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Estado Democrático de Direito e Delito de Abolição Violenta

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ATUALIDADES

LEGISLAÇÃO FEDERAL

PENAL

Delito de Abolição Violenta do Estado Democrático de Direito

14.197/2021

CRIMES CONTRA O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

LEI DE SEGURANÇA NACIONAL

19/01/2022

A Lei 14.197/2021 insere o Título XII ao Código Penal, artigos 359-I a 359-T, que dispõe sobre os crimes contra o Estado Democrático de Direito. Divide-se o referido Título em seis Capítulos (I a VI), sendo que do I ao V, o legislador estabelece as tipificações, e o VI trata das disposições gerais. Essa legislação também revoga a Lei 7.170/1983 (Lei de Segurança Nacional), e o artigo 39 do Decreto-Lei 3.688/1941 (Lei de Contravenções Penais).[2]

A Lei 7.170/1983 “não optou pela técnica conceitual, repelindo a experiência de definições expressas previstas nos dois últimos diplomas legislativos que deram vida à Doutrina de Segurança Nacional, optando por estabelecer no seu pórtico que o texto versa sobre os crimes que lesam ou expõem a perigo de lesão ‘a integridade territorial e a soberania nacional’, ‘o regime representativo e democrático, a Federação e o Estado de Direito’ e ‘a pessoa dos chefes dos Poderes da União’.”[3]

A chamada doutrina da segurança nacional começa a ser elaborada logo após o fim da Segunda Guerra Mundial e, originalmente, teve duas vertentes principais, a norte-americana e a francesa, estendendo-se posteriormente a outros países, especialmente na América Latina.[4]

Trata-se de corpo multidisciplinar que sintetiza certa forma de pensamento voltada a orientar programa de ação ou, ainda, estrutura programática endereçada à prática militar, mas, também, profundamente vinculada ao “pensamento e prática estratégicos, ancorados na geopolítica”.[5]

No Brasil, a defesa do Estado (preservação da ordem e da lei) aparece nos textos constitucionais vinculada à segurança nacional nas Constituições de 1934, 1937, 1946 e 1967. Assim, desde a Constituição de 1934, sucessivas leis trataram da preservação da ordem política e social e da segurança nacional, embora a incorporação política dos conteúdos e métodos da doutrina de segurança nacional se inicia em meados da década de 1950 no corpo da Escola Superior de Guerra, fundada em 1949, expressando os valores vigentes entre os militares brasileiros e seus aliados civis, inclusive no que diz respeito às medidas de desenvolvimento econômico.[6]

Na Constituição Federal de 1988, produz-se significativa mudança no tratamento da questão da segurança nacional e defesa do Estado, porque “a competência da União deixa de garantir a segurança nacional, a ordem política e social e passa a assegurar, com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, a ‘guarda da Constituição, das leis e das instituições democráticas’”.[7] Nota-se, portanto, uma ruptura com a mentalidade incorporada pela doutrina da segurança nacional, e destaque à preservação e defesa das instituições democráticas.

Nesse contexto, muito se discutiu acerca da compatibilidade da Lei 7.170/1983, promulgada ainda durante o regime militar, e denominada Lei de Segurança Nacional, com a Constituição Federal de 1988.[8] Contudo, tal controvérsia se encontra hoje superada devido à revogação promovida pela Lei 14.197/2021, que, inclusive, abandona o uso do termo segurança nacional.

No que tange ao bem jurídico tutelado pelos novos tipos penais, busca-se proteger o próprio Estado democrático de Direito (ordem democrática e constitucional), mas cada tipo penal apresenta âmbito de tutela específico (bem jurídico em sentido técnico)[9], conforme a natureza das condutas e as instituições democráticas que atingem ou colocam em perigo.

Em termos gerais, por Estado democrático de Direito “se entende aquele em que os governos têm legitimação democrática, essencialmente à base de eleição por sufrágio universal de assembleias representativas, com a participação livre de uma pluralidade de partidos e com o mínimo de informação e debate político (…). A adição do conceito democrático à ideia de Estado significa a exigência de respeito aos princípios fundamentais do Estado de Direito, como o império da lei, da divisão das funções estatais, da legalidade da Administração, da lei como expressão da vontade geral, e, finalmente, do respeito, garantia e realização material dos direitos e liberdade fundamentais”.[10]

É o Estado da cidadania, do indivíduo feito cidadão, onde imperam os direitos fundamentais, a separação dos Poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário), as eleições plurais, livres e transparentes, a plena liberdade individual, o respeito à dignidade da pessoa, a segurança jurídica, a igualdade formal, a primazia da Constituição e das leis, etc.

