148
JULHO-AGOSTO DE 1953
Semestral
ISSN 0102-8413

FUNDADA EM 1904
PUBLICAÇÃO NACIONAL DE DOUTRINA, JURISPRUDÊNCIA E LEGISLAÇÃO

FUNDADORES
Francisco Mendes Pimentel
Estevão L. de Magalhães Pinto,

Abreviaturas e siglas usadas
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Revista Forense Volume 148

CRÔNICA
Aspectos da sociologia jurídica de Gurvitch – Henrique Stodieck

DOUTRINA

PARECERES

NOTAS E COMENTÁRIOS

BIBLIOGRAFIA

JURISPRUDÊNCIA

LEGISLAÇÃO

SUMÁRIO: Advogados e juízes. Criminalidade feminina. Dados estatísticos. O testemunho de MAGALHÃES DRUMOND. O Cód. Penal de 1940 e a teoria da “actio libera in causa”. O promotor ROBERTO LIRA e o advogado EVARISTO DE MORAIS. Paixão e emoção. Sensacionalismo e criminalidade. Conclusão.

Sobre o autor

Merolino R. de Lima Correia, juiz de direito em Minas Gerais.

NOTAS E COMENTÁRIOS

Passionalismo delinquente

* Quando o bâtonnier do fôro local, o ilustre Dr. Antônio de Castro Teixeira, presidente da 4ª subseção da Ordem dos Advogados, resolveu convidar-me para discursar nesta solenidade, senti que era inútil qualquer tentativa de recuo ou esquivança, porque não seria fácil vencer a dialética do causídico eminente e muito menos recusar-me à oportunidade feliz de render homenagem à nobre classe dos advogados mineiros.

Advogados e juízes

Afirma-se que BYRON, o grande poeta inglês, denominou os advogados de limpadores de chaminés, injúria que não parece tenha vindo de tão elevado espírito, pois, se o juiz é o direito ornado homem, como pretende CALAMANDREI, o advogado é o médico da lei, o consultor dos aflitos, o supremo guardião da liberdade.

Só a inveja pode crivar de chufas a profissão do advogado, quando leal e honradamente exercida.

O combatido e sarcástico VOLTAIRE, ungido de sinceridade, declarou, certa vez: “J’aurais voulu être avocat: c’est lê plus bel état du monde”.

Nós, advogados e juízes, vivemos irmanados na tarefa social de distribuir justiça, como bons amigos e membros da família forense, salvo algum desacôrdo pessoal e inevitável, porque os homens não são estátuas de mármore e sofrem as influências das paixões humanas.

Podemos asseverar, porém, que a amizade entre nós, ou as desavenças pessoais, nunca tiveram fôrça de toldar as águas cristalinas de Castália, em que se banha a deusa eterna da Justiça, porque o direito das partes é sagrado para nós.

Foi ainda CALAMANDREI, no seu belo “Elogio dei giudici scritto da un avvocato”, que ARI DOS SANTOS traduziu, em Lisboa, com o título “Êles, os juízes, visto por nós, os advogados”, quem observou que as relações entre juízes e advogados não prejudicam nem são úteis aos litigantes, pois: “sem probidade não pode haver justiça” e “para um juiz honesto, que tenha de decidir uma causa entre um amigo e um indiferente, é preciso maior fôrça para dar razão ao amigo do que para lha negar; é preciso maior coragem para se ser justo, arriscando-se a parecer injusto, ainda que fiquem salvas as aparências da justiça”. Perdoem-me, senhores, se me distancio um pouco do tema escolhido, mas o intróito era indispensável para explicar a razão de minha presença nesta tribuna.

O saudoso magistrado MAGARINOS TÔRRES, defensor infatigável da instituição democrática do júri, proferiu memorável conferência na Sociedade Brasileira de Criminologia, à qual tenho a honra de pertencer, abordando o sugestivo assunto da criminalidade passional, ou “O amor no banco dos réus”.

