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Considerações preliminares à Res. 2.324/2022 do Conselho Federal de Medicina

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Considerações preliminares à Res. 2.324/2022 do Conselho Federal de Medicina

AGÊNCIA PARA O DESENVOLVIMENTO DA ATENÇÃO PRIMÁRIA À SAÚDE

CANABIDIOL

CANNABIS

CANNABISMEDICINAL

CFM

CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA

DIREITOÀSAÚDE

DIREITOMÉDICO

EPILEPISIA

MEDICINA

Henderson Fürst

Henderson Fürst

14/10/2022

No dia 14 de outubro de 2022, foi publicada a Res. 2.324/2022 do Conselho Federal de Medicina, restringindo a prescrição de canabidiol em sua modalidade compassiva e off label, surpreendendo a comunidade de pacientes de diversas doenças e sintomáticas, tais como dores crônicas, bem como seus familiares, médicos e a sociedade civil.

Res. 2.324/2022 do CFM: Considerações iniciais

1. Retrocesso à autonomia de profissionais médicos

Quando publicou a Resolução CFM 2.114/2014, o Conselho estabeleceu claramente em suas considerações que

“na história da Medicina e da Farmácia, o uso empírico de extratos vegetais no tratamento de inúmeras doenças humanas evoluiu para o isolamento e a síntese de princípios ativos terapêuticos, e que estes, submetidos a ensaios clínicos cientificamente controlados, podem expressar o seu perfil de eficácia e tolerância”[1]

É a história da aplicação dos compostos canabinoides na medicina. Dos usos da medicina indígena, cabocla e africana que se desenvolveram no Brasil colônia à contemporânea medicina baseada em evidências, os canabinoides passaram a contar não apenas com casuísticas da clínica médica, mas com estudos sérios e de importantes centros de pesquisa comprovando a eficácia e segurança do tratamento com princípios farmacêuticos ativos derivados da cannabis – tanto que, até o momento de escrita deste texto, a Anvisa já concedeu registro a 18 medicamentos com princípio farmacêutico ativo derivado da cannabis.

Por ocasião da aprovação da Resolução de 2014, a autonomia de profissionais médicos – um dos grandes marcos da ética médica desde o tempo de Hipócrates – foi adequadamente observada, autorizando-se que médicos prescritores pudessem fazer o adequado uso compassivo desde que por especialistas em neurologia e suas áreas de atuação, neurocirurgia e psiquiatria.

Já na atualização da Resolução de 2022, o Conselho restringiu as hipóteses de prescrição para somente para o tratamento de epilepsias da criança e do adolescente refratárias às terapias convencionais na Síndrome de Dravet e Lennox-Gastaut e no Complexo de Esclerose Tuberosa. A nova resolução inclusive é expressa em dizer que é vedado ao médico “a prescrição de canabidiol para indicação terapêutica diversa da prevista nesta Resolução, salvo em estudos clínicos autorizados pelo Sistema CEP/CONEP” (art. 3.º, I).

Trata-se de verdadeiro retrocesso ao direito de exercício da medicina historicamente consagrado. Especialmente considerando que foi essa a postura adotada pelo Conselho quando da publicação do Parecer n.º 4/2020, que estabeleceu “critérios e condições para a prescrição de cloroquina e de hidroxicloroquina em pacientes com diagnóstico confirmado de covid-19, delegando ao médico e ao paciente a autonomia de decidirem juntos qual a melhor conduta a ser adotada, desde que com o consentimento livre e esclarecido firmado por ambas as partes”.

Naquela ocasião, inclusive, seu relator, o Conselheiro  Domingos Sávio, mencionou que “a autonomia do médico de prescrever o que julgar melhor para seu paciente é um dos pilares da medicina desde Hipócrates, só tendo limite na lei e na ética, objetivando sempre única e tão somente a beneficência e nunca a maleficência”[2]

Vê-se, portanto, que é contraditória a postura do Conselho acerca da regulação da autonomia do médico quanto aos cuidados de seus pacientes, especialmente considerando as evidências das duas situações.

2. A inconstitucional restrição à liberdade de expressão científica

A nova Resolução trouxe uma curiosa vedação em seu art. 3.º, II: “ministrar palestras e cursos sobre uso do canabidiol e/ou produtos derivados de Cannabis fora do ambiente científico, bem como fazer divulgação publicitária.”

Ao final da Resolução, há um glossário onde se vê o que a Resolução entende por ambiente científico: “Ambiente científico: congresso nacional realizado por Sociedade de Especialidade vinculada à Associação Médica Brasileira (AMB).”

Ou seja, para a resolução, qualquer manifestação médica de debate científico em um congresso que não seja realizado por uma Sociedade vinculada à AMB será um ato antiético. Por exemplo, se a Comissão Especial de Bioética da OAB-SP organizar um evento sobre o tema, nenhum médico poderá se falar nele porque estará infringindo a nova Resolução.

Esta situação é visivelmente uma restrição à liberdade de expressão e à liberdade científica, direitos fundamentais consagrados na Constituição Fundamental. A Resolução não pode estabelecer restrições a direitos fundamentais, pois a competência regulatória do Conselho também se submete à Constituição, da mesma forma que os médicos também são tutelares de direitos fundamentais.

3. Da curiosa lacuna bibliográfica

Foi uma boa técnica na redação da Resolução indicar os fundamentos bibliográficos que marcam as evidências científicas que sustentam as opções regulatórias do Conselho. É de bom tom, inclusive, que o mesmo ocorra com as futuras resoluções a serem editadas.

Ocorre que, dentre a bibliografia citada, não há qualquer produção científica dos últimos 7 anos. Sim, não é possível ver uma única pesquisa de 2015 em diante sendo citado, ao passo que fartam citações dos anos 1970 a 1990. Por mais relevante que seja a revisão bibliográfica histórica, a opção regulatória necessariamente precisa dialogar com as evidências mais recentes, senão se tratará de uma resolução que já nasce desatualizada.

Nesse sentido, é interessante observar que a Lei da Liberdade Econômica (art. 3.º, VI) estabelece que é um “direito de toda pessoa, natural ou jurídica (…) desenvolver, executar, operar ou comercializar novas modalidades de produtos e de serviços quando as normas infralegais se tornarem desatualizadas por força de desenvolvimento tecnológico consolidado internacionalmente, nos termos estabelecidos em regulamento, que disciplinará os requisitos para aferição da situação concreta, os procedimentos, o momento e as condições dos efeitos”.

Se a desatualização gera um direito em prol do desenvolvimento econômico, o que dizer quando a desatualização impede o direito fundamental à saúde? Não haveria manifestamente um critério de derrotabilidade normativa, ou seja, um critério jurídico autorizador de não cumprimento de dispositivo normativo?[3]

Pois entendo que sim, especialmente porque inconstitucional.

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VEJA TAMBÉM:


[1] Res. 2.113/2014 do Conselho Federal de Medicina. Disponível em: https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2014/2113

[2] Disponível em:  https://portal.cfm.org.br/noticias/resolucao-do-cfm-define-como-experimental-uso-da-hidroxicloroquina-e-cloroquina-por-inalacao/

[3] STRECK, Lenio Luiz. Resposta adequada à Constituição (resposta correta). Dicionário de Hermenêutica: Quarenta temas fundamentais da teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2017, p. 258-259.

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