Como bem assevera Maihofer, cuida-se do modelo democrático ocidental, mais precisamente, da “democracia constitucional em liberdade”.[11]

Quanto à sucessão de leis penais, a Lei 14.197/2021 apresenta inovações em relação à antiga Lei de Segurança Nacional, com novatio legisin melius e in pejus, aplicando-se, assim, as regras comuns de retroatividade de lei penal mais benéfica e irretroatividade de lei posterior mais severa.

Abolição violenta do Estado democrático de Direito: tipo de injusto

Dentre as citadas infrações penais, tem-se o novel delito de abolição violenta do Estado democrático de Direito previsto no artigo 359-L do Código Penal, alterado pela recente Lei 14.197/2021, com o seguinte teor: “Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais. Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, além da pena correspondente à violência”.[12]

Tutela-se o Estado democrático de Direito, especialmente as instituições democráticas que exercem os poderes constitucionais (União, Estado, Distrito Federal e Município, no âmbito do Poder Executivo, Poderes Legislativo e Judiciário).

A concepção de Estado democrático de Direito não contempla a simples reunião formal das características do Estado de Direito, com os elementos de legitimação democrática, mas, ao contrário, inaugura um conceito novo, que busca materializar o respeito aos princípios fundamentais do Estado de Direito, ou seja, de realização material dos direitos e liberdades fundamentais.[13]

O sujeito ativo pode ser qualquer pessoa (delito comum), e o sujeito passivo é qualquer um dos poderes constitucionais atacados pela conduta do agente.

O tipo penal incrimina a conduta de tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais (tipo simples/anormal/congruente).

 Tentar abolir significa buscar, procurar, pretender, empenhar-se, intentar eliminar, suprimir, extinguir ou destruir o Estado democrático de Direito (elemento normativo extrajurídico do tipo).

Além disso, é preciso que seja empregada violência (coação física) ou grave ameaça (coação moral) à pessoa ou grupos de pessoas. Impedindo (impossibilitando) ou restringindo (dificultando, reduzindo) o exercício dos poderes constitucionais (Poderes da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, no âmbito do Executivo, e Poderes Legislativo e Judiciário) são espécies de condutas por meio das quais se realiza a tentativa de eliminar o Estado democrático de Direito. Com a violência ou grave ameaça evidencia-se o aspecto positivo da conduta típica.

Tão somente os ataques ao funcionamento regular dos poderes constitucionais, no sentido de buscar impedir ou limitar a sua atuação, ou seja, o exercício de suas atribuições constitucionalmente delineadas, configuram o delito em comento. Portanto, é imprescindível que haja uma atuação concreta voltada a inviabilizar ou pelo menos restringir, por meio de violência ou grave ameaça, a atividade legislativa do Poder Legislativo, a atividade de administração e governabilidade do Poder Executivo ou a atividade de prestação jurisdicional do Poder Judiciário. Não estão contempladas pelo tipo penal as manifestações individuais ou sociais, protestos ou críticas dirigidas à atuação de integrantes desses poderes. Neste último caso, tem particular relevância o princípio da proporcionalidade (proibição do excesso), ao versar sobre o exercício de direitos individuais fundamentais (crítica política, por exemplo), na medida em que a participação direta do povo, a liberdade de expressão, o acesso ao espaço público para se manifestar, o pluralismo político e de ideias constituem o verdadeiro núcleo da democracia.

O tipo subjetivo está representado pelo dolo, consistente na vontade livre e consciente de tentar abolir o Estado democrático de Direito, por violência ou grave ameaça, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais.

O delito se consuma no momento em que o agente emprega violência ou grave ameaça, impedindo ou limitando o exercício dos poderes constitucionais, que configura o atentado ao próprio do Estado democrático de Direito. Pela estrutura típica, apresenta-se como delito de consumação antecipada (resultado cortado), cuja realização se produz sem que o agente alcance seu objetivo.