Criminalidade feminina

E o insigne Prof. MAGALHÃES DRUMOND, meu querido patrono no mencionado silogeu, tão cedo roubado ao fulgor de nossas letras jurídicas, fêz um estudo interessante sôbre “Feminismo e criminalidade”, em que focalizou os fatôres de influência na reação delituosa de Eva contra os martírios conjugais. Eis como o grande mestre principiou o seu trabalho:

“Das formas que a criminalidade apresenta atualmente no Brasil, nenhuma outra é mais impressionante nem mais merecedora de estudo do que a consistente em atentados praticados por mulheres contra a vida de indivíduos do outro sexo. Essa é uma modalidade de delinqüência duplamente interessante: pela sua novidade no meio social brasileiro e pela pouco intervalada freqüência com que se vem repetindo nêle”.

Historiando, em seguida, alguns casos tristes que motivaram julgamentos de publicidade sensacional, por uma singular coincidência, coloca, justamente, em primeiro lugar, o pranteado jurista aquêle em que tomei parte saliente, como defensor de América de Araújo Penque, ao lado de um rábula famoso – João da Costa Pinto.

Eu era então muito jovem, bacharel novo em fôlha, jornalista e sonhador. Pois bem. Guiado pela saudade, tomei a deliberação de falar sôbre os homicídios perpetrados por mulheres, que, infelizmente, em face da evolução constante dos vícios sociais e do sibaritismo atordoante que dissolveu os costumes patriarcais dos lares brasileiros, já não se fazem tão raros ùltimamente como no tempo em que o Prof. MAGALHÃES DRUMOND escrevia seus brilhantes “Estudos de Psicologia, Criminologia e Direito Penal” e os “Aspectos do Problema Penal Brasileiro”.

Forneceu-me prestimoso colega, a meu pedido, uma lista de homicídios e tentativas de morte cometidos por mãos femininas recentemente, no Rio, onde figuram os nomes de Zulmira Galvão Bueno, Helbe Silva Mascarenhas de Morais, Léia Pereira Marques Maia, Pautilha Gonçalves Maia, Jurema da Silva Santos, Laurinda Teixeira Lôbo, Neusa da Silva Simões, Maria Aparecida, Maria Elza Monteiro, Odila Maria da Conceição, Dinaura Amorim Cruz, Anadil Silveira, Claudemira de Sousa, Diamantina Marinho Paulino, Eunice Martins de Sousa, Maria Manhães Ponce, Onília Gomes da Mota e Iolanda Vieira Silva. Nada menos de 19 damas, criaturas de tôdas as camadas sociais, ricas e pobres, brancas e mulatas, louras e morenas, jovens e… Bem, não sei se houve alguma que passasse dos 30, limite máximo da idade que as mulheres podem confessar… Note-se: 16 homicídios e três tentativas.

No Estado do Rio, de memória, apenas cito Araci Abelha, Olga Sueli e Iolanda Pôrto.

Dados estatísticos

Em Minas e outros Estados é difícil indicar números estatísticos, por falta de dados e estreiteza de tempo, mas li em “Aspectos do Problema Penal Brasileiro”, do Prof. DRUMOND, que “o contingente feminino para a criminalidade no Estado (Minas) não vai além de 5,5% (em 1928), cifra pequena em si e, mais, se se atender a que há 6.301 meretrizes registradas pela polícia”. Entre 3.796 indivíduos processados, 208 eram do sexo outrora fraco; para 1.011 homicídios e 334 tentativas de homicídio praticados por homens, em 1928, a estatística criminal do Estado anotou sòmente 52 crimes tais cometidos por mulheres, sendo 39 homicídios e 13 tentativas.

Como estamos verificando, as mineiras também matam. Paraíbas em qualquer parte existem. Graças a N. S. Jesus Cristo, porém, nossa querida Juiz de Fora, pacata e progressista, não concorre para a estatística senão com muita parcimônia. Os homens trabalham em paz e as mulheres não gostam de resolver suas questões domésticas a tiros e facadas. Numa população bastante densa, são raros os crimes de morte. Raríssimos os delitos de homicídio e tentativa praticados por gente de saia.

O testemunho de MAGALHÃES DRUMOND

Passemos em rápida análise os casos narrados pelo saudoso mestre MAGALHÃES DRUMOND, a partir daquele em que tive a glória de uma estréia bem sucedida, pois a ré foi absolvida por unanimidade de votos, mas consenti que vos mostre, depois, a opinião do insigne autor dos “Estudos” consultados.

“Um dos mais característicos e instrutivos, na sua desvendada realidade, é o de uma mulher que, sem ter dado o menor motivo, é abandonada com os filhos pelo marido que, simplesmente por comodidade própria, a deixa, mais a tenra prole, em São Paulo, inteiramente desassistidas de qualquer proteção ou recurso. Essa mulher dispõe-se, com à mais nobre coragem, a enfrentar a situação. Longos meses de trabalhos, canseiras, privações e provações convencem-na, porém, da improficuidade dos seus esforços, pela desproporcional inferioridade dêles diante das necessidades de subsistência dela e dos seus filhinhos. Premida por essas conjunturas, esmagada no seu orgulho pelo sofrimento, vai então para o Rio em procura do marido que ali leva vida folgada e em pândegas. Vai implorar-lhe pelos filhos dela, filhos dêle também. Mal, porém, começa a falar-lhe – e numa reclamação enérgica, mas numa súplica humílima, – volta-lhe êle as costas, insensível, superior, desdenhoso, e a deixa a sós com a sua aflição e ainda mais desgraçada, porque na desesperação de uma desilusão completa. A sós com a sua mágoa e com a sua aflição, a sós a confabular com o seu sofrimento, a infortunada com êste se aconselha e resolve, e reage. Vai a um “belchior”, onde obtém, por suas miseráveis peças de roupa, uns poucos de mil réis com que adquire, num armeiro, um velho revólver com tôdas as aparências de não prestar mais para nada, e assim armada volta a procurar o marido, decidida a justiçá-lo, e o encontra e, bem de frente, o alveja e mata”.

Não retirei uma vírgula à narrativa fiel do caso de América de Araújo Penque. que foi duas vêzes julgada pelo júri e absolvida por sete votos, após longos e martirizantes debates.

Enumera ainda o caro mestre outros nove casos, todos pintados em côres impressionantes, para concluir que nos crimes passionais, embora não se anule o horror ao assassínio, apanágio dos civilizados, não se pode acreditar em regressão evolutiva em qualquer das mulheres homicidas, porque os episódios fatais citados revelam mais do que ações, reações, mais do que agressões, modalidades de defesa, enérgica, é verdade, mas humana e necessária. E tanto é assim que os crimes examinados, sem preconceitos e sem hipocrisia, desvendam, desnudam uma onda de misérias, de covardias, de injustiças cruas e prepotências brutais, de que são vítimas as mulheres e algozes os homens. Tais delitos são desfechos dramáticos de longos e dolorosos tormentos, que passariam ignorados sem a tragédia final. Cada caso encerra a história de uma mulher tiranizada e aflita que reage contra as brutalidades masculinas; em todos êles surge uma Eva escravizada a um bruto e por êle vilipendiada, espoliada na sua virgindade, insultada nos seus melindres de espôsa ou na sua afetividade de mãe, ou na dignidade de ser humano. Mata porque não pode mais suportar a vida de ignomínias que lhe querem impor.

“Há em cada um dêsses casos o arranque ascensional de uma alma levantando-se da degradação. Há, em todos êles, um anseio insopitável provocado por uma opressão injusta e tornada intolerável. Uma nobre ânsia incoercível de necessária libertação referve e estua e explode em cada um dêles”.

Não há perversidade feminina nessa reação violenta, nem a ternura característica do sexo foi substituída por uma analgesia moral ou sentimental. O que há é uma reação necessária e proporcional à crueldade sofrida. Se a escravidão civil foi abolida, extinta deverá ser também a escravidão doméstica.

E, para terminar a lição magistral, consignemos a advertência de MAGALHÃES DRUMOND:

“Não queiram os homens, e a série dos homicídios feitos por mulheres não prosseguirá”.

Mas, gentis ouvintes, se eu parasse aqui nossa conversa, talvez alguém pudesse supor que fiz a apologia do homicídio, defendendo a Eva ultrajada e seus cúmplices.

O Cód. Penal de 1940 e a teoria da “actio libera in causa”.

Absolutamente. A tese, por mais bela que pareça, tem sido contrariada pela realidade dos julgamentos condenatórios. As mulheres não podem eliminar impunemente os seus semelhantes. Mesmo antes do advento do Cód. Penal em vigor, que fêz tabula rasa da paixão, prevenindo que ela não é dirimente, embora transigindo com o passionalismo, por intermédio da violenta emoção, para admitir a influência da psicologia normal e autorizar uma diminuição de pena, – sabemos que há vozes de fama universal que discutem a tese passional e divergem francamente dos seus propugnadores.