A tentativa não se afigura como possível, visto que iniciada a execução do ato violento ou da grave ameaça, voltada a impedir ou restringir o exercício de um poder constitucional e abolir o Estado democrático de Direito, o delito já se encontra consumado.[14]

Os atos anteriores são tidos como preparatórios, e só podem ser punidos se previstos como delitos autônomos. Se o agente consegue impedir o exercício de algum órgão do Poder Judiciário, v.g., mediante ameaça de acionamento de bombas para inviabilizar os trabalhos desenvolvidos no STF, o delito está se consumando enquanto perdurar aquela situação (o agente responde por um único delito – permanente –, e não por vários crimes em continuidade delitiva).

A pena prevista para o delito em exame é a de reclusão de quatro a oito anos, além da pena correspondente à violência. Em se tratando de crime cometido com violência (homicídio, lesão corporal, etc.), o sujeito ativo deve responder pelo artigo 359-L, em concurso formal, com o delito correspondente ao ato de violência praticado. Se, diversamente, é empregada tão somente a grave ameaça, ocorrerá a consunção.

No tocante ao processo e o julgamento, faz-se necessário observar que o atentado pode recair sobre os poderes constitucionais que são ou não de interesse da União. Por exemplo, no caso de se impedir ou se restringir a atividade do STF ou STJ, compete à Justiça Federal o processamento e julgamento, por haver interesse direto da União. De outro lado, se for realizada tentativa de impedir o funcionamento de determinada Câmara Municipal, o interesse pertence ao Município. Contudo, há de se considerar a natureza política da conduta ilícita e, sendo assim, a competência permanece da Justiça Federal. A ação penal é pública incondicionada.

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NOTAS

[1] Professor Titular de Direito Penal.

[2] Alguns dispositivos foram vetados pelo Presidente da República: o artigo que tipificava o delito de comunicação enganosa em massa (artigo 359-O) e o de atentado a direito de manifestação (artigo 359-S), a possibilidade de ação penal privada subsidiária da pública de iniciativa de partido político com representação no Congresso Nacional (artigo 359-Q), a previsão de causa de aumento de pena para os delitos previstos neste Título, quando cometidos com violência ou grave ameaça exercidas com emprego de arma de fogo ou praticados por funcionário público (artigo 359-U).

[3] Reale Júnior, M.; Wunderlich, A. Parecer sobre a Lei de Segurança Nacional e a defesa do Estado de Direito no Brasil. RBCCrim, v. 182, 2021, p. 333 – 384.

[4] “Essa propagação ocorreu em função das alianças militares e de tratados internacionais político-militares, altamente estimuladores desse gênero de pensamento – notadamente no caso norte-americano – e de emulações surgidas nos meios militares, no que toca à formulação do pensamento estratégico francês, em virtude da premência do momento pelo qual passava o império colonial naquele país” (Giannazi, C. A Doutrina de Segurança Nacional e o “milagre econômico”, p. 66).

[5] Giannazi, C. Op. cit., p. 86.

[6] Ibidem, p. 105.

[7] Reale Junior, M.; Wunderlich, A. Op. cit., p. 336.

[8] Cf. Moraes Filho, A. E. de. Lei de Segurança Nacional: um atentado à liberdade. Rio de Janeiro: Zahar, 1982, p. 51 e ss.; Barros, M. A. A Lei de Segurança Nacional e a Legislação Penal Militar. RT, 765, 1999, p. 446 e ss.

[9] Prado, L. R. Bem jurídico-penal e Constituição, 8. ed., p. 129 e ss.

[10] Ibidem, p. 73-74.

[11] Maihofer, W. et alii. Manual de Derecho Constitucional. Madrid: M.Pons,2001, p.219.

[12] O Código Penal Espanhol (1995) prevê dispositivo semelhante no Capítulo III (De los delitos contra las instituciones del Estado y la división de poderes) do Título XXI (art. 492 e ss.).

[13] Prado, L. R. Bem jurídico-penal e Constituição. 8. ed., p. 74.

[14] Assim como na legislação anterior, ainda que com redação legal diversa, a forma consumada e a tentada estão equiparadas no tipo penal.

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