O Código de 40 esposou a teoria da actio libera in causa como pedra angular da responsabilidade, justificando assim a punibilidade dos crimes praticados em estado de embriaguez, de emoção e paixão. Reputam-se criminosos os atos que sejam voluntários na sua causa pela falta de disciplina do agente, que bem poderia evitar o domínio emocional.

NARCÉLIO DE QUEIRÓS explica que as actiones liberae in causa seu ad libertatem relatae são perceptíveis nos casos em que alguém, no estado de não imputabilidade, é causador, por ação ou omissão, de algum resultado punível, tendo-se colocado naquele estado, ou propositalmente, com a intenção de produzir o evento lesivo, ou sem essa intenção, mas tendo previsto a possibilidade do resultado, ou ainda, quando a podia ou devia prever”.

Enganam-se LOMBROSO e MAUDSLEY quando afirmam que os criminosos nascem, como os poetas. O problema da criminalidade, girando em tôrno de conjeturas, hipóteses e teorias, é por demais complexo. LOMBROSO, FERRI, PATRIZZI, PENDE, TARDE, FREUD e outros buscam uma fórmula capaz de identificar o movens do fenômeno criminal, mas não o conseguem, porque é impossível fixar as causas misteriosas da delinqüência. São tantas e tão diversas que não se consegue padronizá-las.

A criminalidade especifica dos emotivos e apaixonados tem sido estudada, sob todos os ângulos, pelos maiores representantes da ciência médica e jurídica, variando ao infinito os argumentos e as soluções.

Seria difícil resumir tantas e tão graves opiniões, dizendo EVARISTO DE MORAIS que, conciliar as aquisições da ciência e as necessidades práticas da defesa social, é questão das mais temerosas e, para resolvê-la, não bastam a leviandade de cronistas policiais, emocionados pela tragédia do dia, e a retórica de advogados de defesa, apaixonados pela causa (“Criminalidade Passional”, pág. 48).

O promotor ROBERTO LIRA e o advogado EVARISTO DE MORAIS

Espreitemos, por gentileza, com os olhos da imaginação, esta cena irreal, em parte:

2 de abril de 1933. O júri foi solenemente instalado, no Forum da Capital da República, sob a presidência do magnânimo juiz MAGARINOS TÔRRES, tendo ao seu lado o ardoroso promotor ROBERTO LIRA. Senta-se no banco dos réus, cabisbaixo e acabrunhado, o Amor, cujo advogado outro não é senão o Cícero brasileiro, o demostênico EVARISTO DE MORAIS. O escrivão é o simpático Áureo Cordeiro. Literalmente repleto está o Tribunal de curiosos e aficionados da instituição inglêsa. O Conselho de Sentença foi bem escolhido e prestou juramento de consciência. O juiz, que é o mesmo que pronunciara o réu, entre consideranda de alto cunho jurídico, filosófico e ético, qualifica e interroga o acusado. Êste, menor de 20 anos, tudo responde emocionado e narra o seu crime. Matara a mulher que causava ciúme à sua querida mãe, porque seu pai a espancara, apertando-lhe o pescoço, desvairado de cólera. A vítima era uma pobre viúva de um amigo e vizinha, à qual seu progenitor protegia e amparava, mas que sua mãe supunha uma rival, que lhe transformava o lar e a vida num inferno insuportável. Findo o interrogatório, que emocionou a grande assistência, o juiz-presidente, glória da magistratura pátria, deu a palavra ao promotor ROBERTO LIRA. O representante do Ministério Público, talento de escol, cultura oceânica, leu um tremendo libelo, no qual se articulava uma série de circunstâncias agravantes, entre as quais a traição e a superioridade em fôrças. Iniciando a acusação, não negou os precedentes ilibados nem a comoção do réu, mas, afirmando sua imputabilidade, advertiu os jurados contra o sentimentalismo prejudicial à ordem e à civilização, porque julgar somente com o sentimento não é julgar: é igualar-se ao criminoso; invocando TOCQUEVILLE, disse o conceituado membro do Ministério Público que o objetivo supremo da Justiça é substituir a idéia da violência pela do direito, competindo aos juízes dispensar a vingança particular. A oração magistral de ROBERTO LIRA foi tôda ela estribada em autores de renome, demonstrando uma cultura profunda no combate à tese passionalista. Trouxe ao debate o que há de melhor em filosofia, psicanálise, direito, medicina e literatura, no propósito de esclarecer a consciência dos jurados e provar a responsabilidade penal dos passionais, contrariando as lições de IMPALLOMENI, FERRI e MELLUSI, corifeus do passionalismo sem punição, e passando em revista os ensinamentos da Escola Clássica sôbre o livre-arbítrio, para repelir o exagêro romântico e sentimental a que se apegaria a defesa, exclamando:

“Não há paixão que não se cure com o tempo e com o espaço – garantiu BUNGE, que lida muito com os passionais. Não há homem, sobretudo o jovem, que não seja capaz de amar uma segunda vez. Querelles d’amants, renouvellement d’amour. O poeta conta, em lindo soneto, a dificuldade de certa moça em dizer qual o seu primeiro amor, porque começou logo por três… e isso há 40 anos!”.

Arrebatado de eloqüência, o festejado autor de “O Amor e a Responsabilidade Criminal” e de “Polícia e Justiça para o Amor” conclama os jurados para não verem entre os passionais heróis nem bandidos mas apenas criminosos, fazendo a individualização do Amor com ALFREDO GIANITRAPANI: “O amor é a elaboração psicológica do instinto sexual a concentração do desejo numa determinada pessoa”. E depois, distinguindo no amor uma parte considerável, que pertence à utilização dos nobres e belos sentimentos que elevam a humanidade, declarou-se abertamente contrário ao destino dado ao amor – o banco dos réus: “Para mim, o amor jamais desceu a êsse pelourinho. Quando, em nome dêle, alguém se desmanda até o crime, o amor foi preterido pelo ódio. Êste, sim, está à vontade no banco dos réus. A responsabilidade penal decorre do estado do agente no momento exato do crime. Quando crispa a mão para o ímpeto do arremêsso, ou o sucesso da pontaria, impele-o, não o amor, mas o ódio, e a êsse as leis não dão guarida. MELUSSI diz que o amor está bem perto do ódio e o ódio bem perto do amor. É a ambivalência exemplificada pelo Prof. BLEULER: “amo a rosa pela sua beleza; odeio a rosa pelos seus espinhos”.

Apoiado em LÉON RABINOWICZ, professor de Direito da Universidade de Genebra e autor do “Le Crime Passionel”, e em outros afamados tratadistas, o eminente ROBERTO LIRA perora em linguagem escorreita e límpida, repetindo o conselho de AFRÂNIO PEIXOTO:

“Urge prender e condenar êsse amor. O verdadeiro amor, honesto, doméstico, sem fartura de dinheiro e de tempo, nem pródigo, nem ocioso, o santo amor de cada dia, não pode ser criminoso. Celerado é o amor vadio, dos parasitas sociais, que, não tendo o que fazer ou pensar, apenas cuidam de abastecer de espasmos a sua medula lombar; celerado é o dessas máquinas de prazer, manequins de estofos e de jóias, que não trabalham, nem amam, mas vendem o corpo e a alma, por tafularias e vaidades. Aos crimes dêsse Amor dobradas penas, para que se eduque na regra de bem viver”.

A impressão deixada no espírito do júri era sensível.

Quando o notável advogado de defesa principiou sua oração, imensa era a curiosidade geral. Torna-se difícil reproduzir de memória as palavras eruditas e comoventes do tribuno ímpar. Começou dizendo que a peroração do ilustre órgão do Ministério Público não se aplicava ao caso em julgamento, porque o amor filial não se confunde com o amor sexual, sendo impossível indicar com precisão a diferença, entre emoção e paixão, como já o notara RIBOT (“Psychologie des Sentiments”). Há paixões violentas, que desencadeiam verdadeiras tempestades psicológicas de intensa e profunda duração; paixões cegas e raciocinantes. As paixões cegas, no pensar de CARRARA, dominam a vontade e conturbam a razão, subtraindo à inteligência grande soma do seu poder de reflexão. As outras excitam a inteligência e dão ao homem a plenitude do livre-arbítrio. Ensina ALIMENA que tôdas as paixões são a princípio raciocinantes, passando a cegas. FERRI, o famoso sociólogo do crime, falando em amor, classificou as paixões em sociais e anti-sociais e apresentou Otelo, de SHAKESPEARE, como o tipo clássico do criminoso por paixão. “Para êsses indivíduos tôda penalidade é evidentemente inútil, do ponto de vista de contra-impulso psicológico, pois as próprias condições da crise psíquica, sob as quais delinqüem, fazem inócua a influência intimidante da ameaça de pena”. Os passionais são delinqüentes por impulso ético irresistível, sentenciou PUGLIA.

Disse ainda o grande advogado que a metamorfose do amor em ciúme acarreta uma espécie de neurose individual, reduzindo a escombros os sonhos de felicidade. Não há almas de bronze. Nem todos os indivíduos têm a mesma capacidade de reflexão e resistência contra as dores inevitáveis. MAGARINOS TÔRRES já havia ponderado que a paixão intoxica como veneno sutil e os paroxismos do ciúme ou do despeito desintegram a alma humana. BONNANO também entende que a paixão, em condições especiais, pode ser causa de inimputabilidade.

Citou, finalmente, todos os autores que se preocuparam com o crime passional, cometido por gente honesta, quase sempre, e incapaz de reincidência, mostrando que a paixão e o ciúme chegam a tal paroxismo que não permite, às vêzes, distinguir nelas o delírio da loucura, como notou um médico francês, MAURICE BOIGEY.

Vamos interromper, amigos, o espetáculo visionário que nos prende a atenção, antes que a fadiga nos condene. Bastará que vos afiance que o réu Amor foi punido brandamente, a três anos de cadeia, solução reputada humana e justa pelo promotor e pelo defensor.

O Código atual, como avisei de início, já não tolera a paixão como causa dirimente da responsabilidade, porque até os fronteiriços são responsabilizados por seus desatinos anti-sociais. A loucura do amor cura-se com o perdão. Maior que o ódio à traição amorosa só se conhece o desprezo.

NÉLSON HUNGRIA, o sábio doutrinador, define e separa a paixão da emoção. Esta é um estado de ânimo ou de consciência, caracterizado por uma excitação do sentimento; é forte e transitória, denunciando-se por variações somáticas ou modificações particulares da vida orgânica (pulsar violento, alterações térmicas, aumento de irrigação cerebral, ritmo acelerado das funções respiratórias, vasomotoras, palidez ou rubor intenso, lágrimas, suor abundante, tremores, etc.).

A paixão é coisa mais séria, porque é duradoura e de si própria se alimenta. É uma emoção em estado crônico, tornando-se idéia fixa. Chamam-na lógica do sentimento, porque é fundada sôbre bases afetivas.

Na verdade, porém, o amor não tem lógica.

Convém dizer que NÉLSON HUNGRIA entende que a emoção (ou paixão exclusiva), atingindo o auge, reduz quase inteiramente a vis electiva, em face dos motivos, e a possibilidade de autogovêrno. Compara-se justamente o homem sob o influxo de violenta emoção a um carro tirado por bons cavalos, tendo na boléia um cocheiro embriagado. Nas crises agudas de emoção, os motivos inibitórios são inócuos freios sem rédeas.

Seja como for, todavia, é bom esclarecer que não há mais o perdão legal para os passionais, pelo reconhecimento da escusativa da perturbação dos sentidos e da inteligência. Tenha o Amor muito cuidado em não transpor as fronteiras do Código; quando ultrapassar o limite, contente-se com uma esperança de diminuição de pena.

Paixão e emoção

Hoje ninguém acredita mais em paixão criminosa, embora se admita a emoção. É, entretanto, intricada a diferença entre paixão e emoção. A supressão do ser amado é loucura. Matar por amor é um contra-senso. Criando vidas, não deve o amor destruí-las.

A mulher que ama verdadeiramente com o coração – namorada, espôsa, mãe ou companheira – não mata o objeto do seu amor, porque não pode viver sem êle. A mulher deve ser o que a natureza quer que ela seja: um ente delicado, uma fonte de virtudes peregrinas, um manancial de ternura, um oceano de amor e de bondade. Só assim se compreende que ela seja divinizada pelos poetas coto redentora do homem e suprema glória da criação. O amor não é somente um impulso de conservação da espécie. mas razão de ser da própria vida em sociedade, origem de todos os sonhos de felicidade, princípio de tôdas as conquistas humanas no universo. O amor é a hóstia da paz, do trabalho e da justiça. O amor é a sublimação de todos os sentimentos religiosos, morais e políticos de qualquer nação. Amai-vos uns aos outros, crescei e multiplicai-vos, foram ordens divinas. Não devemos imitar Caim.

A mulher amorosa não mata nunca. Sofre, chora. luta, e perdoa sempre. Um coração piedoso não abriga sentimentos inferiores de vingança, de ódio e de morte. Nas horas amargas de desespêro e de aflição, a mulher reza, banhada em lágrimas, no altar da Virgem Santíssima, Máter Dolorosa, exemplo maior de resignação e de pureza.

Quem se afasta de Deus, cai fatalmente nas malhas do demônio. Deus proíbe matar.

O tempo é curto e a vida bela. A natureza é cheia de encantos e seduções. Somos dotados de razão. Deus nos deu tudo no mundo. Não sejamos ingratos. Em hipótese alguma, tem a mulher o direito de tirar a vida da pessoa amada.

Já nos cansamos bastante, sem que falássemos dos cúmplices de Eva. Não há mais que dois minutos disponíveis para, abusar de vossa paciência. Muito às pressas, eu vos direi quais são os aliados de Eva no crime, alguns dêles já indicados no curso de nossa palestra.

Sensacionalismo e criminalidade

Êsses cúmplices não podem deixar de ser senão o ódio, o fanatismo, o ciúme, o despeito, o orgulho ferido, a vaidade machucada, a vingança latente, a ambição recalcada, o desespêro sem religião, o mau gênio, a maldade incubada e a fraqueza de sentimentos nobres. São êstes os nossos principais inimigos, mas falta ainda um: a publicidade escandalosa que se faz, no nosso país, em torno dos chamados crimes sensacionais.

É, sem dúvida, êsse lamentável sensacionalismo o fator primordial da criminalidade, que a imprensa fomenta, que o rádio auxilia, transformando delinqüentes em heróis, com retratos vistosos e noticiário espalhafatoso. Eis aí a caudal do mimetismo passional.

Guardemos, enfim, no escrínio dalma a essência poética desta verdade singela:

“Toda pena de amor, por mais que doa no próprio amor encontra recompensa”.

E, se assim não é, ouçamos o Henri Robert brasileiro, o saudoso criminalista MÁRIO BULHÕES PEDREIRA:

“O passionalismo é o apanágio dos organismos enfermiços, de fraca resistência, física e moral. O homem forte de alma e forte de corpo sofre as tempestades morais à maneira dos robles da floresta, que o vendaval fustiga e estremece, mas não lhes dobra a fronde alta e o tronco ereto”.

ROBERTO LIRA, divergindo sinceramente do amor-assassino, critica os Códigos que acolhem a imunização do uxoricídio, por motivo de adultério, porque a honra conjugal não pode sentir-se ultrajada pelo desvio da fidelidade recíproca prometida na celebração do casamento.

Tal promessa não foi arrancada sob pena de morte. O amor-perfeito só existe nos jardins. É preciso saber conservar o amor conquistado. O homem muitas vêzes concorre para o adultério da espôsa. (Creio que a recíproca é verdadeira.) Ninguém tem o direito de arvorar-se em juiz e executor, em causa própria, de sentença tão severa. “Se pelo adultério (a mulher) merece pena de morte, que pena merece o assassino que não agiu por amor, mas pelo despeito, por móvel doméstico, pessoal. A honra do homem não se aloja, como nos tempos dos cintos de castidade, em lugar tão baixo. Mesmo em flagrante de adultério, não tem o cônjuge traído o direito de matar, estendendo aos olhos dos filhos orfanados o cadáver do infeliz culpado, como “manifestação de um egoísmo possessório, que representa, na civilização contemporânea, a sobrevivência bárbara do domínio e da opressão marital sôbre a mulher escrava e besta de carga”.

Para mim, essa opressão marital hoje nada significa, porque há mulheres tirânicas, atrabiliárias, despóticas e incompreensíveis, que trazem os maridinhos num cortado…

PIETRO COGLIOLO, professor de Filosofia em Modena, sustentou que, premiar os passionais com a dirimente absolutória, seria decretar a bancarrota do sistema repressivo, porque sem paixões não há, crime e sem crime são inúteis os Códigos.

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Nota:

* Palestra proferida na solenidade judiciária de 1953, em Juiz de Fora, Estado de Minas Gerais.

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